ANAIS DA XX JORNADA GELNE JOÃO PESSOA-PB 1259 A INFLUÊNCIA DO PORTUGUÊS BRASILEIRO NA FALA DE PORTUGUESES: O CASO DA HARMONIA VOCÁLICA Juliana Radatz Kickhöfel * Liliane da Silva Prestes ** Carmen Lúcia Barreto Matzenauer *** 1. Sobre as vogais no PB e no PE Em Português, o vocalismo átono apresenta variação. A realização das vogais médias, especialmente na posição pretônica, contribui para a configuração de áreas dialetais, tanto entre diferentes países de fala portuguesa, quanto entre regiões de um mesmo país. No Português Brasileiro (PB), o sistema vocálico é constituído por sete segmentos na pauta tônica. Já na pauta pretônica, segundo Mattoso Câmara (1972), há a perda de oposição entre as vogais médias, o que configura o fenômeno da neutralização, reduzindo o sistema a cinco vogais nessa posição. Tal processo ocorre categoricamente em todos os dialetos do PB. Assim, a realização fonética das vogais médias coronais [e] ou [E], bem como das vogais médias dorsais [o] ou [ç], nesse contexto, implica apenas variação alofônica, sendo caracterizadora de diferentes manifestações dialetais: em dialetos do Nordeste, as médias pretônicas podem realizar-se como [E] e [ç], em alguns contextos, enquanto nos dialetos do Sul do País, nesses mesmos ambientes, realizam-se como [e] e [o], conforme os exemplos apresentados em (1): (1) (a) realização de vogais médias pretônicas em dialetos do Nordeste 1 n[ç]vela ~ n[o]vela m[ç]ral ~ m[o]ral m[e]lão ~ m[e]lão (b) realização de vogais médias pretônicas em dialetos do Sul n[o]vela m[o]ral m[e]lão Segundo Silva (1991), quando na sílaba seguinte há uma vogal [+baixa], a forma fonética predominante no Nordeste apresenta as vogais médias baixas [E] e [ç] na posição pretônica. * PG - Universidade Católica de Pelotas ** PG - Universidade Católica de Pelotas *** Universidade Católica de Pelotas 1 Os exemplos foram retirados de Silva (1991, p. 81)
ANAIS DA XX JORNADA GELNE JOÃO PESSOA-PB 1260 Os estudos sobre o comportamento das vogais médias pretônicas do PB têm apontado que três são os processos a elas aplicados em formas nominais da língua, conforme aparece em (2). Salientamos que os três processos têm natureza variável. (2) (a) abaixamento exs.: n[ç]vela, m[e]lão; (b) elevação exs.: b[u]lacha, g[u]verno; (c) harmonia vocálica exs.: m[i]nino, [c[u]ruja. A partir da identificação desses processos, podemos verificar que, foneticamente, sete vogais podem aparecer em posição pretônica no PB [i, e, E, å, ç, o, u], sendo que, no Sul, como não há a aplicação da regra de abaixamento, somente cinco vogais se fazem foneticamente presentes em nessa posição: [i, e, å, o, u]. No Português falado no Rio Grande do Sul, um dos fenômenos variáveis que a vogal média pretônica apresenta em nomes é a harmonização vocálica. Essa é uma regra de assimilação regressiva condicionada pela presença de uma vogal alta na sílaba contígua à vogal média, sendo favorecida por ambientes consonantais específicos (consoante precendente e consoante seguinte), segundo Bisol (1981) e Schwindt (2002). É um processo fonológico que tem motivação fonética: é regido pelo princípio da antecipação, ou seja, há uma tendência à preparação para a prática de um gesto seguinte, o que possibilita a aproximação das articulações, simplificando-as, de acordo com a lei do menor esforço. É uma regra variável, condicionada preponderantemente por fatores lingüísticos, que, segundo SCHWINDT (2002: 162), tem baixa aplicação no português brasileiro e que, do ponto de vista da mudança lingüística, é um processo estável, visto que, com base em dados do VARSUL 2, a porcentagem de aplicação da regra em 2001, no Rio Grande do Sul, era de 36% para /e/ e 42% para /o/, contra 24% para /e/ e 36% para /o/, em 1981. Da mesma forma que o PB, o Português Europeu (PE) também apresenta sete fonemas vocálicos na pauta tônica e cinco na pauta pretônica, mas, diferentemente do PB, o PE registra a aplicação predominante de dois processos às vogais em posição pretônica, os quais são apontados em (3). (3) (a) Elevação/redução exs.: m[u]rar, s[u]noro, p[ˆ]gar, t[ˆ]lhado; (b) Apagamento exs.: [pk]eno, [sg]uro 3 Assim, foneticamente, na pauta pretônica o número de segmentos vocálicos no PE reduz-se a apenas quatro: [i, ˆ, å, u] 4. Comparando os dois sistemas átonos, constatamos que, no PE, a variação da média pretônica se apresenta de maneira diversa da que ocorre no PB. Pode a vogal ser apagada em determinados contextos (vocábulos que têm /e/ na posição pretônica) ou Ter sua realização 2 VARSUL (Variação Lingüística Urbana da Região Sul do País) 3 Os exemplos são retirados de Mateus et all (2003) e Mateus & d Andrade (2000). 4 Segundo Mateus & d Andrade (2000, p. 58-59), as formas fonéticas [e], [E], [o] e [ç] podem aparecer em início de palavra com onset vazio exs.: [E]lvira, [i]conomia ~ [e]conomia, [o]spital ~ [ç]spital. Também os autores (p.135) referem que não há a redução de vogais átonas (pretônicas ou postônicas) em sílaba fechada pela coda /l/ exs.: b[e]ldade, incrív[e]l, v[ç]ltar, álco[ç]l.
ANAIS DA XX JORNADA GELNE JOÃO PESSOA-PB 1261 reduzida, para a vogal [-tensa] [ˆ] ou ser elevada: [i] é a realização da vogal [- alta] /e/ e [u] é a realização da vogal /o/ (Mateus e d Andrade, 2000). Assim, quando há realização da pretônica, o PE articula-a da seguinte forma: FIGURA 1: ELEVAÇÃO E RECUO DAS VOGAIS ÁTONAS + alta i ˆ u -alta e o -baixa å +baixa E ç - recuada + recuada (MATEUS et al. 2003: 1013) Diferentemente do PB, o PE tende a não apresentar, no nível fonético, vogais médias em posição pretônica 5 : nessa posição, essas vogais, ou sofrem elevação/redução ou são apagadas. Em virtude desse fato, as vogais médias altas do PE ao contrário do que ocorre no PB não apresentam o processo de harmonização vocálica, uma vez que esse é sangrado pelos outros dois processos aplicados às vogais médias pretônicas. a 2. Metodologia da pesquisa A partir dessas constatações, propôs-se uma pesquisa cujo objetivo principal era verificar se falantes do PE, expostos ao dialeto gaúcho durante um longo período, apresentam, em formas fonéticas de nomes da língua, vogais médias altas pretônicas e, conseqüentemente, se a elas aplicam a regra de harmonização vocálica que, como já foi referido, é variável nesse dialeto e não se faz presente no PE. A primeira etapa da investigação consistiu na gravação de trinta minutos de fala espontânea de dois falantes nativos de PE, residentes na cidade de Pelotas (RS) há mais de trinta anos, e de dois residentes na cidade de Aveiro, Portugal, bem como na utilização de 5 Além dos casos excepcionais de emprego de vogais médias, em posição pretônica, em formas fonéticas do PE, Mateus & d Andrade (2000, p. 135-136) referem que vogais médias altas são foneticamente realizadas, em sílabas pretônicas, quando constituem ditongos exs.: c[oj]tado, end[ew]sar.
