AMOR À LETRA: da dit-mension à père-version Trabalho Preliminar para o II Congresso de Convergência (maio de 2004)

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Transcrição:

AMOR À LETRA: da dit-mension à père-version Trabalho Preliminar para o II Congresso de Convergência (maio de 2004) Autora: Arlete Mourão Instituição: Intersecção Psicanalítica do Brasil Aproveito esta oportunidade para trazer à discussão algumas questões que me surgiram em função do Seminário 21 de Lacan, Les non-dupes errent/les noms du Père (1973/74), cujo estudo em cartel finalizou recentemente. Tratou-se de um Seminário no qual Lacan começou a fazer algo que já vinha se anunciando nos anos precedentes, relativo a uma revisão da sua tese inconsciente estruturado como linguagem. Isso teve desdobramentos em vários pontos de sua obra, a começar, na maneira como pode ser apreendido o processo de subjetivação. A constituição da subjetividade passou a ser articulada não só ao significante, mas também e, fundamentalmente, à dimensão do objeto a, irredutível ao simbólico, ao significante. Com isso, começou a solidificar-se uma nova perspectiva na teorização lacaniana, na qual a teoria do significante (do falo) foi sendo articulada com a teoria da letra (sinthome). No quadro dessa articulação, ocorreram-me algumas questões, entre as quais, esta que trago para discussão. Refere-se à possibilidade de pensar o processo da análise, e particularmente o seu final, em termos de uma de ultrapassagem do significante paterno (Nome-do-Pai), em direção a uma Père-version. Nessa ultrapassagem, haveria uma espécie de metáfora da metáfora isto é, a substituição do significante paterno pela letra do sinthome, cuja função também seria paterna, mas, desta vez, com o efeito de enodar os três registros da subjetividade (RSI), e não só de instaurar o simbólico, como no caso do Nome-do-Pai. A meu ver, pensar essa possibilidade requer uma consideração tanto sobre a evolução desses conceitos na teoria, quanto sobre a evolução da experiência com o inconsciente. 1. Evolução da teoria Sabemos que Lacan sustentou toda a introdução de seu desenvolvimento teórico, com base no campo do significante campo da linguagem, do dizer (dit-mension), no qual se estruturam o desejo e a demanda do sujeito, como operações de busca de sentido para o ser, um ser do sujeito cindido pela linguagem. Essas operações só são possíveis na relação com o Outro, mediante o operador falo. Nesse campo é vivido Complexo de Castração, o Édipo, em função do qual se instituem as identificações do sujeito (identificações edípicas), cuja referência é o significante fálico. Nelas, o sujeito pode identificar-se de duas formas: sob o modo do ter, sinônimo da identificação com o pai, que tem o falo, caracterizando a posição do masculino; ou, sob o modo do não ter, sinônimo da identificação com a mãe, que não tem o falo, caracterizando a posição do feminino, em termos da

2 histeria 1. Esse processo identificatório é concomitante à instituição do saber inconsciente saber relativo aos sentidos que o sujeito recebeu do Outro 2. Um novo campo, ou melhor, uma nova perspectiva do campo da linguagem começou a se impor, a partir do momento em que Lacan passou a fundamentar sua teoria em termos de discurso, por volta de 69/70 (Seminário 17). Tratou-se do campo da letra, impondo uma nova compreensão sobre o processo de subjetivação, até então, explicitado predominantemente em função do Simbólico. Essa nova perspectiva introduzida pelo aprofundamento da teorização do Real realçou um resto deixado pela primeira operação significante, no encontro do sujeito com o Outro. Um resto caracterizado por uma redução mínima do significante, apenas uma letra, que não se deixou representar, passando a funcionar como um produto disjunto do sujeito. Esse produto fica como um mais-de-gozar a ser buscado como objeto de gozo, intermediando a relação com o Outro. Introduz-se o gozo, e não mais (ou não só) o saber, como referência para as identificações. No texto O saber do psicanalista (1971-1972) e no Seminário 20, Mais, ainda (1972-1973), as identificações foram ficando cada vez mais referidas à dimensão do gozo. Partindo das suas famosas colocações, entre o homem e a mulher existe um muro e não existe relação sexual, introduzidas a partir de 1971, Lacan chegou no Seminário 20 às suas fórmulas da sexuação, delimitando as posições subjetivas, masculina e feminina, em termos de um gozo fálico e de um outro gozo, sem o referente fálico (identificação do feminino). A partir daí, Lacan começou a recorrer, de forma maciça, à lógica, à matemática, aos matemas, consolidando sua teorização do Real. No Seminário 