MP Nº 544 E AS COMPRAS GOVERNAMENTAIS BRASILEIRAS NO SETOR DE DEFESA Cesar A. Guimarães Pereira Doutor em Direito (PUC/SP) Sócio de Justen, Pereira, Oliveira & Talamini 1. Âmbito de aplicabilidade A medida provisória nº 544, editada em 29 de setembro de 2011, estabeleceu um sistema especial de normas para as aquisições de produtos e serviços no setor de defesa. Este sistema será aplicável para determinadas compras e transações governamentais indicadas na MP nº 544. A legislação geral de licitações 1 será aplicável somente para questões que não sejam disciplinadas diferentemente pelas novas regras. De acordo com o artigo 1º da MP nº 544, os contratos administrativos que serão afetados pelas novas regras são (i) compras ou contratações de produtos ou sistemas de defesa e (ii) contratações para o desenvolvimento de produtos e de sistemas de defesa. A linguagem da MP pode parecer imprecisa quando se refere a contratações de produtos. O termo contratação nesta norma parece ter sido deliberadamente escolhido para abranger acordos contratuais mais complexos, como as PPP (parcerias público-privadas) mencionadas no artigo 5º. Portanto, não apenas meras compras, mas também outras formas de "contratação" relativas a produtos de defesa ou sistemas de defesa são reguladas pela MP. A MP nº 544 difere da Lei nº 12.462, cujo âmbito de aplicação depende de uma definição, dada por autoridades do governo, dos casos relacionados com os esforços para organizar a Copa do Mundo ou as Olimpíadas que podem, por esta razão, ser submetidos ao RDC Regime Diferenciado de Contratação. A MP nº 544 simplesmente contém uma definição geral de certos produtos, serviços ou sistemas e prevê que tais itens serão adquiridos de acordo com suas regras. Cada órgão da administração irá interpretar a lei e examinar os fatos observando também a legislação, como a previsão de 1 O artigo 15 estabelece que a Lei nº 8.666 será observada nestas condições. Apesar de a Lei nº 8.666 ser a lei geral de licitações no Brasil, ela não é a única a tratar do assunto. Outras leis, como a Lei nº 10.520 (que regulamenta o pregão) e a Lei nº 12.462 (que regulamenta o Regime Diferenciado de Contratações Públicas e é aplicável a contratações relativas à Copa do Mundo de 2014 e aos Jogos Olímpicos do Rio de 2016), também são aplicáveis, conforme o caso.
medidas compensatórias dispostas no art. 2º, inciso VI para determinar o conteúdo de cada edital. Também ao contrário do sistema da Lei nº 12.462, a MP nº 544 não cria uma nova modalidade de licitação. As compras governamentais no setor da defesa utilizarão as modalidades de licitação ordinariamente aplicadas, com as modificações previstas na MP. 2 Definições relevantes O artigo 2º prevê definições que são instrumentais para a aplicação do regime especial. Algumas destas definições estão destacadas abaixo. 2.1 Produto de defesa Um produto de defesa ou PRODE é definido como todos os bens, trabalho, serviço ou informação, incluindo armas, munições, meios de transporte e comunicação, uniformes e materiais de uso individual e coletivo nas atividades relacionadas com a finalidade de defesa, exceto aqueles para uso administrativo. 2.2 Produto Estratégico de Defesa Um PRODE pode ou não ser um PED um produto estratégico de defesa, definido como cada PRODE que é de interesse estratégico para a defesa nacional por causa de seu conteúdo tecnológico, a dificuldade em obtêlo ou a sua indispensabilidade. A lei contém exemplos de PED: a) recursos bélicos navais, terrestres e aeroespaciais; b) serviços técnicos especializados na área de projetos, pesquisas e desenvolvimento científico e tecnológico; e c) equipamentos e serviços técnicos especializados para a área de inteligência. 2.3 Sistema de Defesa Um sistema de defesa ou SD é aquele conjunto inter-relacionado ou interativo de PRODE que atenda a uma finalidade específica. 