Regina de Cássia RECRIANDO A ESCOLA BÍBLICA DOMINICAL
Introdução As escolas bíblicas dominicais foram implantadas no esforço do missionarismo protestante estrangeiro na América Latina e nos demais lugares do mundo em que foram realizadas as missões protestantes. Inicialmente, elas foram organizadas para assistir às crianças como projeto de evangelização infantil por meio da educação. Posteriormente, passou a assistir aos adultos e tornou-se uma das principais vias de ensino da doutrina cristã, preparação para batismo, estudo da Bíblia, etc. O esforço missionário estrangeiro chegou ao Brasil há mais de duzentos anos e, desde então, tem prevalecido o mesmo sistema de escolas bíblicas dominicais em muitas igrejas. Na atualidade tem ocorrido diversos esforços para atualização do modelo ou mesmo supressão das atividades das EBDs, sendo substituídas por cultos ou outras atividades da Igreja. Isto tem gerado uma ausência significativa na tarefa de ensino e instrução da Igreja. As reuniões em geral passaram a ser centradas nas atividades cúlticas, com poucos programas especificamente educativos. De modo geral, o esvaziamento de frequência das EBDs tem sido associado à exaustão do modelo antigo diante dos desafios e avanço das comunicações e propostas educacionais contemporâneas. Muitos ministérios de igrejas, entre eles os educativos, não têm acompanhado devidamente as novas linguagens e formas de comunicação dos dias atuais, tornando-se antiquados e metodologicamente defasados. Há, todavia, várias igrejas locais e lideranças preocupadas em corresponder aos novos tempos, buscando soluções que estejam mais próximas da realidade social dos seus membros. É preciso, para isso, verificar como a educação tem sido viabilizada na sociedade atual, principalmente com o recurso às Introdução 1
novas tecnologias e a possibilidade de mediação do conhecimento, interação entre pessoas e disponibilização de materiais. É preciso dedicar tempo e esforços para revitalização das escolas bíblicas, recriando modelos e dando novos significados ao programa por meio de criação de equipes de trabalho, descentralização ministerial e envolvimento de pessoas capacitadas não somente na área da educação, mas no conhecimento da fé. Introdução 2
1. Neste caso, a educação não é uma opção ministerial da Igreja, mas seu dever como algo que é próprio de sua natureza como comunidade pedagógica. Investir tempo e recursos diversos nisso é cumprir um dos mais importantes aspectos de sua missão no mundo. A educação cristã é uma das tarefas fundamentais da missão da Igreja no mundo, pois ela é comunidade pedagógica, de instrução. O conteúdo principal da educação eclesial é o conhecimento de Deus e da sua vontade revelada na história, que se tornou história da salvação por causa disso. Este conhecimento é tanto para fins da adoração a Deus como para que a criação se reconcilie com ele e consigo mesma. A Igreja deve levar esse conhecimento até os confins do mundo e ao longo da história como sua principal missão no mundo. a. No Antigo Testamento Conforme Provérbios, educação é sabedoria, para entender o temor do Senhor e conhecer a Deus é necessário se deixar ser instruído pela sabedoria, ou seja, ouvir os sábios e seus conselhos (Prov. 2.1-10). A educação cristã é então uma das principais formas de mediação desse conhecimento divino, que se manifestou de modo especial em Jesus Cristo e é realizada pela Igreja em suas ações ministeriais, culto e testemunho de fé. O Antigo Testamento é Escritura para a instrução acerca de Deus. O Pentateuco, por exemplo, é chamado de Torá, que significa instrução, porque este era o modo principal da lei ser transmitida, por meio do ensino. A Palavra de Deus, em sua forma humana, é fruto do esforço pedagógico de Israel e dos cristãos do primeiro século, para comunicar na forma de ensino a vontade de Deus revelada na história. Entretanto, o ensino da fé não visa meramente o conhecimento intelectual ou informativo, de acúmulo de informações, mas a orientação da vida, sua restauração e preservação no mundo. Isto é importante porque a vida foi criada por Deus e ele mesmo a quer preservar. Ao conhecer a Deus nos encontramos com a sua atuação no mundo e a presença constante do seu Espírito Santo sustentando as coisas criadas. O evangelho de Jesus Cristo é a principal forma de realização desse projeto divino e deve ser o principal conteúdo do ensino da Igreja. 3
