A VARIAÇÃO NÓS E A GENTE NO PORTUGUÊS CULTO CARIOCA

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Transcrição:

Revista do GELNE, Piauí, v. 12, n.1, 2010. A VARIAÇÃO NÓS E A GENTE NO PORTUGUÊS CULTO CARIOCA Caio Cesar Castro da Silva* Resumo Pretende-se observar a distribuição entre as variantes de primeira pessoa do plural em textos orais e escritos do português culto da cidade do Rio de Janeiro. Os dados serão analisados a partir de variáveis linguísticas e sociais. Além disso, objetiva-se relacionar o fenômeno com a questão do ensino. Palavras-chave: sociolinguística, 1ª pessoa do plural, indeterminação do sujeito. Abstract We intend to analyse the distribution of portuguese personal pronouns nós and a gente. The database for this study is composed of oral and written texts produced by native speakers from Rio de Janeiro. Besides, we will stablish a relationship between this issue and the challenge of education. Keywords: sociolinguistics, personal pronouns, subject indeterminacy Introdução Alguns autores (LOPES, 2002; CALLOU et alii, 2006; OMENA, 2003) afirmam que a implementação de a gente no quadro pronominal do português se iniciou entre os séculos XVII e XVIII, ainda que seu uso categórico só seja percebido a partir do século XX. O processo de gramaticalização pelo qual passou a gente vem sendo estudado nos últimos anos em várias pesquisas de cunho sociolinguístico, assim como a alternância gerada entre a nova forma pronominal e a forma antiga de primeira pessoa do plural, nós. Como é normal nos itens gramaticalizados, o pronome a gente ainda conserva resquícios do período em que ainda era um sintagma coletivo, como a impossibilidade de aparecer acompanhado de um determinante (* a gente três) e o traço de indefinitude, capaz de fazer referência a uma quantidade indeterminada de pessoas. Contribui também o fato de ser uma forma mais neutra do que nós, posto que mantém vínculo com o núcleo do SN coletivo, do qual se originou. Isso geraria a maior ocorrência de a gente em ambientes menos marcados, seja quanto ao tempo do verbo, seja quanto à saliência fônica. Objetiva-se, neste trabalho, tecer considerações sobre o uso dos pronomes nós e a gente no português carioca culto, tomando por base textos do NURC/ RJ e do VARPORT. O trabalho encontra-se organizado desta maneira: primeiramente, serão apresentados a metodologia e o arcabouço teórico que foram utilizados, bem como os corpora de textos do português da década de 90. Em seguida, observam-se os contextos, linguísticos e sociais, favorecedores da ocorrência 67

