PROBLEMAS FILOSÓF ICOS DA CONTEMPORANEIDADE O argumento não-ontológico do Proslogion 2 Diego Fragoso Pereira - UFPR O argumento para provar a existência de Deus do Proslogion 2 de Anselmo de Cantuária é tido por muitos como um argumento ontológico. Todavia, há quem não o interprete desta forma. Este artigo constitui uma exposição de duas das interpretações do argumento anselmiano que não o consideram ontológico. Argumento ontológico é uma nomenclatura estabelecida por Immanuel Kant a uma prova que se propõe demonstrar a. priori a existência de Deus, isto é, a partir de simples conceitos 2. É na nomenclatura kantiana que os comentadores aqui mencionados se baseiam para desenvolver suas interpretações acerca do argumento de Anselmo. Para tentar alcançar o objetivo proposto, o texto dividir-se-á em quatro partes: 1) exposição da interpretação tradicional do argumento anselmiano, mostrando, em linhas gerais, a razão de o argumento ser chamado ontológico; 2) abordagem da interpretação de Jean-Luc Marion acerca do argumento do Proslogion2; 3) a interpretação de G. E. M. Anscombe; 4) tentativa de aproximação entre as interpretações 16 A 19 de DE Marion NOVEMBRO e de Anscombe. DE É possível 2010abordar ambas interpretações como se se referissem a um mesmo aspecto do argumento de Anselmo? O argumento anselmiano está exposto abaixo de maneira esquemática. Dadas algumas premissas, Anselmo infere a existência efetiva de Deus, in intellectu et in re 3, se servindo de uma redução ao absurdo 4, ou seja, provando que uma tese é verdadeira porque sua negação é absurda, contraditória. Segue o argumento: (1) Deus é aquele do qual não se pode pensar nada maior. 1 no pensamento. (2) Aquele do qual não se pode pensar nada maior existe ao menos (3) Se aquele do qual não se pode pensar nada maior existir somente no pensamento, pode-se pensar que existe também na realidade, o que é maior. ANAIS - FILOSOFIA
2 (4) Aquele do qual não se pode pensar nada maior existe somente no pensamento e não na realidade (posição do tolo). (5) Aquele do qual não se pode pensar nada maior é aquele do qual se pode pensar algo maior, o que é contraditório (redução ao absurdo). (6) Assim, aquele do qual não se pode pensar nada maior existe no pensamento e na realidade. Uma das principais críticas feitas ao argumento é a passagem indevida do pensar ao ser. O fato de se ter no pensamento aquele do qual não se pode pensar nada maior não implica que exista também na realidade. Isto já foi observado nos tempos de Anselmo por Gaunilon, monge de Marmoutiers e contemporâneo de Anselmo. E se esta passagem do pensamento à realidade for possível, então todo tipo de entidades pensadas como as mais perfeitas dentre os de uma mesma espécie deverão existir também na realidade. De maneira semelhante, Tomás de Aquino, na Suma Teológica, apresenta três limitações do raciocínio do argumento: 1) nem todos os que ouvem a palavra Deus a entendem como aquele do qual não se pode pensar nada maior ; 2) mesmo admitindo que se entenda o que se afirma com a palavra Deus, nem por isso ocorre que Deus exista na realidade, mas apenas no pensamento; 3) para deduzir a existência efetiva de Deus a partir deste argumento, é necessário já supor que há na realidade aquele do qual não se pode pensar nada maior. Kant afirma haver somente três espécies possíveis de provas da 7 existência de Deus a partir da razão especulativa e dentre elas está a prova 8 ontológica. Várias das objeções feitas ao argumento de Anselmo estão baseadas no que Kant afirma na Crítica da Razão Pura. Todavia, em nenhum momento Kant cita Anselmo ou mesmo o argumento do Proslogion 2. É possível que Kant nunca tenha lido Anselmo. Kant, na Crítica da Razão Pura, apresenta objeções ao argumento de René Descartes, exposto na Meditação V. Por semelhança, estenderam-se ao argumento de Anselmo as objeções kantianas feitas ao argumento de Descartes. 5 9 10 Jean-Luc Marion, em um artigo de 1992, defende que a prova anselmiana não é ontológica, segundo a nomenclatura kantiana, por duas razões: a) a prova não parte de um puro conceito de Deus ou de um nome divino, como propõe Karl Barth. Por isso, o aliquid quo nihil maius cogitari potest é antes um não-conceito do que propriamente um conceito de Deus, pois não expressa o que Deus é, mas se refere à incapacidade humana de pensar algo maior que ele. b) não se trata de um puro 6
