Tanto prazer me dava adubar a terra, afofá-la... espalhava-a vagarosamente com um ancinho de plástico verde. Lembro-me dele até hoje porque o mantive



Documentos relacionados
4 o ano Ensino Fundamental Data: / / Atividades de Língua Portuguesa Nome:

Luís Norberto Pascoal

Em algum lugar de mim

QUANDO DEUS CRIOU TODAS AS COISAS

Era uma vez, numa cidade muito distante, um plantador chamado Pedro. Ele

Apoio: Patrocínio: Realização:

Os Quatro Tipos de Solos - Coração

Agrupamento Vertical de Escolas do Viso. Escola E. B. 2.3 do Viso. A vida é uma folha de papel


Ana. e o e o. Jardim de Flores

Diogo e Olívia. Livro de atividades. Patrícia Engel Secco Ilustrado por Edu A. Engel

O PASTOR AMOROSO. Alberto Caeiro. Fernando Pessoa

Sou grato a Deus por ter conhecido tantas pessoas boas, de coração aberto e firme.. Presidente Nilton A. Fogaça

Estórias de Iracema. Maria Helena Magalhães. Ilustrações de Veridiana Magalhães

A.C. Ilustrações jordana germano

O mar de Copacabana estava estranhamente calmo, ao contrário

A fábula da formiga. Post (0182)

Visite nossa biblioteca! Centenas de obras grátis a um clique!

Os dois foram entrando e ROSE foi contando mais um pouco da história e EDUARDO anotando tudo no caderno.

Guia Prático para Encontrar o Seu.

GOTAS DE CURA INTERIOR

Para início de conversa 9. Família, a Cia. Ltda. 13. Urca, onde moro; Rio, onde vivo 35. Cardápio de lembranças 53

Portuguese Poetry / lines HS 5-6

Lembro-me do segredo que ela prometeu me contar. - Olha, eu vou contar, mas é segredo! Não conte para ninguém. Se você contar eu vou ficar de mal.

PLANTIO DE FLORES Profas Joilza Batista Souza, Isilda Sancho da Costa Ladeira e Andréia Blotta Pejon Sanches

FAZENDO SEXO APÓS O CÂNCER DE PRÓSTATA. Alícia Flores Jardim

Oração. u m a c o n v e r s a d a a l m a

O menino e o pássaro. Rosângela Trajano. Era uma vez um menino que criava um pássaro. Todos os dias ele colocava

Arthur de Carvalho Jaldim Rubens de Almeida Oliveira CÃO ESTELAR. EDITORA BPA Biblioteca Popular de Afogados

A LIBERDADE COMO POSSÍVEL CAMINHO PARA A FELICIDADE

Material: Uma copia do fundo para escrever a cartinha pra mamãe (quebragelo) Uma copia do cartão para cada criança.

Ernest Hemingway Colinas como elefantes brancos

ALEGRIA ALEGRIA:... TATY:...

I ANTOLOGIA DE POETAS LUSÓFONOS. Fantasias

Mostra Cultural 2015

Para colocar a vida em ordem é preciso primeiro cuidar do coração. O coração é a dimensão mais interior da nossa existência

Escola Municipal Professora Zezé Ribas. Premio Afago de Literatura. A política brasileira

12:00 Palestra: Jesus confia nos Jovens -Por isso entrega sua mãe - Telmo

Os encontros de Jesus. sede de Deus

1-PORTO SEGURO-BAHIA-BRASIL

A MÃE CUIDA DA FAMÍLIA

Clarissa é uma mulher apaixonada pela beleza e sua Sala de Estar. não poderia deixar de ser um local onde fotos e quadros de arte

Eu sempre ouço dizer. Que as cores da pele são diferentes. Outros negros e amarelos. Há outras cores na pele dessa gente

Amar Dói. Livro De Poesia

Relaxamento: Valor: Técnica: Fundo:

1º Domingo de Julho Conexão Kids -05/07/2015

Acasos da Vida. Nossas Dolorosas Tragédias

MALDITO. de Kelly Furlanetto Soares. Peça escritadurante a Oficina Regular do Núcleo de Dramaturgia SESI PR.Teatro Guaíra, no ano de 2012.

Teresinha Nunes da Silva Braga Biblioteca Pública Municipal Sandálio dos Santos - Cascavel-Pr

COMO INVESTIR PARA GANHAR DINHEIRO

Uma volta no tempo de Atlântida

7 Negócios Lucrativos

Dia 4. Criado para ser eterno

Material Didáctico O Rapaz de Bronze A comissão organizadora da Festa das Flores

Dedico este livro a todas as MMM S* da minha vida. Eu ainda tenho a minha, e é a MMM. Amo-te Mãe!