21, à dimensão do dizer, mais ligada ao saber, ao amor e à religião (onde seria possível o dizer verdadeiro ), Lacan contrapôs a dimensão da ciência do real, mais ligada ao não saber, ao gozo, à letra, ao escrito. Nessa dimensão do Real, inseriu-se o objeto a, constituído como o resto do processo de instituição da subjetividade, como aquilo que não se deixou reduzir ao simbólico não pôde ser nomeado. Com isso, esse resto passou a se referir a algo que ficou enquistado no corpo, como marca, como traço, numa relação com um S1 que não se dirigiu a S2 3 e, portanto, não foi acrescido de um decifrado, ou seja, de um saber. Ficou numa perspectiva de signo, de cifra indecifrável. Essa é a dimensão do Real, dimensão da letra, diferente do dizer (do significante). Nela, houve uma radicalização da falta no Outro falta que passou a referir-se não à falta de um significante, mas a um buraco, um furo no simbólico. Por fim, nos Seminários 22 e 23 (RSI e Sintoma), estabeleceu-se, definitiva e claramente, a diferença entre o campo do significante : campo do falo, do sujeito e do desejo (o que requer o Outro), e o campo do objeto a : campo da letra, do traço, mais ligado à pulsão, ao gozo, ao corpo auto-erótico Campo que fica fora da linguagem, fora do simbólico, portanto, fora do inconsciente: é extra-muro. Nesse campo fora do Outro e dentro do Real instituiu-se uma nova perspectiva para as identificações. Foi possível considerar uma identificação ao sinthoma 4 sintoma relativo a esse traço (letra) que escapou à entrada no campo do significante e ficou investido no campo pulsional (no corpo), então, campo do objeto a. 1 A posição feminina, propriamente, não está em referência à lógica fálica, mas à lógica não toda, conforme abordarei mais adiante. 2 É por isso que se diz que o inconsciente é o discurso do Outro. 3 No seminário 21, Cap. 3, Lacan afirma que S1 e S2 fazem cadeia só na aparência; que embora tenha afirmado, em Função e Campo da Fala e da Linguagem, que essa primeira dupla formava uma cadeia, agora considerava isso um erro, pois seria substituir o outro significante pelo significante 1. 4 Tradução de sinthome, termo forjado por Lacan a partir de um jogo de palavras entre fantôme (fantasma) e sympthome (expressão arcaica de fantasia).

3 No final de sua obra, Lacan aprofundou sua teorização sobre esse traço, denominando-o sinthome ou quarto nó. Tal como o falo (no campo do significante), o sinthoma (no campo da letra) constitui-se como um operador, permitindo a articulação dos três registros da subjetividade (RSI). Nesse sentido, então, pode-se considerá-lo como uma père-version : uma versão do pai ou uma nova versão da função paterna, ou seja, uma ampliação e consolidação da função ensaiada na metáfora paterna com o significante Nome-do-Pai. A partir dessa delimitação mais precisa de dois campos da subjetividade, foi possível também delimitar duas dimensões do sintoma. Uma delas é a dimensão relativa ao significante, referindo-se ao sintoma freudiano : sintoma estruturado como efeito da metáfora paterna, na qual o ternário imaginário, criança/mãe/falo, pôde ser articulado a um ternário simbólico, criança/mãe/pai, em função da entrada do significante Nome-do-Pai. Isso institui o campo do significante, campo do dizer, do saber inconsciente esse saber contido no sintoma, que não pára de se escrever, estruturando o desejo indestrutível. Nesse campo, portanto, o sintoma é definido em relação ao sentido é um sintoma dizível. A outra dimensão do sintoma é aquela relativa ao objeto a, referindo-se ao sinthoma lacaniano (ou joyceano), no qual não há mais relação com o saber (do Outro), que, por isso, passa a precisar ser inventado. À dimensão da criação de sentido (ou efeito sujeito) viabilizada pela metáfora paterna, dialetiza-se a possibilidade de invenção de um saber esse saber não mais relativo ao significante, mas à letra, que, por ser da ordem do Real, não pára não se escrever. Portanto, nesse campo, o sintoma sinthome é definido em relação ao Real. É indizível. Essa é a dimensão da père-version e não da dit-mension. 