Educação como sabedoria Neste sentido, as bases mais remotas para a tarefa educativa da Igreja estão nos atos de criação de Deus e na ordem para que os humanos construíssem sua vida no mundo (Gn. 1.26-27). O pecado comprometeu a ordem pacífica dessa vida, conforme criada por Deus. Os humanos se alienaram de Deus por sua própria rebeldia. Deus, entretanto, não abandonou sua criação e veio em sua busca instruindo-a em como se voltar para ele a fim de reencontrar a vida que somente é possível de verdade na sua presença. A vida orientada pela sabedoria de Javé (Prov. 2.7) resulta em comportamento ético, relações saudáveis e prática do bom senso: [...] pelo temor do Senhor os homens evitam o mal (Prov. 16. 6); - O coração do homem traça o seu caminho, mas o Senhor lhe dirige os passos ( 16. 9). A sabedoria nos conduz não somente para o conhecimento de Deus, mas para o conhecimento da vida criada por Ele. Uma educação centrada na vida como criação de Deus, auxiliará na sua reordenação harmônica, ou seja, será uma forma de ajuda para que as pessoas, comunidades e sociedades vivam melhor. Além disso, será geradora de esperança, pois não se refere somente ao momento presente, mas a um tempo vindouro com Deus. O movimento de sabedoria em Israel, também chamado de Movimento Sapiencial, teve início formalmente com Salomão e desenvolveu-se posteriormente gerando obras como Jó, Provérbios e Eclesiastes. Mas, ele também se tornou um modo de pensar a fé e a vida em Israel que subjaz a vários textos bíblicos. Podemos perceber um modo sapiencial de pensar em praticamente todos os escritos do Antigo Testamento e também do Novo Testamento. O livro de Tiago no Novo Testamento é o que mais bem expressa a influência sapiencial. A vida e como ela era conduzida no mundo era a maior preocupação dessa forma de pensar. Toda instrução deveria ter isso em vista, e não ser um mero acúmulo de conhecimento. Mesmo o conhecimento formal deveria ser produzido e utilizado com sabedoria, para ser orientador da vivência no mundo. 4
Formas e lugares da educação no mundo bíblico Nas sinagogas, que se espalharam por várias partes do mundo antigo e existem até os dias atuais, estavam guardados rolos das Escrituras Sagradas e eram lugares que reuniam homens interessados na leitura e interpretação dos textos sagrados. No período do Antigo Testamento os pais foram os primeiros responsáveis pela educação dos filhos. Na infância os meninos eram instruídos pelas mães no lar e quando ficavam um pouco mais jovens eram ensinados pelo pai que, normalmente, transmitiam a eles o ofício que desenvolviam. As meninas ficavam aos cuidados da mãe e eram instruídas para o lar. Os meninos também recebiam a instrução das tradições do povo pelos anciãos das tribos, por meio dos sacerdotes e pelos sábios, que também eram mestres do povo em várias situações sociais. Os sacerdotes instruíam nos lugares de culto e os profetas por meio de sua palavra profética, que também possuía um caráter pedagógico. A função dos sábios era caracteristicamente educacional, estabelecendo-se nas praças, ruas e portas da cidade para aconselhar e ensinar sabedoria ao povo, conforme esclarece De Vaux: Seu ensinamento era comunicado nas reuniões dos anciãos... nas conversas dos comensais... mas também ao ar livre, à porta das cidades, nas ruas e nas esquinas... Expressavam-se em sentenças bem forjadas, que se conservavam por tradição oral antes de compor coleções... (DE VAUX, 2003, p. 74). Na realidade, as escolas formais que ajuntavam os jovens, exclusiva para a instrução de homens, somente começaram a aparecer por volta dos anos 60 a.c.. Podemos mesmo dizer que os lugares de educação no Antigo Testamento eram então os lares, o templo, o espaço comunitário das ruas e praças. Durante o exílio babilônico (século VI) surgiram as sinagogas como lugar de instrução. O templo havia sido destruído e só poderia ser reconstruído em Jerusalém, conforme a tradição de Israel. Foi iniciado então o modelo sinagogal para ser um espaço de leitura, interpretação e ensino das Escrituras Sagradas. 5