Mensagens de Santa Paula Frassinetti (Extraídas do livro: PALAVRA VIDA) Esteja alegre e, quanto possível, contribua também para a alegria dos outros.

André Sanchez Blog Esboçando Ideias E-BOOK GRÁTIS. Uma realização: André Sanchez.

2015 O ANO DE COLHER ABRIL - 1 A RUA E O CAMINHO

A CRIAÇÃO DO MUNDO-PARTE II Versículos para decorar:

O céu. Aquela semana tinha sido uma trabalheira!

Categorias Subcategorias Unidades de registo. Situação. Sai da escola e ia para casa da minha mãe (F1) Experiência de assalto

BMS15SET05-livreto_v2 APROV.indd 1

A Cura de Naamã - O Comandante do Exército da Síria

meu jeito de dizer que te amo

Texto 2. Julinho, o sapo

JESUS. rosto divino do homem, rosto humano de DEUS. Projeto: Luciano Mancuso. Equipe: André Figueiredo Keyla Gripp João Paulo (JP) Luciano Mancuso

Sinopse I. Idosos Institucionalizados

Respostas dos alunos para perguntas do Ciclo de Debates

O que procuramos está sempre à nossa espera, à porta do acreditar. Não compreendemos muitos aspectos fundamentais do amor.

Índios Legião Urbana Composição: Renato Russo

E quando Deus diz não?

A PARÁBOLA DA OVELHA DESGARRADA (Lucas, capítulo 13º, versículos 3 a 7)

Jörg Garbers Ms. de Teologia

ulher não fala muito Mulher pensa alto

OBJETIVO VISÃO GERAL SUAS ANOTAÇÕES

O sucesso de hoje não garante o sucesso de amanhã

Redação Avaliação Seletiva 9º ano Preparatório para as boas Escolas Públicas

A formação moral de um povo

MISSÕES - A ESTRATÉGIA DE CRISTO PARA A SUA IGREJA

LIVRO DE CIFRAS Página 1 colodedeus.com.br

Manual Completo Como cuidar de Peixe Betta

SAMUEL, O PROFETA Lição Objetivos: Ensinar que Deus quer que nós falemos a verdade, mesmo quando não é fácil.

GRUPO VI 2 o BIMESTRE PROVA A

JOSÉ DE SOUZA CASTRO 1

USUÁRIO QUE APANHOU NA PRISÃO, SOFREU

KIT CÉLULA PARA CRIANÇAS: 28/10/15

ESCOLA ESTADUAL AUGUSTO AIRES DA MATA MACHADO. MATÉRIA: LÍNGUA PORTUGUESA. PROF.: MARCÉLIA ALVES RANULFO ASSUNTO: PRODUÇÃO DE TEXTO.

Unidade I Tecnologia: Corpo, movimento e linguagem na era da informação.

O NASCIMENTO DE JESUS

DEUS DA FAMÍLIA ISRC BR MKP Ivan Barreto (MK Edições)

DAVI, O REI (PARTE 1)

Manual do Mega Hair. Introdução. Sumario

MÓDULO 5 O SENSO COMUM

Nem o Catecismo da Igreja Católica responde tal questão, pois não dá para definir o Absoluto em palavras.

História de Leonardo Barbosa

MINHA HISTÓRIA NO NOVOTEL

O Boneco de Neve Bonifácio e o Presente de Natal Perfeito

Transcrição:

A rosa azul Era lindo o meu jardim! Colorido, alegre, visitado por andorinhas, colibris, bem-te-vis e sabiás. Os canteiros, sempre, muito bem aparados e limpos... As plantas viçosas e brilhantes... Como era bom apreciá-lo, sentir o aroma perfumado das flores, observar o vaivém dos pássaros a rodeá-las e, num pouso delicado e leve, beijarem-nas retirando-lhes, pouco a pouco, um tiquinho dos seus doces néctares... Cuidava com zelo e carinho, fazia tudo para que o preservasse e o protegesse contra os insetos e as pragas. Regava-o duas vezes ao dia, aspergindo levemente as gotas d água para que nenhuma planta fosse desfolhada e nenhuma pétala de minhas flores caísse sem que fosse na hora marcada pela mãe natureza.

Tanto prazer me dava adubar a terra, afofá-la... espalhava-a vagarosamente com um ancinho de plástico verde. Lembro-me dele até hoje porque o mantive guardado por um bom tempo junto de outras tantas lembranças. Num cantinho reservado, bem na direção da soleira da porta principal da casa, havia uma roseira. Era a minha preferida. De tão rara e valiosa, a rosa azul que dela brotava eu mantinha sob uma vigilância permanente para que ninguém a roubasse ou a danificasse. A rosa azul era ímpar, única, adorada. Suas pétalas sedosas e delicadas eram arrumadas de uma forma tão regular, tão organizada, que só mesmo mãos tão divinas poderiam tê-las agrupadas tão simetricamente perfeitas. O verde de suas folhas era o mais verde e os espinhos afiados se espalhavam por todos os galhos.