2. Evolução da experiência Pensar as implicações dessa evolução teórica, na clínica, significa pensar em uma das saídas da análise (existe mais de uma) uma saída que coincide com seu fim lógico, correspondendo à passagem de analisando à analista. Freud teorizou o fim da análise em termos do impasse da angústia de castração. Os sujeitos, na posição masculina, ficariam detidos ante a ameaça de castração e, na posição feminina, ficariam detidos ante a inveja do pênis. Segundo Freud, essas seriam posições intransponíveis; seriam os limites de uma psicanálise. O avanço teórico lacaniano permitiu ir além desse impasse, sinônimo de ir além do Édipo ir além do Pai. No fim da análise, as identificações edípicas (sintomas) podem dar lugar a uma identificação ao sinthome esse traço próprio (letra), que está para além e aquém do significante paterno. Tal identificação leva o sujeito a uma posição de destituição subjetiva. Passar da posição das identificações edípicas (feitas com significantes) à posição de identificação à letra, ao sinthome, significa passar de uma posição de determinação, garantida pelas identificações imaginária e simbólica (Eu Ideal e Ideal do Eu), para uma posição de indeterminação indeterminação da letra (suporte da fantasia), que não remete a um saber (S2), a um sentido, a um gozo (fálico). Nessa passagem, há uma emergência do real pulsional, que é acéfalo, e com o qual o sujeito deve se confrontar. Essa possibilidade de confronto é concomitante a um eu não sei, a partir do qual o saber só poderá ser um saber inventado. Trata-se de uma posição que ultrapassa a dimensão da demanda: é uma posição de desejo.

4 Acontece que nem sempre um analisando 5 suporta esse momento 6, essa emergência de extrema angústia, diante da qual o sujeito pode retroceder para a posição de demanda de reconhecimento, de asseguramento do sentido do seu ser. Então, ele pode recusar o eu não sei e substituí-lo por um eu não quero saber disso. Tal recusa costuma aparecer de várias formas: reação terapêutica negativa, ódio ao analista, análises intermináveis, interrupções, etc. Sendo a recusa o mecanismo próprio da perversão, existe, então, uma saída perversa da análise, ilustrada pela freqüência de laços perversos existentes não só entre analista e analisando no qual o analista encarna, de fato, o Outro mas, também, entre os analistas e suas comunidades. Por outro lado, se o sujeito suporta esse momento, suporta atravessar o saber seguro da fantasia, ele o ultrapassará. Essa ultrapassagem pressupõe um autorizar-se a partir de seu próprio signo, de suas próprias insígnias, e não mais das insígnias do Ideal (ou do falo) ; implicará um autorizar-se em seu nome próprio (um dos nomes do traço); implicará uma père-version. 3. A travessia da fantasia Pensar a père version como uma nova versão da função paterna, podendo ocorrer em um final de análise, é pensar no destino do saber do Outro, portanto, no destino do Sujeito suposto Saber. Coloca-se, então, a questão da travessia da fantasia. Como se sabe, no campo do significante, junto com a instituição do sujeito, do desejo e do sintoma, a partir da metáfora fálica, institui-se também a fantasia fundamental ou fantasma, o que foi ilustrado por Lacan no final dos anos 50, com o grafo do desejo. Esse fantasma refere-se à estruturação do saber inconsciente construído pelo sujeito ao ter que se instituir subvertido pela linguagem. O saber inconsciente é a base da sua condição de exterioridade, na qual o sentido vem de fora, vem do Outro. Tal sentido é subsídio para as identificações edípicas, estruturando e sustentando a fantasia fundamental dentro de um modelo de saber perverso, de recusa à falta. Nele, o sujeito pode se colocar no lugar de objeto de gozo do Outro o sujeito se faz de Outro do Outro. Na análise, com a transferência e com as intervenções do analista enquanto semblante do objeto a, o sujeito/analisando pode confrontar-se com a inconsistência desse objeto na fantasia, verificando a ambigüidade do seu arranjo fantasmático, em termos da garantia do seu ser. Isso o convoca a ir além da fantasia, ou seja, a ter de se haver com sua falta radical. Para além da fantasia, o sujeito encontra a pulsão, cujo objeto é parcial e não oferece sentido para a consistência do seu ser. Ele constata, então, que a garantia oferecida ao Eu Ideal pelo Ideal do Eu, colocado de forma plena (completa) no analista, é uma ilusão. Tal constatação permite a ultrapassagem da identificação com o analista 7 como o Sujeito suposto Saber. No lugar dessa identificação, viabilizase uma identificação com a indeterminação subjetiva da letra. Não se trata, nessa travessia, de uma liquidação da fantasia, pois esta é um dado estrutural da subjetividade e sempre estará em referência ao sujeito do inconsciente. Trata-se, sim, da possibilidade de elaboração do saber contido na fantasia, de tal forma que o sujeito fique descolado dele. A partir dessa travessia, ou desse descolamento, o saber fantasmático transforma-se em père-version, e o sujeito passa a poder falar em nome próprio, quer dizer, falar em função de seus 5 E, muitas vezes, nem o analista. 6 Momento lógico. 7 Que é um dos critérios para se definir o fim da análise, em outras correntes da psicanálise.

