Turismo e Preservação do Patrimônio Cultural no Brasil: uma análise do Conselho Consultivo do IPHAN (1937-1975) Jamile Silva Neto* Introdução



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Transcrição:

Turismo e Preservação do Patrimônio Cultural no Brasil: uma análise do Conselho Consultivo do IPHAN (1937-1975) Jamile Silva Neto* Introdução A Lei nº 378, promulgada em 13 de janeiro de 1937, criou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artíst 1 ico Nacional (SPHAN) com o objetivo de promover, em todo o país e de modo permanente, o tombamento, a conservação, o enriquecimento e o conhecimento do patrimônio histórico e artístico nacional (BRASIL, 1937). O Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que organiza o órgão de preservação, delimitou a atuação do Conselho Consultivo. A esta esfera institucional caberia analisar os casos de tombamento compulsório em que o bem eleito a ser patrimonializado fosse impugnado pelo seu proprietário, no prazo de quinze dias após a notificação, tendo o Conselho que emitir parecer irrevogável no prazo de sessenta dias; analisar os tombamentos voluntários propostos pelos proprietários dos bens; e, decidir sobre os bens tombados que sairiam, ou não, do país por um prazo determinado (BRASIL, 1937). O Conselho seria composto pelo diretor do SPHAN, pelos diretores dos museus nacionais (Museu Nacional de Belas Artes, Museu Nacional, Museu Histórico Nacional e Museu Imperial) e mais dez membros nomeados pelo Presidente da República (BRASIL, 1937). A ideia do Conselho Consultivo constituiu-se a partir do Anteprojeto elaborado, em 1936, por Mário de Andrade. A pedido de Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde à época, o anteprojeto tinha por objetivo [...] determinar, organizar, conservar, defender e propagar o patrimônio artístico nacional (MEC, 1980). O Conselho Consultivo, segundo Mário de Andrade, deveria, dentre outras atribuições, possuir vinte membros, divididos igualmente, dentro de áreas do saber específicas, são elas: historiadores, etnógrafos, músicos, pintores, escultores, arquitetos, arqueólogos, gravadores, artesãos e escritores. Apesar da ideia do Conselho Consultivo ter sido inspirada no anteprojeto elaborado por Mário de Andrade, o decreto-lei nº 25 não especificou a composição do Conselho de acordo com áreas do saber, regulamentando apenas sobre suas atribuições práticas. * Graduanda em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Bolsista de Iniciação Científica UNIRIO, sob orientação da professora Leila Bianchi Aguiar.

Diferente dos quadros técnicos do SPHAN, compostos majoritariamente por arquitetos (CHUVA, 2009; FONSECA, 2009; SANTOS, 1996), o Conselho Consultivo se caracterizou por membros de diferentes áreas, tais como historiados, arquitetos, advogados, artistas plásticos, antropólogos, arqueólogos, escritores, dentre outros. Cabe ressaltar que um único membro poderia possuir, o que geralmente acontecia, o domínio de mais de uma área do conhecimento. Ademais, os conselheiros ocupavam, conforme Márcia Chuva (2009), destacadas posições nos campos intelectual e político brasileiros. Portanto, o quadro de membros do Conselho Consultivo foi composto por sujeitos que possuíam reconhecimento privilegiado pelos cargos que ocupavam externos ao Conselho. No dia 10 de maio de 1938, Gustavo Capanema salienta na sessão inaugural que o Conselho Consultivo era composto [...] por especialistas de notável competência e de comprovado espírito público [...] (ATAS, nº 1, 1938). As atribuições intelectuais, culturais e de espírito público dos conselheiros seriam enfatizadas ao longo dos anos 1 principalmente quando da entrada e da saída majoritariamente decorrente ao falecimento dos membros. Conforme José Reginaldo Gonçalves, a criação do SPHAN integrou-se ao projeto macro de construção de uma nova nação após o golpe de Estado, o qual implantou o Estado Novo (1937-1945). Para o autor, as narrativas sobre o patrimônio cultural seriam espaços privilegiados de representação desta nova nação. Nesse sentido, guiando-se pelas ideias de Antonio Gramsci, os intelectuais tiveram papel central no governo de Getúlio Vargas, uma vez que desempenharam o papel de dissolver e amenizar os conflitos entre a sociedade civil e a sociedade política (ou Estado). O consenso impresso nas massas pelas ideias desses sujeitos se dava, ainda segundo Gramsci, pelo fato de ocuparem um lugar social de prestígio. Segundo Márcia Chuva (2009), o Conselho Consultivo constituiu-se como esfera hegemônica nas visões acerca do patrimônio, uma vez que tinha como função emitir pareceres irrevogáveis sobre as contestações acerca dos tombamentos. Cabe destacar que o decreto-lei nº 25 foi a primeira norma jurídica brasileira que limitava o direto de propriedade, a partir do instituto do tombamento, o qual proíbe a destruição ou mutilação do bem patrimonializado (CHUVA, 2013, p. 3). Conforme chama a atenção Márcia Chuva (2009), a atuação do Conselho Consultivo centrava-se nos casos de tombamento, ato de consagração da prática de patrimonialização. Desse modo, o Conselho 1 Estas informações estão presentes nas atas das sessões 11ª, 29ª, 30ª, 53ª, dentre outras.