de cada variante. Pretende-se, também, refletir sobre a questão do ensino e como abordar o fenômeno em sala de aula. Por fim, seguem as palavras finais e as referências bibliográficas. Pressupostos teórico-metodológicos e amostras utilizadas O trabalho ancora-se no instrumental teórico da sociolinguística variacionista (WEINREICH, LABOV & HERZOG, 2006; MOLLICA et alli, 2008) e tem por objetivo verificar a distribuição dos pronomes que fazem referência à primeira pessoa do plural, assim como observar os contextos favorecedores à ocorrência das formas. Para o trabalho, foram coletados dados da década de 90 em amostras de fala culta carioca (projeto NURC/ RJ) e em amostras de textos veiculados em jornais cariocas, disponíveis para consulta no sítio do projeto VARPORT. Da amostra de textos orais, selecionaram-se seis inquéritos, sendo que duas entrevistas por faixa etária (uma de homem e uma de mulher). Da amostra de textos escritos, foram observados 21 anúncios, 10 notícias e 2 editoriais. Os dados obtidos passaram por tratamento estatístico no programa computacional GOLDVARB-X, tendo sido gerados as frequências e os pesos relativos referentes a cada uma das variantes analisadas. O valor de aplicação para os gráficos e tabelas deste trabalho é nós. Vale ressaltar que se levantaram apenas estruturas em que as formas nós e a gente aparecem na posição de sujeito, sem que tenham sido considerados casos de sujeito nulo. Da mesma maneira, não se observaram casos em que a variante nós aparece com um determinante (exemplo (a)), já que esse uso é categórico, conforme foi citado anteriormente. (a) pesa muito... eu vejo lá em casa... nós somos cinco... a despesa é grande... toda semana a gente vai no... todo sábado vai no super mercado... (Complementar, inq. 14, homem, faixa 2) Também não foi examinado o aspecto inclusivo da variável eu-ampliado, que diz respeito à inclusão dos participantes envolvidos na produção do discurso (eu + você). A dificuldade de interpretar um dado, como (b) abaixo, decorre do traço [+ determinado] não estar explícito, o que acarreta mais de uma interpretação: a utilização de a gente poderia fazer referência somente à informante, à informante e ao seu interlocutor, ou a qualquer grupo X de informantes que viesse a participar da pesquisa. (b) foi incrível assim como é que:: éh:::: terminou né com esse desejo do açúcar... que mais que a gente podia falar pra sua entrevista? (Complementar, inq. 19, mulher, faixa 2) Parte-se dos resultados encontrados na pesquisa empreendida por Lopes (1993) para formular algumas hipóteses gerais: (i) como a forma inovadora ainda guarda resquícios do período em que era um sintagma coletivo (LOPES, 2002), espera-se que a sua ocorrência seja maior em contextos de indeterminação do sujeito; (ii) por ser uma forma mais marcada, nós apareceria, provavelmente, junto a verbos que apresentam maior saliência fônica e a tempos verbais mais marcados; (iii) a escrita, por sofrer mais pressões conservadoras, apresentaria menor ocorrência da forma inovadora. 68

Resultados do corpus de fala Conforme já foi dito, o corpus de fala tem por base inquéritos do NURC/ RJ. Foram escolhidos seis inquéritos da década de 90, o que totalizou 175 dados distribuídos da seguinte forma: 37% 63% Nós A gente Gráfico 1: Distribuição entre nós X a gente no corpus oral Analisou-se, primeiramente, a categoria de tempo nos verbos que acompanham as variantes investigadas. Postula-se a hipótese de que, por ser uma forma menos marcada, a gente deva aparecer junto a tempos verbais menos marcados. Os tempos verbais mais marcados, segundo Lopes (1993), apresentam suas próprias desinências de modo, tempo e aspecto (MTA) ou número e pessoa (NP). É o caso do pretérito perfeito, por exemplo, que apresenta marca de NP específica, ao contrário do presente que, por não apresentar desinência de MTA, e sim um zero mórfico, e por ser mais neutro, é menos marcado. Tempo verbal Frequência PR Presente 11/ 75 = 14,7% 0.42 Pretérito perfeito 32/ 37 = 86,5% 0.86 Pretérito imperfeito 18/ 51 = 35,3% 0.29 Total 65/ 169 = 38,5% Quadro 1: resultados do fator tempo verbal em relação à variante nós A maior taxa para o emprego de nós foi encontrada com o pretérito perfeito (0.86), ao passo que o presente e o pretérito imperfeito favoreceram a gente (0.42 e 0.29, respectivamente). O resultado parece seguir o que foi observado em Omena (1986), porém contraria o resultado de Lopes (1993) para o tempo do pretérito imperfeito. Na pesquisa, Lopes afirma que houve uma leve preferência para nós com pretérito imperfeito e atribui a diferença entre seus resultados e os de Omena ao nível de escolaridade dos informantes, já que esta autora utiliza textos de informantes com baixa escolaridade e aquela, textos de informantes com nível superior completo. No presente trabalho, o favorecimento de a gente com o pretérito imperfeito pode ser resultado da amostra limitada. Apesar de ter sido verificada a distribuição das variantes em relação à saliência fônica, esse fator linguístico não foi selecionado como um dos mais relevantes pelo programa estatístico. Nos moldes de Naro & Lemle (1976), a saliência fônica diz respeito ao fato de que as formas 69