ANAIS DA XX JORNADA GELNE JOÃO PESSOA-PB 1262 gravações de dois informantes de Pelotas, falantes nativos de PB, que integram o Banco de Dados Sociolingüísticos da Fronteira e da Campanha Sul-riograndense (BDS Pampa), constituído na UCPEL. Todos os informantes desta pesquisa são homens de mais de cinqüenta anos e têm o equivalente ao primeiro grau incompleto. Inicialmente realizamos a análise do comportamento das vogais médias pretônicas nos dados dos informantes brasileiros e nos dados dos informantes portugueses residentes em Portugal, a fim de verificarmos a aplicação variável da regra de harmonia vocálica nos falantes de PB e a sua não aplicação em falantes de PE, e os resultado confirmaram as informações contidas na literatura (MATEUS et al, 2003; BISOL, 1981; SCHWINDT, 2002). Em razão desse fato, torna-se desnecessária a apresentação aqui dos resultados obtidos. A seguir, passamos à coleta dos dados dos informantes portugueses residentes em Pelotas, seguindo-se a proposta laboviana de realização de diálogos e de elicitação de narrativas. Embora o corpus coletado já demonstrasse a existência de variação no emprego da vogal média pretônica, obtivemos pouca quantidade de dados relativos ao foco do presente estudo. Em razão desse fato, criamos, então, um instrumento para embasar a análise desta investigação: foi elaborada uma lista de cento e dez palavras que continham a vogal alta /i/ na sílaba tônica e das vogais médias /e/ e /o/ em sílaba pretônica, associadas a todos os possíveis contextos de aplicação/não-aplicação da regra. Para a constituição do instrumento, tomamos como parâmetro o estudo de Bisol (1981). As palavras deveriam ser ditas na frase : É melhor dizer (menino, polido) de novo. 6 Os dados foram transcritos foneticamente, codificados e submetidos a uma análise estatística pelo programa computacional VARBRUL. Foram analisados os fatores lingüísticos que favorecem a aplicação da regra no dialeto gaúcho, segundo Bisol (1981), para verificar se e como os falantes nativos de PE, em contato com o PB há mais de 30 anos, aplicavam a regra de harmonia vocálica às vogais médias pretônicas. Foram quatro as variáveis lingüísticas controladas nesta pesquisa, mostradas em (4): (4) Variáveis lingüísticas controladas na pesquisa: a) consoante precedente quanto ao ponto de articulação; b) consoante seguinte quanto ao ponto de articulação; c) proximidade da vogal média em relação à sílaba tônica; d) nasalidade.da vogal média pretônica Os dados de cada informante foram submetidos a uma análise individual, tanto para a vogal /e/ quanto para a vogal /o/, ambas em ambiente pretônico. As variáveis dependentes, para a vogal /e/, foram: (a) aplicação da harmonização vocálica, (b) redução e (c) realização plena da pretônica. Para a vogal /o/, as variáveis dependentes foram: (a) aplicação da harmonia vocálica e (b) realização plena da pretônica, pois não há, no PE, redução da pretônica /o/. 3. Descrição e análise dos dados Realizada a transcrição fonética dos dados, um fato, desde logo, ficou evidente diferentemente do que ocorre com os falantes nativos de PE residentes em Portugual, os 6 O tipo de frase aqui utilizada está contida no instrumento anteriormente empregado por MORAES & WETZELS (1992) para a análise da duração dos segmentos nasais e nasalizados em Português.
ANAIS DA XX JORNADA GELNE JOÃO PESSOA-PB 1263 portugueses residentes no Brasil apresentaram, em suas realizações fonéticas, a presença das vogais médias altas [e] e [o], em posição pretônica, como ocorre com os falantes de PB residentes no Sul do País aí estava a primeira evidência do condicionamento que o PB já exerceu sobre a sua expressão lingüística. A observação da presença das pretônicas [e] e [o] nos informantes portugueses foi fundamental para o desenvolvimento do foco da pesquisa, que era, conforme já foi referido, a verificação da ocorrência ou não da aplicação da regra de harmonia a essas vogais, fenômeno que, embora com caráter variável, é característico do PB e inexistente nas formas nominais do PE. Outro resultado que também logo foi identificado como decorrente da influência, na fala dos informantes, do funcionamento do PB foi a nãoocorrência, no corpus da pesquisa, de apagamento da vogal média pretônica, fenômeno descrito como operante no PE. Assim, vimos que os dados coletados permitiriam