2.4 Empresa Estratégica de Defesa Uma das definições mais importantes é a de empresa estratégica de defesa ou EED. Esta é toda pessoa jurídica credenciada pelo Ministério da Defesa mediante o atendimento cumulativo das seguintes condições: a) ter como finalidade, em seu objeto social, a realização ou condução de atividades de pesquisa, projeto, desenvolvimento, industrialização, produção, reparo, conservação, revisão, conversão, modernização ou manutenção de PED no País, incluídas a venda e a revenda somente quando integradas às atividades industriais supracitadas; b) ter no País a sede, a sua administração e o estabelecimento industrial ou equiparado a industrial; c) dispor, no País, de comprovado conhecimento científico ou tecnológico próprio ou complementarmente, por meio de acordos de parceria com Instituição Científica e Tecnológica para realização de atividades conjuntas de pesquisa científica e tecnológica e desenvolvimento de tecnologia, produto ou processo, relacionado à atividade desenvolvida, observado o disposto no inciso VIII do caput; e
d) assegurar, em seus atos constitutivos ou nos atos de seu controlador direto ou indireto, que o conjunto de sócios ou acionistas e grupos de sócios ou acionistas estrangeiros não possam exercer em cada assembleia geral, número de votos superior a dois terços do total de votos que puderem ser exercidos pelos acionistas brasileiros presentes. A MP nº 544 está atualmente em discussão no Congresso e muitas emendas foram submetidas para alteração de vários aspectos desta definição. Uma delas propõe a redução da proporção da alínea d para 51% em vez de dois terços. No entanto, até agora não há nenhuma indicação de que os traços fundamentais desta definição serão alterados. Um aspecto particularmente importante está na alínea b, que exige que a EED tenha seu "estabelecimento industrial" no Brasil. A regra também admite um estabelecimento que seja "equivalente ao industrial". Esta é uma definição da legislação tributária que abrange os estabelecimentos tratados como se fossem indústrias para fins fiscais. Um dos estabelecimentos equivalentes são as instalações de um importador e revendedor de produtos industrializados. Portanto, um importador em cujo estabelecimento são realizadas quaisquer das atividades dispostas na alínea a acima pode vir a ser considerado como preenchendo o requisito da alínea b da definição. Com relação à alínea d, o critério para definição de controle brasileiro é formal. É exigida uma previsão nos atos constitutivos garantindo certa proporção entre os votos atribuídos aos acionistas estrangeiros e brasileiros em qualquer assembléia geral. No entanto, a disposição legal não trata de outros métodos de controle, como a existência de acordo de acionistas em que os acionistas estrangeiros e brasileiros concordam em um controle comum ou estabelecem um compromisso de votar em conjunto em determinados assuntos corporativos. Esta opção é amplamente aceita pela legislação e pela prática societária brasileira e parece não ter sido impedida pela disposição legal. Outro tópico importante é a possibilidade de um consórcio entre empresas consideradas EED e não-eed. O artigo 3º, 4º, estabelece que poderá ser admitida a participação de empresas em consórcio nos procedimentos de licitação. Isto implica que não é obrigatória a admissão de consórcios, na generalidade dos casos. O inciso I prevê que, quando houver fornecimento de PED, a liderança do consórcio deve ser atribuída a uma EED. Portanto, o consórcio pode incluir empresas não-eed. Esta pode ser uma forma de participação de empresas não-eed no fornecimento de produtos de defesa e serviços para o governo brasileiro. 2.5 Sócios ou acionistas brasileiros e estrangeiros Sócios ou acionistas brasileiros e estrangeiros são definidos, respectivamente, nos incisos IX e X do artigo 2º. A definição de sócios ou acionistas brasileiros é mais ampla do que aquela do inciso IV, alínea d. Um acionista brasileiro não pode ter um "acionista controlador" estrangeiro. Esta noção engloba também o controle conjunto ou indireto, como a decorrente de um acordo de acionistas. Um aspecto particularmente interessante da definição da nacionalidade dos sócios ou acionistas se relaciona com "fundos ou clubes de investimento".