5 próprios significantes e não mais, ou não só, dos significantes do Outro; passa a poder falar a partir de seu não senso, e não mais do sentido do Outro. Há uma modificação na economia do gozo do sintoma, aquele do início da análise, relativo ao saber inconsciente, à busca de sentido do ser. Há uma identificação com o sinthome, passando a incluir uma outra instância de gozo, concernente à consolidação dessa identificação com a letra 8. 4. A passagem de analisando a analista A travessia da fantasia, com a simultânea aquisição de uma posição de destituição subjetiva, é condição imprescindível para a passagem de analisando a analista. Trata-se da possibilidade desse descolamento do sujeito em relação ao Outro, o que lhe permite não se confundir mais ou não se instalar mais em uma posição de objeto de desejo do Outro. Na travessia da fantasia, sujeito e objeto se desconfundem. Com essa descolagem, com essa des-con-fusão, com essa père-version, o Outro é reduzido à sua condição de alteridade subjetiva do próprio sujeito, não precisando mais ser encarnado em outro sujeito. O outrem passa a poder ser escutado de uma forma que não se presta mais a servir de tampão para a falta do sujeito. Essa nova possibilidade de escuta, essa passagem de analisando à posição de analista, é uma conseqüência lógica do trabalho analítico, quando ele ultrapassa o plano das identificações. Nessa posição, o saber perverso da fantasia se transforma em um saber fazer com saber fazer outra coisa o sintoma, sinônimo do savoir faire analítico. Essa nova relação com o saber, permitindo o sujeito não colocar mais o Outro como aquele que vai lhe fornecer sentidos e, também, não se colocar como o Outro fornecedor de sentidos, permite-lhe sustentar a função de incógnita desejante para um outro sujeito incógnita que engendra a questão O que ele quer?, mediante a qual, ao tentar decifrar, o analisando pode apreender os meandros do seu próprio desejo. Sustentar essa incógnita desejante significa sustentar a função desejo do analista. O saber fazer com esse savoir faire próprio da posição do analista, que sustenta o desejo do analista é da ordem da invenção, da père-version, ou seja, deixou de ser um saber pronto e agora precisa ser inventado. Com isso, o analista estará sempre pronto para ser surpreendido e, portanto, surpreender o analisando, que, assim, poderá dar novos sentidos às suas questões. Essa é a dimensão dos atos analíticos atos que permitem o surgimento, o flagrante do gozo com o qual o sujeito/analisando sustenta sua defesa contra a castração. Saber fazer com é saber fazer atos. Fazer outra coisa que não o fazer fálico, significa para o analista não estar no contexto da análise a partir de uma dimensão de gozo. Na análise, o analista não é sujeito. Ele é semblante do objeto a. Enquanto sujeito, está no lugar do morto, já dizia Lacan, em 1958, no seu texto A direção da cura e os princípios de seu poder. Portanto, estar no lugar do morto e saber fazer com são as condições que definem o que é o analista, imprescindíveis para sustentar a função e o desejo do analista 9. Isso não tem nada a ver com uma especialização, uma formação acadêmica ou profissional, mas se refere a uma formação do inconsciente, conseqüência do trabalho da análise. 8 Disso desdobra-se uma outra questão: poder-se-ia dizer que no último Lacan, uma clínica do desejo (do sujeito, do significante) clínica do Nome-do-Pai teria sido substituída por uma clínica do gozo (da letra, ou do sinthome) clínica da père-version? 9 Desejo que põe para trabalhar e não para amar. Desejo que permite encontros e não engodos.