responder às duas questões fundamentais que norteavam a pesquisa, já contidas no objetivo do trabalho: (a) Falantes do PE, expostos ao dialeto gaúcho durante um longo período, apresentam, em formas fonéticas de nomes da língua, vogais médias altas em posição pretônica? (b) Esses falantes nativos de PE aplicam a regra de harmonização vocálica a essas vogais? Na verdade, apenas com a transcrição dos dados, já foi possível dar uma resposta afirmativa à primeira questão proposta no trabalho. Para responder à segunda questão era indispensável submeter os dados a um tratamento estatístico. Aplicado o programa computacional, verificamos que, dentre as variáveis lingüísticas listadas acima, a letra (d) nasalidade da vogal média pretônica apresentou knockout tanto para /e/ como para /o/, com a permanência da média alta, nos dados dos dois informantes. Esse resultado evidencia que a nasalidade é um fator de permanência da vogal média. Nos estudos de Bisol (1981), a nasalidade é um traço que favorece a elevação de /e/ e tende a inibir a elevação de /o/, em falantes nativos de PB, residentes no RS. A utilização do programa VARBRUL possibilitou-nos a descrição e a análise dos resultados. Foram selecionadas como estatisticamente relevantes, para cada informante falante nativo de PE, as variáveis a seguir apresentadas. Os resultados são mostrados em quadros, com o registro dos dados obtidos. 3.1. Informante A: 3.1.1. Vogal pretônica /e/: Para a vogal pretônica /e/, o programa selecionou um grupo de fatores para a variável dependente redução da vogal pretônica, o qual aparece no Quadro 1. QUADRO 1: CONSOANTE SEGUINTE QUANTO AO PONTO DE ARTICULAÇÃO (redução da vogal pretônica) Informante A: Coronal [-ant] 8/9 89%.85 Regime Coronal [+ ant] 9/27 33%.27 Ferida Labial 10/12 83%.78 Preferido Dorsal 3/7 43%.35 Preguiça Observando-se o Quadro 1, verificamos que, com relação à consoante seguinte quanto ao ponto de articulação, a classe que mais favorece a redução da vogal média pretônica é a
ANAIS DA XX JORNADA GELNE JOÃO PESSOA-PB 1264 coronal [-anterior] (.85), seguida da labial (.78). Segundo Bisol (1981), as coronais [- anteriores], especialmente as palatais, tendem a propiciar a elevação das vogais /e/ e /o/, enquanto que as labiais favorecem apenas a elevação de /o/. Assim, podemos concluir que o Informante A, embora apresente vogais médias altas em posição pretônica, tende a reduzi-las como o fazem os falantes nativos de PE, sendo que essa redução, que é, também, um tipo de elevação, é favorecida por contextos lingüísticos que, de forma geral, também condicionam a elevação de vogais médias por falantes nativos de PB. Merece destaque o fato de que, para a vogal /e/, em relação à variável dependente aplicação da harmonia vocálica, o programa estatístico não selecionou qualquer variável, o que parece ser indicativo de que a regra de harmonia vocálica somente pode tender a ser aplicada, por falantes nativos de PE, em etapa evolutiva bem subseqüente àquela que corresponde ao emprego das vogais médias altas em posição pretônica. Esse fato pode ser indicativo de que a influência do PB sobre os falantes de PE é gradativa, como também pode ser indicativo de que pode afetar alguns fenômenos de caráter fonético-fonológicos enquanto outros permanecem imunes a essa influência. 3.1.2. Vogal pretônica /o/: Para a vogal pretônica /o/, o programa selecionou um grupo de fatores para a variável dependente aplicação da harmonia vocálica, o qual aparece no Quadro 2. QUADRO 2: CONSOANTE PRECEDENTE QUANTO AO PONTO DE ARTICULAÇÃO (aplicação da harmonia vocálica) Informante A: Coronal [-ant] 1/5 20%.09 Propina Coronal [+ ant] 12/19 63%.42 Domingo Labial 12/13 92%.83 Bonita Dorsal 12/18 67%.45 Gorila O Quadro 2 demonstra não somente que o Informante A já mostra, em suas formas fonéticas, a aplicação da regra de harmonia vocálica, como também expressa que o ponto de articulação labial da consoante precedente (.83) favorece a aplicação dessa harmonia, coincidindo com os resultados de Bisol (1981) e de Schwindt (2002). 3.2. Informante B: 3.2.1.Vogal pretônica /e/: Para a vogal pretônica /e/, o programa selecionou dois grupos de fatores: um para a variável dependente realização plena da vogal média, o qual aparece no Quadro 3, e um para a variável dependente redução da vogal pretônica, o qual aparece no Quadro 4.