Eles muitas vezes me feriram, mas a sua grandiosidade, enquanto flor amada, fazia-me perdoá-la e, rapidamente, tratada a ferida, voltava a riscar-me, de vez em quando, com a fina ponta de suas garras... eu não ligava... eu a amava tanto que eu nem me incomodava com a dor momentânea daquelas agulhadas. Todos os dias eu conversava com a minha rosa. Era ela quem recebia toda a minha atenção. Contava-lhe os meus mais secretos segredos; prometia-lhe amor eterno; sublimava-a; dedicava-me exclusivamente a ela, embora tratasse de todo o jardim com muito carinho como sempre. Mas era da rosa azul que eu mais gostava. Como temia chegar o dia de sua velhice e perdê-la num simples desfolhar seco e sem vida! Mesmo assim, preparava-me para guardar suas pétalas numa caixinha forrada de veludo; era o que eu possuía de mais valioso.

Dela brotaram dois lindos botões que até hoje permanecem em constante crescimento natural: lindos e perfeitos. Cada um com a sua beleza e com o seu esplendor, cada um cumprindo o seu papel de rosa rara e valiosa, engrandecendo ainda mais a minha existência. Ela permanecia no mais alto lugar da roseira e seus botões mais abaixo como se estivessem sendo protegidos pela sua grande copa e seu volumoso corpo de flor. Estava sempre resguardada porque fora plantada bem abaixo do aparador do portão - tipo um chapéu de telhas - que protege a madeira do apodrecimento causado pelo sol e vento fortes e pela chuva grossa, típicos do verão. Devido ao excesso de trabalho e ao pouco tempo para dedicar-me ao meu jardim, a partir de um dado momento da minha vida, um

jardineiro começou a cuidar dele. Todos os dias ele molhava, tratava da terra, varria, arrumava as plantas de modo que eu ficasse satisfeita com o seu trabalho. Ele era realmente competente. Tão competente que lhe confiei a minha rosa azul. Pedi-lhe que cuidasse dela com carinho e que a vigiasse para que nada lhe acontecesse. Ele passou a cuidar da minha rosa com tanta dedicação que eu o admirei. Ele era realmente um profissional exemplar, pensava. Os dias foram passando, eu sempre que chegava e saía conversava com a minha rosa e com os meus botões. Dava-lhes toda a minha atenção sempre que podia. Continuava a acariciar-lhes e a sentir seus aromas e a observar suas belezas. Pensava sempre: Que jardineiro cuidadoso! Meu jardim continua belo e viçoso!. Mal sabia eu que, ele, aquele competente jardineiro,

inescrupulosamente, viria a roubar a minha rosa e a deixar-me somente com os seus botões, sem a sua grandiosidade, beleza, companhia... sem a felicidade de tê-la ao meu lado... sem o seu perfume... sem a sua presença... Roubou a rosa e fugiu. Ninguém nunca mais o viu. Nem a minha rosa que se apaixonara por ele e o acompanhara sem rumo. Durante o tempo que tratava e cuidava dela, ele a seduzia e a conquistava. Senti-me vazia e solitária, perdidamente só. Não visto sentido mais em manter o meu jardim, o abandonei. As plantas logo começaram a sentir a falta da água, do trato da terra, da atenção que antes recebiam. Os botões desprotegidos e desamparados passaram a precisar de minha ajuda para sobreviverem a tanto desconforto e solidão.

Depois de muitas desventuras, resolvi que não podia deixar que no meu jardim nada morresse. Tratei de reerguer-me e comecei a replantar os canteiros, a cuidar da terra e a irrigar todos os dias a grama, as árvores, os arbustos, as folhagens, as flores e, principalmente, os meus dois botões azuis. O jardim ficava novamente viçoso, mas meu coração ainda não estava em paz. Vivia triste, sem sentido, mas vivia em função da sobrevivência do meu jardim e dos meus dois botões. Cheguei a tentar plantar novas roseiras, mas nada de belo germinava. Penso: Quando menos esperar, ganharei uma nova muda de rosa azul. Encantar-me-ei com ela. E ainda quando for uma pequena plantinha, suas folhinhas ficarão muito bem delineadas, seus galhos firmes, seus espinhos pequenos encherão de cor e alegria o meu

jardim... Essa rosa azul passará a fazer parte de minha existência e, ao secar, provavelmente, suas pétalas tornar-se-ão douradas fontes de lindas lembranças que ficarão guardadas numa caixinha forrada de veludo: flor valiosa a exalar perfume e a enaltecer o meu jardim com sua delicadeza, encanto e beleza... (Bia Carvalho)