mais salientes tendem a ser mais marcadas. A escala de saliência foi adaptada de Lopes (1993) e compreende seis níveis, do menos saliente (nível 1) ao mais saliente (nível 6). A seguir, apresentam-se, a título de ilustração, apenas os níveis de saliência fônica favorecedores da aplicação de nós e a gente. Em relação a nós, o nível 6, característico das maiores diferenças fonológicas entre as formas de singular e de plural, mostrou-se mais favorecedor com a porcentagem de 80% (exemplo (c)). Já o nível 4, característico de monossílabos tônicos ou oxítonos que passam a paroxítonos com o acréscimo da desinência -mos, favoreceu o pronome a gente, com 92,9% (exemplo (d)). Esse resultado mantém relação direta com o resultado da variável tempo verbal, já que o nível 6 é composto por verbos, em sua maioria, na forma de pretérito perfeito e o nível 4 apresenta verbos na forma de presente. (c) Quando nós chegamos o Mauro era pequeno, ele vinha acostumado com aquele regime assim de comer bastante legumes, frutas, tudo isso, simplesmente que lá não havia nada disso né (Recontato, inq. 140, mulher, faixa etária 3) (d) não:: eu não acho que seja diferente... acho que... Tijuca no/éh/nós temos altos índices também de::... de violência né? (Complementar, inq. 25, mulher, faixa 1) Outra variante analisada foi a que se refere à questão de indeterminação do referente, euampliado. De acordo com o que Lopes (1993) argumenta, haveria um continuum de [+ determinação] em relação à inclusão do interlocutor e da não-pessoa no discurso. Interessam a este trabalho dois níveis, ou aspectos, de determinação: o aspecto exclusivo que se traduz por eu + pessoa que não faz parte da enunciação e o aspecto genérico que apresenta o nível máximo de abrangência de pessoas, sendo [- determinado]. Eu-ampliado Frequência PR Exclusivo 48/ 103 = 46,6% 0.59 Genérico 17/ 70 = 24,3% 0.36 Total 65/ 173 = 37,6% Quadro 2: resultados do fator eu-ampliado em relação à variante nós O resultado revela que o pronome a gente é predominante na ampliação da referência, confirmando uma das hipóteses iniciais, visto que o item gramaticalizado ainda guarda o traço de coletividade de quando era um sintagma nominal. Analisou-se, também, a idade dos informantes. Tendo por base os resultados encontrados em pesquisas anteriores (LOPES, 1993; OMENA, 1986, 2003), espera-se observar maior frequência da variante nós no texto oral de informantes da faixa etária 3, enquanto os jovens seriam responsáveis pelo maior uso da variante inovadora a gente. De acordo com Mollica et alii (2008), os falantes adultos, em geral, tendem a oscilar sua frequência de uso ora se aproximando dos jovens, ora dos idosos motivados, costumeiramente, por razões extralingüísticas, como a inserção no mercado de trabalho. Os resultados do uso de nós e a gente em relação à variável idade são apresentados no quadro abaixo: etária Frequência PR etária 1 1/ 58 = 1,7% 0.05 etária 2 15/ 49 = 30,6% 0.72 etária 3 49/ 68 = 72,1% 0.85 70

Total 65/ 175 = 37,1% Quadro 3: resultados do fator faixa etária em relação à variante nós Embora as frequências de uso de nós dos informantes adultos e idosos sejam bem diferentes, os pesos relativos são bem próximos (0.72 para os adultos e 0.85 para os idosos). No quadro 4, a diferença residiria entre os jovens e os falantes das outras faixas etárias. O alto emprego de a gente pelos jovens (98,3% e 0.95) pode ser explicado pela preferência dessa faixa etária por variantes mais inovadoras, enquanto que os idosos preferem a variante mais conservadora. Os gráficos abaixo ilustram a distribuição das variantes pelas faixas etárias. 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 1,7 etária 1 30,6 etária 2 72,1 etária 3 Nós 1 0,9 0,8 0,7 0,6 0,5 0,4 0,3 0,2 0,1 0 0,05 etária 1 0,72 etária 2 0,85 etária 3 Nós Gráfico 2: frequência da variante nós em relação ao fator faixa etária Gráfico 3: peso relativo da variante nós em relação ao fator faixa etária O gráfico 2 apresenta uma linha em curva ascendente, enquanto o gráfico 3, que apresenta os valores do peso relativo de nós, revela uma elevação abrupta da faixa etária 1 para a faixa etária 2 e mantém, praticamente, os mesmos índices para as faixas etárias mais velhas. Resultados do corpus de escrita Com base nos textos do VARPORT, foram encontrados 8 dados que serão observados a partir das variáveis tempo verbal e gênero do texto. A distribuição total dos dados encontra-se no gráfico 4: 13% Nós A gente 87% Gráfico 4: Distribuição entre nós X a gente no corpus escrito 71