ANAIS DA XX JORNADA GELNE JOÃO PESSOA-PB 1265 QUADRO 3: PROXIMIDADE DA VOGAL MÉDIA EM RELAÇÃO À SÍLABA TÔNICA (realização plena) Informante B: Uma sílaba 51/53 96%.56 Pedido Duas sílabas 4/6 67%.09 Mexerico O Quadro 3 é evidência não somente de que o falante nativo de PE residente no Brasil realiza a vogal média [e] em posição pretônica, como mostra que a realização plena dessa vogal média pretônica é favorecida pela presença da vogal alta na sílaba seguinte, o que pode indicar que, quanto mais próxima a pretônica estiver da tônica, mais ela tende a se preservar, ou seja, pode estar indicando que, para esse falante, existe uma tendência crescente de conservação dos segmentos em direção à tônica. Tal fato se confirma pelos resultados obtidos no quadro a seguir, que trata da redução da pretônica: QUADRO 4: PROXIMIDADE DA VOGAL MÉDIA EM RELAÇÃO À SÍLABA TÔNICA (redução da pretônica /e/) Informante B: Uma sílaba 2/53 4%.44 Gemido Duas sílabas 2/6 33%.91 Prevenido Como podemos verificar, a ocorrência significativa de redução da vogal média pretônica /e/ se dá a duas sílabas da tônica (.91). Para a aplicação da harmonia vocálica, em se tratando do Informante B, também o programa não selecionou qualquer das variáveis controladas na pesquisa. 3.2.2. Vogal pretônica /o/: Para a vogal pretônica /o/, o programa selecionou um grupo de fatores para a variável dependente aplicação da harmonia vocálica, o qual aparece no Quadro 5. QUADRO 5: CONSOANTE SEGUINTE QUANTO AO PONTO DE ARTICULAÇÃO (aplicação da harmonia vocálica) Informante B: Coronal [-ant] 5/6 83%.75 Mochila Coronal [+ ant] 21/30 70%.58 Formiga Labial 9/13 69%.57 Noviça Dorsal 1/8 13%.08 Sorriso No Quadro 5, temos evidência de que o Informante B mostra, em seus dados, o emprego da harmonia vocálica e também podemos verificar o favorecimento, para a aplicação da regra, que representa a presença de uma consoante seguinte portadora da propriedade [coronal,-
ANAIS DA XX JORNADA GELNE JOÃO PESSOA-PB 1266 anterior] (.75). Também não podemos deixar de salientar que uma consoante seguinte com o traço [dorsal] desfavorece a aplicação da regra. O resultado desse grupo de fatores confirma os achados no estudo de Bisol (1981), segundo o qual a presença da propriedade [dorsal] na consoante seguinte à vogal média pretônica é a que menos favorece a harmonização vocálica. Para fazer uma análise mais aprofundada dos dados, consideramos necessário realizar uma rodada em conjunto dos dados dos dois informantes falantes nativos de PE, separando os resultados relativos às vogais pretônicas /e/ e /o/. Cabe salientar que, para a vogal /o/, somente foi analisado o grupo de fatores que diz respeito à aplicação da harmonia, visto que, como já foi referido, não há redução de /o/, pois, no PE, este é produzido foneticamente como [u] na posição pretônica. 3.3. Análise conjunta dos informantes: 3.3.1. Vogal pretônica /e/: Para a vogal pretônica /e/, o programa selecionou três grupos de fatores: um para a variável dependente realização plena da vogal média, o qual aparece no Quadro 6 e dois para a variável dependente redução da vogal pretônica, os quais aparecem nos Quadros 7 e 8. QUADRO 6: CONSOANTE PRECEDENTE QUANTO AO PONTO DE ARTICULAÇÃO (realização plena) Informantes A e B: Coronal [-ant] 16/34 47%.87 Gengiva Coronal [+ ant] 13/14 93%.31 Seguinte Labial 25/40 63%.46 Pepino Dorsal 14/19 74%.59 Querido Os dados do Quadro 6 confirmam, agora para os dois informantes falantes nativos de PE, a tendência à realização plena da vogal média [e] em posição pretônica, contrariando o que acontece com os portugueses que ainda vivem em seu país de origem, e evidenciando a influência que sua fonologia mostra do PB. Juntando-se os dados dos Informantes A e B, podemos ver que a realização plena da pretônica se mostra favorecida quando vem precedida por consoante das classes [coronal,-anterior] (.87) e [dorsal] (.59) esse resultado expressa que consoantes com a propriedade [-anterior], precedendo a vogal média [e], tendem a preservá-la, mantendo-a resistente às regras a que estão sujeitas as vogais médias em posição pretônica. Os dois quadros seguintes evidenciam que os dois informantes desta pesquisa ainda mostram a tendência à aplicação da redução da vogal média alta pretônica /e/, processo característico do PE.