Educação como instrução da lei b. No Novo Testamento O livro de Levítico apresenta a lei de Israel, que também está mencionada nos livros de Números e Deuteronômio. Esta lei deveria ser ensinada ao povo e às novas gerações: E para ensinar aos filhos de Israel todos os estatutos que o Senhor lhes tem falado por meio de Moisés (Lv. 10.11). Tratava-se de uma ordem pedagógica, que envolvia gastar tempo com a instrução das pessoas e transmissão dos fatos ocorridos no meio do povo e das tradições que conferiam identidade e sentido à nação. Desde cedo a religião israelita se revelou histórica, portanto, de conteúdo à ser narrado. Suas principais formas de transmissão foram a tradição oral e a tradição escrita. Outros recursos de transmissão também foram utilizados dentro do campo da oralidade ou da escrita, como exemplo os cânticos, os provérbios, a poesia, etc. Ao longo dos tempos, formou-se um grandioso acervo a ser preservado e ensinado às novas gerações. O cristianismo herdou essa característica do judaísmo e manteve-se também uma religião de revelação, portanto, de conhecimento, agora sobre Jesus Cristo, sua pessoa e obra. No Antigo Testamento, tanto o sacerdote, o profeta e assim como o sábio, eram líderes que se ocupavam do ensino do povo. Para isso, contavam com a ajuda e produção dos escribas e doutores da Lei, que se dedicavam em estudá-la e explicá-la às pessoas, como foi o caso de Esdras, doutor da Lei e provável redator de livros bíblicos. No Novo Testamento a ênfase recai sobre o evangelho de Jesus Cristo. Ele é o conteúdo prioritário do ensino da Igreja, que começou a expressar cristologicamente as Escrituras e toda a realidade de sua época. Jesus Cristo tornou-se é a própria sabedoria encarnada e que nos ensina sobre Deus a partir de dentro de nossa própria experiência humana. Se o 6
ensino visa instruir para a vida, a vida somente é possível em Jesus Cristo, aquele que nos salva da alienação de Deus, o autor da vida. Se o ensino visa a verdade, Cristo é a verdade revelada a nós. Se o ensino visa apontar o caminho, Cristo é o caminho que leva ao pai, ao criador, portanto à vida. Se o ensino visa à liberdade, somente Jesus Cristo pode nos tornar verdadeiramente livre. O próprio Cristo marcou sua missão com o anúncio do Reino de Deus: E percorria as cidades e as aldeias, ensinando, e caminhando para Jerusalém (Lc. 13.22). No caminho para Jerusalém, que representava uma espécie de marcha para sacrifício, o Reino de Deus era ensinado por meio de palavras e sinais. Esta é a mesma missão que Jesus apontou para a sua Igreja, que caminha em direção à consumação da sua salvação e, neste caminho, missiona ensinando e instruindo acerca do conhecimento de Deus. A educação em Paulo Concluímos com o exemplo bíblico que, quando não há ensino, a disciplina e as ordens são necessárias. Porém, quando se educa se conta com um povo amadurecido para decidir o seu próprio caminho diante de Deus. O ensino praticado pelos apóstolos em relação à Igreja nascente mostra-nos que ela também é ação pastoral, pois envolve o cuidado das pessoas por meio da instrução. Não bastava ditar as regras de comportamento ao povo, mas era preciso que Cristo fosse formado e santificado nele. É devido à essa consciência apostólica que suas cartas eram caracteristicamente pedagógicas, visando ensinar as igrejas e os cristãos sobre Jesus Cristo e o Reino de Deus no mundo. O apóstolo Paulo compreendia a Igreja em pleno nascimento e expansão. Comunidades foram fundadas por ele, ou sob a sua assistência pastoral, a partir de uma intensa evangelização por meio de suas viagens missionárias. Nelas, ele pregava em sinagogas e praças, criava comunidades de cristãos e designava lideranças. Ao manter o contato com estas comunidades e suas lideranças através de cartas, seja de outras cidades ou mesmo da prisão, ele fazia teologia para fins de pastoreamento e evangelização. O 7
apóstolo Paulo ensinava, com isso, que a missão da Igreja envolve evangelizar, fundar igrejas, cuidar das pessoas, pastoreá-las, produzir teologia e ensiná-las sobre Cristo e seu evangelho. 8