Cotejando os gráficos 1 e 4, verifica-se que há uma maior frequência do pronome a gente nos dados de fala, enquanto, na escrita, a predominância é de nós. O texto escrito, por ser mais passível de pressões conservadoras, dá maior preferência à forma mais antiga na língua, ao contrário do texto oral, que tende a apresentar mais ocorrências da forma inovadora. Nas tabelas abaixo, observam-se os resultados em relação aos fatores tempo do verbo e gênero textual. Tempo verbal Frequência Presente 6/ 7 = 85,7% Pretérito Perfeito 1 /1 = 100% Total 7/8 = 87,5% Quadro 4: resultados do fator tempo verbal em relação à variante nós Gênero Textual Frequência Anúncio 5/ 6 = 85,3% Editorial 2 /2 = 100% Total 7/8 = 87,5% Quadro 5: resultados do fator gênero textual em relação à variante nós O único dado de a gente no corpus escrito foi encontrado em um anúncio da PageNet (exemplo (e)), que é uma empresa fabricante de pagers, aparelhos para comunicação de rede wireless que fizeram sucesso nos anos 90. As empresas de inovações tecnológicas sempre têm o jovem como público alvo, porque representam os maiores consumidores desse tipo de produto. Retomando os dados do quadro 3, percebe-se que, entre os falantes da faixa etária 1, há o predomínio do pronome a gente. Como o foco da PageNet é voltado para o segmento jovem da sociedade, fica, assim, justificado o uso do pronome, uma vez que tem ampla aceitação e é empregado em larga escala por esse público. (e) Você compra um PageNet, usa e, se depois de 4 meses você não estiver satisfeito, a gente compra o seu PageNet de volta. (E-B-94-Ja-017, 1998) O cruzamento de dados revela que o gênero anúncio é marcado pelo tempo presente do indicativo em 100%, enquanto o editorial apresenta uma ocorrência de verbo no pretérito perfeito e uma no presente. Devido às características intrínsecas do anúncio, como a tentativa de estabelecer uma conexão com o interlocutor no momento da leitura e as estratégias de persuasão, já se esperava um predomínio do presente nesse tipo de gênero. Embora haja apenas um dado de pretérito perfeito, o que inviabiliza qualquer afirmação mais categórica, pode-se estabelecer um paralelo com o resultado encontrado nos dados de fala para o tempo verbal. Neste, também houve uma alta frequência de pretérito perfeito em relação a nós (86,5% no oral e 100% na escrita), sugerindo um contexto favorecedor para a variante. Ensinar o quê? Por quê? Lucchesi (2002: 67), abordando o problema da avaliação, afirma que o julgamento que os falantes fazem das variantes linguísticas pode servir como indicador das mudanças em curso na comunidade. A variação nós e a gente parece não sofrer julgamentos explícitos entre os falantes do português brasileiro. Pesquisas como a de Omena (1986), que investigou o fenômeno na fala popular, e a de Lopes (1993), que observou a fala culta de cinco capitais brasileiras, também apontam para o fato de que não se trata de uma variação relacionada à escolaridade ou à região dos entrevistados. Em outras palavras, na pluralidade de normas que compõem a realidade 72