ANAIS DA XX JORNADA GELNE JOÃO PESSOA-PB 1267 QUADRO 7: CONSOANTE PRECEDENTE QUANTO AO PONTO DE ARTICULAÇÃO (redução da pretônica /e/) Informantes A e B: Coronal [-ant] 2/14 14%.24 Xerife Coronal [+ ant] 16/34 47%.73 Manequim Labial 13/40 32%.48 Bebida Dorsal 3/19 16%.33 Esquecido Os resultados expressos no Quadro 7 registram que uma consoante precedente à vogal média, que contenha a propriedade [coronal, +anterior], tende a favorecer a redução dessa vogal. QUADRO 8: CONSOANTE SEGUINTE QUANTO AO PONTO DE ARTICULAÇÃO (redução da pretônica /e/) Informantes A e B: Coronal [-ant] 9/21 43%.70 Mexido Coronal [+ant] 9/52 17%.39 Ferida Labial 12/25 48%.68 Temido Dorsal 4/16 25%.29 Guerrilha Pelos dados do Quadro 8, vemos que a presença de uma consoante [coronal,-anterior] ou [labial], em contexto seguinte à vogal média alta /e/, tende a favorecer sua redução. O que é importante ressaltar aqui é que os dados do Quadro 8 estão corroborando os registros do Quadro 1, referente apenas ao Informante A, e, ainda, que os resultados dos Quadros 7 e 8, relativos ao favorecimento da redução da vogal /e/ pretônica nos dois informantes portugueses, não são contraditórios com os resultados do Quadro 6, que evidencia a tendência que, por influência do PB, esses falantes mostram no sentido de empregar a vogal [e] em posição pretônica, contrariando o que ainda hoje ocorre em Portugal. 3.3.2. Vogal pretônica /o/: Para a vogal pretônica /o/, o programa selecionou, em se tratando do conjunto de dados dos dois informantes da pesquisa, dois grupos de fatores para a variável dependente aplicação da harmonia vocálica, os quais aparecem nos Quadros 9 e 10.
ANAIS DA XX JORNADA GELNE JOÃO PESSOA-PB 1268 QUADRO 9: CONSOANTE PRECEDENTE QUANTO AO PONTO DE ARTICULAÇÃO (aplicação da harmonia vocálica) Informantes A e B: Coronal [-ant] 1/12 8%.06 Choquito Coronal [+ ant] 24/37 65%.51 Sortido Labial 24/27 89%.83 Bobina Dorsal 24/36 67%.43 Coringa QUADRO 10: CONSOANTE SEGUINTE QUANTO AO PONTO DE ARTICULAÇÃO (aplicação da harmonia vocálica) Informantes A e B: Coronal [-ant] 10/11 91%.83 Recolhido Coronal [+ant] 41/59 69%.54 Cozido Labial 19/28 68%.51 Novilha Dorsal 3/14 21%.12 Boquinha Os dados apresentados nos Quadros 9 e 10, referentes aos corpora dos dois informantes da pesquisa, além de consistentes com os resultados obtidos com cada falante nativo de PE isoladamente, mostram que há uma tendência à aplicação da regra de harmonia vocálica à vogal /o/ pretônica quando essa é precedida por uma consoante [labial] e seguida por uma consoante [coronal,-anterior]. Esses resultados vêm ao encontro das conclusões mostradas por Bisol (1981) e por Schwindt (2002), no sentido de que tais contextos não somente favorecem a regra de elevação da vogal pretônica /o/, mas também de sua submissão à regra de harmonia vocálica. Pelo fato de os mesmos fatores favorecedores da elevação de vogais pretônicas terem sido selecionados pelo VARBRUL como também favorecedores da regra de harmonia vocálica, poderia, em um primeiro momento, ser questionada a validade de sua interpretação como condicionadores da harmonia, ou seja, esse poderia ser tomado como um argumento circular, que estivesse apenas favorecendo a elevação da vogal pretônica. No entanto, esse questionamento seria falacioso, porque os dois informantes desta pesquisa, diferentemente do que fazem os falantes nativos de PE que residem em Portugal, empregam a vogal média [o] em posição pretônica, ao contrário de a elevarem como fazem os