3 conceito da essência de Deus. O argumento não se refere ao ser de Deus, mas à idéia de máximo, de melhor, de bem e, finalmente, de algo, ilimitado. O argumento anselmiano não se baseia na ontologia para demonstrar a existência de Deus. Daí a expressão de Marion, o argumento não-ontológico de Anselmo. 12 Elizabeth Anscombe apesar de também não considerar o argumento como ontológico, apresenta razões divergentes das de Marion. Para ela, um argumento ontológico deve ter em uma das premissas a noção de existência enquanto perfeição. Na leitura tradicional do texto, devido a uma vírgula numa das premissas, o argumento é tido como ontológico. A premissa diz: Se aquele do qual não se pode pensar nada maior existir somente no pensamento, pode-se pensar que existe também na realidade, o que é maior. Entretanto, ao observar diversos manuscritos, Anscombe nota que tal vírgula não existe, que é pura opinião editorial [palavras dela]. A premissa em questão é: Si enim vel in solo intellectu est, potest cogitari esse et in re, quod maius est. Na nova interpretação, sem a segunda vírgula, a sentença é traduzida assim: Se aquele do qual nada maior pode ser pensado existe apenas na mente, o que é maior que ele pode ser pensado existir também na realidade. Assim, a existência não é mais uma perfeição, mas é aquilo que faz com que um conceito não seja vazio. Embora Marion e Anscombe defendam que o argumento anselmiano não é ontológico, não apresentam uma nomenclatura própria para o mesmo. Não há uma caracterização daquilo que se encontra no Proslogion 2. É possível que as interpretações de Marion e de Anscombe se refiram a um mesmo aspecto do argumento do Proslogion2, isto é, poderiam as duas interpretações ser reduzidas a uma? A primeira resposta é negativa. As duas interpretações não se referem ao mesmo aspecto do argumento. Por aspecto entenda-se elemento, e por elemento entenda-se premissa. As interpretações se baseiam em premissas distintas uma da outra. Enquanto Anscombe se baseia numa premissa que está mais ao meio do argumento, Marion se baseia na primeira. Ambos se reportam, direta ou indiretamente, a Kant:Anscombe na objeção à tese cartesiana de existência, Marion nas duas condições necessárias para um argumento ser considerado ontológico. Em Marion não há a preocupação de a existência ser uma perfeição, um predicado real ou algo parecido. A preocupação dele é separar o argumento de Anselmo de qualquer idéia de essência e de metafísica, de um modo geral. Esta não é a preocupação de Anscombe. A análise que ela faz é inicialmente de tradução, depois de conteúdo. Parece, portanto, não haver meio de aproximar as duas interpretações. Apesar de terem algo em comum: Kant, o que cada uma afirma parece não ter relação ou implicação uma com a outra. 11
4 Por outro lado, é provável que as duas interpretações sejam equivalentes. Anscombe quer mostrar que o argumento anselmiano não considera a existência 13 como uma perfeição e, por isso, um predicado real. Marion, por sua vez, que o argumento não parte de um conceito da essência. Ora, mostrar que o argumento não parte de um conceito da essência é mostrar também, indiretamente, que a existência não é um predicado real e, conseqüentemente, uma perfeição. De que maneira? O argumento quer demonstrar a existência de um ser tal. Para começar, é dada uma definição acerca deste ser. Se esta definição for acerca da essência, e a existência for deduzida a partir daí, tem-se um argumento ontológico. Por outro lado, se a definição não for acerca da essência (e é o que Marion defende), a existência não é tirada da essência, ou melhor, de nenhum conceito da essência. Se isso realmente ocorrer, a existência não será tratada como um predicado real, isto é, como algo que pode ser acrescentado ao conteúdo do conceito de algo a partir da pura análise de um conceito. E, por fim, a existência não será uma perfeição (tese de Anscombe), pois não será tratada como uma propriedade que pode ser inferida analiticamente do conceito de uma essência. Neste sentido, pode-se dizer que ambas interpretações são redutíveis a uma somente. No fundo, querem dizer uma só coisa: o argumento do Proslogion2 não é susceptível das objeções kantianas justamente porque não comete o que Kant alega contra o argumento da Meditação V. E, em última análise, o argumento anselmiano, segundo estas (novas) interpretações, não é um argumento ontológico, 14 segundo a nomenclatura dada por Kant na Crítica da Razão Pura. Daí a afirmação de Marion no início do seu artigo: Concordo com a afirmação de A. Koyré, para quem o argumento de Anselmo já não parece mais uma prova ontológica no sentido exato do termo. 15