linguística brasileira, não há estigmatização de uma das variantes, mas o convívio harmônico entre elas. Da mesma forma que a realidade linguística do Brasil não é homogênea, Travaglia (2003) chama a atenção para o fato de o ensino ser plural, o que possibilita novos caminhos de empreitada pedagógica, aliando velhas concepções com novas práticas. Muitos professores, por acharem que o aluno já conhece o pronome a gente, relegariam-no a segundo plano, enquanto outros, imbuídos de um discurso liberal, esqueceriam do pronome nós em favor de se ensinar o que é mais corrente na fala dos estudantes. Essas perspectivas pedagógicas centradas ou no código ou no uso do código são, frequentemente, prejudiciais ao ensino, uma vez que acabam por não habilitar o aluno a dominar o código linguístico nas mais diversas situações de comunicação. Como Gagné (2002) aborda, compete ao professor de língua portuguesa apresentar aos alunos as duas variantes, pautando o ensino na não-estigmatização. Seria interessante também que o professor mostrasse as estratégias de que dispõe a língua para indeterminar o sujeito gramatical. Como se pode verificar em pesquisas de cunho sociolinguístico (OMENA, 1986; LOPES, 1999) e funcionalista (ALMEIDA, 1991), a questão da vaguidade referencial não se restringe aos casos clássicos relatados na tradição gramatical. No gráfico 2, os resultados encontrados indicam essa possibilidade de tornar o sujeito indefinido, principalmente, através do pronome a gente. Para que essas propostas se tornem realidade, seria necessário que os projetos pedagógicos das escolas buscassem amparo em pesquisas de base linguística, assim como estas deveriam procurar aliar o tratamento descritivo e teórico à prática de ensino. Considerações finais Apresentaram-se, neste trabalho, dados de variação entre nós e a gente no português culto carioca. A forma nós é mais recorrente com o pretérito perfeito, na fala de idosos e em textos escritos. Já a forma a gente é predominante nos dados de jovens e com o verbo no presente do indicativo e pretérito imperfeito. Observou-se, também, que a forma inovadora se acomoda melhor na indeterminação do sujeito, uma vez que carrega traços menos marcados. REFERÊNCIAS ALMEIDA, M. L. L. de. A indeterminação do sujeito no português falado. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1991. CALLOU, D.; BARBOSA, A.; LOPES, C. O português do Brasil: polarização sociolinguística. In: CARDOSO, S. et alii (org.). Quinhentos anos de história linguística do Brasil. Salvador: Funcultura, 2006. GAGNÉ, G. A norma e o ensino da língua materna. In: BAGNO, M. et alii. Língua Materna. Letramento, variação & ensino. São Paulo: Parábola editorial, 2002. 73

LOPES, C. R. dos S. Nós e a gente no português falado culto do Brasil. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1993.. De gente para a gente: o século XIX como fase de transição In: ALKMIN, T. M. Para a história do português brasileiro. Vol. III. São Paulo: FLP/ USP, 2002. LUCCHESI, D. Norma linguística e realidade social. In: BAGNO, M. (org.) Linguística da norma. São Paulo: Loyola, 2002. MOLLICA, M. C. et alii. Introdução à Sociolinguística. São Paulo: Contexto, 2008. OMENA, N. P. A referência variável da 1º pessoa do discurso no plural. In: Relatório apresentado à FINEP, 1986 (sem referência completa).. A referência à primeira pessoa do plural: variação ou mudança? In: PAIVA, M. da C. & DUARTE, M. E. L. Mudança linguística em tempo real. Rio de Janeiro Contra capa livraria, 2003. TRAVAGLIA, L. C. Gramática: ensino plural. São Paulo: Cortez editora, 2003. WEINREICH, U.; LABOV, W. & HERZOG, M. Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística. Tradução: Marcos Bagno. São Paulo: Parábola editorial, 2006. REFERÊNCIAS DA INTERNET CALLOU, D. M. I. et alii. NURC/ RJ. Disponível em http://www.letras.ufrj.br/nurc-rj/. Acessado em 10 de Junho de 2010. BRANDÃO, S. F. et alii. VARPORT. Disponível em http://www.letras.ufrj.br/varport/. Acessado em 12 de Junho de 2010. 74