portugueses de forma quase categórica. Portanto, os contextos mostrados nos Quadros 9 e 10 como favorecedores da harmonia vocálica são efetivamente condicionadores dessa regra, pois os informantes poderiam não ter usado a forma fonética [u], já que seus dados, por influência do PB, mostram muitos exemplos da manutenção da vogal média [o] em posição pretônica (Exs.: b[o]bina, pr[o]pina). Além disso, merece ser retomado aqui o fato de que de as médias pretônicas nasalizadas nunca foram elevadas pelos informantes da pesquisa (Exs.: c[õ]nvite, c[õ]ndição)
ANAIS DA XX JORNADA GELNE JOÃO PESSOA-PB 1269 4. Considerações Finais Os dados analisados no presente estudo mostraram que os falantes nativos de PE, em contato continuado com o PB, passam a integrar, em seu sistema, aspectos fonéticofonológicos característicos da região brasileira em que estão inseridos. Essa conclusão é corroborada pelo fato de os informantes desta pesquisa, falantes nativos de PE, realizarem foneticamente as vogais médias altas [e] e [o] em posição pretônica, deixando de aplicar uma regra característica do PE a regra de apagamento da vogal [e] pretônica e diminuindo a incidência de aplicação da regra de elevação/redução das vogais médias altas pretônicas. Esse fato mostrou que, diferentemente do sistema fonético pretônico dos portugueses que vivem em Portugal, os informantes deste trabalho têm um inventário fonético, nessa posição, constituído por seis vogais: [i, ˆ, e, å, o, u]; e isso ocorre, indubitavelmente, por influência do PB. Outra interpretação a que os dados deste estudo podem levar diz respeito à gradiência da incorporação de características de uma língua ou de um dialeto ao sistema fonéticofonológico nativo do falante embora os dois informantes do presente trabalho revelem a manutenção das vogais médias altas em posição pretônica por influência do PB, o que lhes possibilitaria aplicar, como os falantes de PB, a regra de harmonia vocálica, mostram a tendência a aplicar essa regra preferencialmente à vogal média alta dorsal /o/, revelando, em relação à vogal /e/, maior tendência à sua preservação ou à sua redução. Somente uma pesquisa longitudinal, ou uma nova coleta de dados realizada daqui a alguns anos, poderia revelar se os informantes desta investigação aumentarão a incidência de uso da regra de harmonia vocálica e se passarão a aplicá-la significativamente também em relação à vogal média alta coronal pretônica /e/. REFERÊNCIAS BISOL, Leda. Harmonização Vocálica: uma regra variável. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1981. CALLOU, D.; MORAES, J. A.& LEITE. Y. O vocalismo do português. Letras de Hoje. Porto Alegre. V. 31. n. 2, p. 27-40, junho 1996. CÂMARA MATTOSO JR, J. Estrutura da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Vozes, 1972. MATEUS, M. H. M. et al. Gramática da Língua Portuguesa. 5. ed. revista e atualizada. Lisboa: Caminho, 2003. MATEUS, M. H. M. & d ANDRADE. The Phonology of Portuguese. Oxford: Blackwell, 2000. MATZENAUER. C. L. B. & MIRANDA, A. R. M. Uma análise da harmonia vocálica e da metafonia nominal com base em restrições. In: HORA, Dermeval. & COLLICHON, Gisela. Teoria Lingüística: Fonologia e outros temas. João Pessoa: UFPB, 2003. MORAES, J. A & WETZELS, L. W. Sobre a duração dos segmentos vocálicos nasais e nasalizados em Português. Um exercício de fonologia experimental. Cadernos de Estudos Lingüísticos. Campinas: UNICAMP, n. 23, p. 153-166, 1992.
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