Para um fundo ser considerado um acionista brasileiro, deve ter a sua sede e administração no Brasil, e seus administradores e proprietários da maioria de suas quotas devem ser brasileiros (de acordo com a definição de nacionalidade brasileira disposta no inciso IX, alíneas a e b do artigo 2º). 2.6 Compensação e acordos de compensação A legislação prevê expressamente a compensação para compras e contratações. Isto pode ser previsto nos contratos como condição para a compra de bens, serviço ou tecnologia. Os acordos de compensação são necessários em contratos envolvendo a importação de PRODE ou SD (artigo 4º). No entanto, o 1º do artigo 4º, excepciona a previsão de compensação caso seja impossível o seu cumprimento e a operação seja urgente ou relevante. Esta situação deve ser reconhecida pelo Ministério da Defesa. Nesta situação, o Ministério da Defesa pode exigir que uma EED esteja envolvida na importação e fornecimento de um PED ( 2º, artigo 4º). 3. Parcerias publico-privadas no setor de defesa O artigo 5º da MP nº 544 trata de um formato ainda não adotado no Brasil para os contratos administrativos na área de defesa. Refere-se à legislação de PPP (parcerias público-privadas), mais especificamente a Lei nº 11.079, de 2004, como sendo aplicável a este setor. 2 O dispositivo admite a concessão administrativa para os contratos voltados à defesa. Segundo este modelo, uma empresa privada será contratada, em um contrato de longo prazo (entre 5 e 35 anos), para realizar investimentos e prestar serviços ou fornecer bens relacionados a área de defesa a um órgão governamental. A empresa privada receberá uma compensação financeira que será medida de acordo com os serviços ou bens fornecidos. Este modelo permitirá que um órgão do governo contrate bens ou serviços sem que seja necessário reservar previamente os fundos orçamentários para esta finalidade. O modelo de PPP é muito mais fundamentado na capacidade do governo em assumir um endividamento - o órgão do governo receberá os serviços e bens de modo antecipado e deverá pagar por eles durante um período variável do que em seus recursos disponíveis. O modelo de compra, ao contrário, demanda que o órgão do governo possua previamente os fundos necessários em dinheiro. É importante salientar que o artigo 2º, 4º, inciso III, da Lei nº 11.079 proíbe PPPs que tenham como objeto único o fornecimento de mão-de-obra, o fornecimento e instalação de equipamentos ou a execução de obra pública". Portanto, o mero fornecimento de equipamentos de defesa pode enfrentar dificuldades para ser contratado por meio de uma PPP, uma vez que essa regra não foi revogada pela MP nº 544. O formato de PPP pode ser particularmente apropriado para o desenvolvimento de sistemas de defesa ou a prestação contínua de serviços 2 A regulamentação das PPPs no Brasil é tratada no capítulo escrito por Fernão Justen de Oliveira no livro Infrastructure Law of Brazil [Direito de Infraestrutura do Brasil], cit.
combinados ao fornecimento de bens. Como os contratos de PPP são geralmente complexos, os consórcios entre as empresas interessadas são usualmente admitidos. Outras vantagens interessantes do modelo de PPP são a possibilidade de garantia para assegurar os pagamentos devidos pelo órgão governamental (artigos 11, parágrafo único, e 14 a 22 da Lei nº 11.079) e a previsão expressa de arbitragem e outros métodos privados de resolução de disputas (artigo 11, inciso III, da Lei nº 11.079). 4. Licitação restrita O artigo 3º, 1º, permite que o governo adote procedimentos especiais na licitação. A Administração poderá iniciar um procedimento licitatório: I - destinado exclusivamente à participação de EED quando envolver fornecimento ou desenvolvimento de PED; II - destinado exclusivamente à compra ou contratação de PRODE ou SD produzido ou desenvolvido no País ou que utilize insumos nacionais ou com inovação desenvolvida no País, e caso o SD envolva PED, aplica-se o disposto no inciso I deste parágrafo; e III - que assegure à empresa nacional produtora de PRODE ou à ICT, no percentual e nos termos fixados no edital e no contrato, a transferência do conhecimento tecnológico empregado ou a participação na cadeia produtiva.. Embora este dispositivo pareça indicar que a Administração está também autorizada a não adotar qualquer desses procedimentos, o caput do artigo 3º dispõe que "as compras e contratações de PRODE ou SD, e do seu desenvolvimento, observarão o disposto nesta Medida Provisória". Portanto, somente em situações a Administração estaria autorizada a adquirir produtos ou serviços de defesa utilizando-se de procedimentos distintos. O artigo 15 prevê expressamente a aplicação da legislação geral de licitação e contratos administrativos, especificamente a Lei nº 8.666, de 1993. Este diploma prevê as hipóteses de contratação direta (dispensa e inexigibilidade de licitação), que continuam a ser aplicáveis também aos contratos administrativos no setor de defesa. 5. Incentivos tributários A MP nº 544 prevê extensos incentivos fiscais. Os benefícios oferecidos são descritos nos artigos 6º a 12, que criam um regime especial aplicável às empresas referidas no artigo 8º, incisos I e II da MP nº 544. Informação bibliográfica do texto: PEREIRA, Cesar A. Guimarães. MP nº 544 e a compra de produtos de defesa pelo governo brasileiro. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, Curitiba, nº 57, novembro 2011, disponível em http://www.justen.com.br/informativo, acesso em [data].