6 5. A produção de saber e a transferência de trabalho Além de produzir atos ou, exatamente, por produzir atos, o saber inventado não deixa de continuar colocando questões para o sujeito do analista. Não ser sujeito na função de analista não quer dizer deixar de ser sujeito enquanto ser falante, na dimensão do significante. Nessa dimensão, o sujeito do analista é ainda mais provocado em seu não saber. Ou seja, especialmente porque não é sujeito, o analista é convocado a produzir um saber sobre esse assujeitamento; é convocado a formalizar as questões que disso decorrem. Uma tal formalização implica a produção de um saber em outro lugar e não no lugar do Outro, assim como supõe uma outra relação com esse saber. Se, na análise, a elaboração do saber concernente ao sujeito era feita a partir do lugar do Outro, quer dizer, dos significantes do Outro, depois dela, passa a ser feita a partir dos próprios significantes do sujeito, e fora do contexto da análise. O Outro, ou seja, a alteridade constitutiva da subjetividade, passa a constituir-se em uma função e não mais em uma pessoa. Função essa, a ser exercida pontualmente por qualquer outra pessoa ou, mesmo, por outros contextos, como por exemplo, o contexto da psicanálise em extensão. A função de alteridade necessária para a elaboração do saber subjetivo, no nível da extensão, é denominada função do mais um. Ela é indispensável atividade denominada cartel, forma privilegiada de estudo no campo da psicanálise, na qual a elaboração continua sendo movida pela transferência, na sua forma mais elaborada: a transferência de trabalho. Se, durante o percurso da análise (psicanálise em intenção), o trabalho de elaboração do saber é pautado por um trabalho de transferência transferência sustentada pela via do analista enquanto sujeito suposto Saber, no fim da análise, com a destituição do Outro e o retorno do saber para o próprio sujeito, a transferência faz também o mesmo retorno: o trabalho de transferência transforma-se em transferência de trabalho. Na transferência de trabalho, o sujeito deixa de colocar o Outro (analista, professor, mestre, etc.) para trabalhar; deixa de fazer do Outro o suporte do saber, passando ele mesmo a ser o agente de trabalho do seu saber o saber a ser inventado. Trata-se de uma transferência não mais movida pelo amor ou pelo Outro encarnado. Nessa perspectiva, o amor ao pai, amor da ordem da identificação, transforma-se em amor à letra amor para além da identificação, ou melhor, transforma-se em gozo da letra, que, para o analista, significa gozar fora. Em função disso, a elaboração, a exposição e a interlocução desse saber inventado, em Reuniões, Jornadas, Colóquios, Simpósios, etc., não deixa de ser da ordem do ato analítico. Tratase, aí, da elaboração ou perlaboração permanente de um confronto com a castração, com a falta, iniciado no fim da própria análise e convocado, quotidianamente, pela escuta clínica. Essa escuta se caracteriza pela anulação do ser do analista, configurando-se como um exercício de castração. A formalização dessa elaboração pressupõe uma produção teórica que não coincide com uma produção científica. A produção analítica é o produto-resto de uma elaboração subjetiva, na qual os conceitos passam pelo sujeito que a produz, passam por uma apreensão na experiência do sujeito, sendo, pois, questões que lhe concernem. Nesse sentido, pode-se dizer que a teoria psicanalítica, de fato, refere-se às teorias dos sujeitos que aí se inscrevem e cujas questões passam a fazer parte do corpo teórico da psicanálise são as questões de Freud, de Lacan e de todos nós. Isso significa dizer, também, que é a transferência de trabalho, esse amor à letra e não ao pai e/ou mestre essa transferência aos conceitos da psicanálise que articula e sustenta a instituição e a comunidade psicanalítica.

7 Referências Bibliográficas: LACAN, J. O Seminário, livro 5 As Formações do Inconsciente (1957/58). Rio de Janeiro: JZE, 1999. O Seminário, livro 17 O avesso da psicanálise (1969/70). Rio de Janeiro: JZE, 1992. O Seminário, livro 20 Mais, ainda (1972/73). Rio de Janeiro: JZE, 1985. O Seminário, livro 21 Os não patos erram (1973/74), (mimeo). O Seminário, livro 23 Lê Sinthome (1976/77), (mimeo). O Aturdido (1972) Tradução de L Étourdit [Scilicet no.4, Paris, Seuil, 1973] feita pelo Cartel de Tradução composto por: Dulce D. Estrada, Maria Lessa de B. Barreto, Paulo Becker e Sergio Becker (+ 1), RJ, 2002.