5 Notas Por Proslogion 2 entenda-se: Proslogion, capítulo 2. O cardinal subsequente ao nome da obra refere-se ao capítulo da mesma. É nomenclatura corrente em diversos comentadores de Anselmo. Crítica da Razão Pura /B619. Proslogion 2: No pensamento e na realidade. Esta é a finalidade do argumento anselmiano: provar que Deus está não apenas no pensamento, mas também na realidade. Deus é algo efetivo. Daí o nome do capítulo 2: Quod sit vere Deus Que Deus existe (é) verdadeiramente. A tese de que o argumento de Anselmo se serve de uma redução ao absurdo é defendida por alguns comentadores: DAVIES, 2004, p. 168; MATTHEWS, 2005, p. 87; PLANTINGA, 1966, p. 537; PLANTINGA, 2002, p. 87. Possivelmente a objeção mais conhecida de Gaunilon é a da Ilha Perdida (insula perdita), a melhor dentre todas as ilhas que há na terra. O conceito de Ilha Perdida, a melhor de todas as ilhas está no pensamento, pois se compreende o que ali está descrito. Por outro lado, se esta ilha não existir na realidade, não será a melhor de todas as ilhas, já que qualquer ilha existente na realidade é maior que a melhor de todas as ilhas. Ora, como este raciocínio não procede, o argumento de Anselmo, segundo Gaunilon, também não procede, visto que comete o mesmo erro que o exemplo da Ilha Perdida. (Pro Insipiente 6) Suma de Teología I, 2, 1, ad 2. Crítica da Razão Pura /B618. Crítica da Razão Pura A591/B619. DAVIES, 2004, p. 177, nota 2; ainda que Marion tenha afirmado: Não é, de maneira nenhuma, paradoxal que Kant foi o primeiro a perder o foco e a criticar Anselmo como se ele [Anselmo] não tivesse sido tão crítico no sentido kantiano como Kant próprio supôs ser (MARION, 1992, p. 209). Uma forma possível de se entender as palavras de Marion é considerar que não foi Kant quem criticou Anselmo, mas a tradição filosófica posterior a Kant que interpretou o argumento anselmiano a partir das objeções kantianas ao argumento cartesiano.
6 Crítica da Razão Pura A602/B630. Cf. MARION, 1992, p. 209. Cf. ANSCOMBE, G. E. M. Por qué la prueba de Anselmo en el Proslogion no es un argumento ontológico. In: Anuario Filosófico de la Universidad de Navarra, v. 25, p. 9-18, 1982. Normam Malcolm é quem explicita a relação entre a doutrina da existência enquanto perfeição e a existência enquanto predicado real. Analisando o argumento anselmiano, afirma Malcolm: A prova ontológica do Proslogion 2 é falaciosa porque se baseia na falsa doutrina de que a existência é uma perfeição (e portanto que a existência é um predicado real ) (MALCOLM, 1960, p. 44). Crítica da Razão Pura /B630. MARION, op. cit., p. 201.
7 Referências ANSCOMBE, G. E. M. Por Qué la Prueba de Anselmo en el Proslogion no es un Argumento Ontológico. In: Anuario Filosófico de la Universidad de Navarra, v. 25, 1982. p. 9-18. ANSELMO. Proslogion. In:. Complete Philosophical and Theological Treatises. Tradução: Jasper Hopkins e Herbert Richardson. Minneapolis, MN: Arthur J. Banning Press, 2000. AQUINO, Tomás de. Suma de Teología. 4ª ed. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2001. DAVIES, Brian. Anselm and the Ontological Argument. In: ; LEFTOW, Brian (Ed.). The Cambridge Companion to Anselm. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. GAUNILON. Quid ad Haec Respondeat Quidam Pro Insipiente. In: ANSELMO. Obras Completas. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1952. Volume 1. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. MALCOLM, Norman. Anselm s Ontological Arguments. In: Philosophical Review, v. 69, p. 41-62, 1960. MARION, Jean-Luc. Is the Ontological Argument Ontological? The Argument According to Anselm and Its Metaphysical Interpretation According to Kant. In: Journal of the History of Philosophy, v. 30, p. 201 218, 1992. MATTHEWS, Gareth. The Ontological Argument. In: MANN, William E. (ed). The Blackwell Guide to the Philosophy of Religion. Oxford: Blackwell Publishing, 2005. PLANTINGA, Alvin. God, Freedom and Evil. New York: Harper & Row, 2002.. Kant s Objection to the Ontological Argument. In: The Journal of Philosophy, v. 63, p. 537-546, 1966.