Consultivo foi instituído pelo decreto-lei nº 25 como esfera de legitimação das práticas de preservação, uma vez que lidaria, primordialmente, com os proprietários que contestassem o tombamento de sua propriedade. Portanto, a relevância de se estudar o Conselho Consultivo reside no papel central que este ocupou na elaboração de narrativas sobre os bens patrimoniais. O fato das decisões do Conselho serem incontestáveis demonstra o quão importante mostrou-se ser essa esfera para a consolidação das noções de patrimônio. O Conselho Consultivo É interessante observar que ainda na reunião inaugural, Rodrigo M. F. de Andrade propôs que o Conselho Consultivo funcionasse como um tribunal de 2ª instância em que o processo relativo a cada caso fosse distribuído, à escolha do presidente, a um relator, o qual traria a resolução na reunião seguinte para ser debatida e votada entre os membros do Conselho. Além disso, os membros do Conselho Consultivo foram eleitos inspirados num critério de especialização (ATAS, 1938, nº 1). Pensando na composição do Conselho, como já foi exposto, pode-se dizer que esta se deu a partir de diferentes áreas do conhecimento, portanto, supõe-se que havia uma heterogeneidade de vozes no Conselho. Ao lançar esta hipótese, supõe-se, igualmente, que pela diversidade de intelectuais que compunham o Conselho Consultivo, as discussões sobre os processos de tombamento que eram postos em causa seriam acirradas. No entanto, a partir da análise das atas do Conselho Consultivo, percebe-se que alguns membros eram escolhidos com mais frequência para serem relatores dos processos em detrimento dos outros. Apesar de alguns processos não terem sido aceitos por unanimidade, a maior parte dos casos seguiam as decisões expressas pelos relatores. Conforme expresso nas atas, os casos de tombamento designados aos relatores tinham seus pareceres embasados em pesquisas, sendo privilegiada, com freqüência, a prática de visitação dos locais a serem estudados. O privilégio para com os termos científicos, racionais, objetivos tem relação com a própria tradição intelectual na qual o SPHAN, tendo como seu principal representante Rodrigo M. F. de Andrade, estava inserida (BOMENY, 1994; GONÇALVES, 2002). Como destaca Antonio Gramsci, nas burocracias dos Estados modernos na qual a criação do SPHAN estava inserida privilegiou-se a atuação dos especialistas que dariam respostas científicas inclusive às questões culturais. Neste sentido, o

patrimônio foi entendido como algo que deve ser tratado a partir do conhecimento profissional (GONÇALVES, 2002), uma vez que somente a partir de critérios objetivos por que não dizer materiais? se poderia avaliar o bem patrimonial. A ideia de que o Conselho Consultivo constituía-se em uma esfera externa ao IPHAN ficou explícita ao longo da análise das atas. Assim, apesar do decreto-lei nº 25 não apresentar o Conselho apartado do órgão de preservação, na prática essa distinção ficou clara na fala dos membros do Conselho. Desse modo, pode-se pensar que esta distinção tinha relação com a necessidade do Conselho se mostrar como uma instância acima de qualquer interesse alheio às questões objetivas do patrimônio, inclusive distante do próprio órgão do patrimônio, o qual propunha, muitas vezes, os tombamentos que haviam sido impugnados pelos proprietários. Segundo Márcia Chuva (2009), o Conselho Consultivo funcionou como a principal esfera de legitimação do decreto-lei nº 25/1937. O fato de a lei limitar o direito de propriedade, como já foi dito acima, fazia com que houvesse a necessidade de idoneidade do Conselho, para além da necessidade da legitimidade intelectual de seus membros. Ou seja, o Conselho Consultivo deveria ser uma esfera autônoma para que pudesse julgar de forma ilesa os processos de tombamento. Nas atas do Conselho, pode-se notar que os relatores dos casos se pautavam frequentemente no decreto-lei nº 25 para defenderem a legitimidade do tombamento. Na sessão do dia 17 de julho de 1946, após mais de seis anos sem se reunir o Conselho, Rodrigo M. F. de Andrade justifica a ausência das convocações de reuniões pelo fato de não ter sido oferecidas impugnações aos bens tombados, o que, para ele, significava uma melhor compreensão dos verdadeiros objetivos do decreto-lei nº 25 (ATAS, 1946, nº 11). A partir do ano de 1946, com a criação do Regimento Interno do órgão de patrimônio, o Conselho Consultivo passa a analisar todos os processos de tombamento, independentemente de terem sido impugnados ou não, serem demandas da sociedade civil ou do próprio órgão do patrimônio. Nesse sentido, o Conselho Consultivo passa a ter, após nove anos de sua criação, a palavra final quanto aos bens que seriam ou não tombados. Logo, o Conselho Consultivo adquire poder de decisão dentro do órgão, não se restringindo mais apenas aos conflitos entre a sociedade civil e o órgão do Estado (CHUVA; 2013). Desse momento em diante, as convocações para reuniões aumentaram substancialmente. Apesar de o Conselho Consultivo ter sido identificado como esfera suprema na decisão sobre os tombamentos a partir de 1946, cabe ressaltar que os discursos acerca dos bens passíveis de serem patrimonializados não foram alterados. Neste sentido, continuaram

sendo privilegiados os bens de caráter arquitetônico, principalmente aqueles ligados à arquitetura colonial/católica do século XVIII considerada como genuinamente brasileira, logo, autêntica (CHUVA, 2009; GONÇALVES, 2002; SANTOS, 1996). Nesse sentido, conforme as atas do Conselho, o aspecto de originalidade dos bens era amplamente considerado no momento do tombamento. Ademais, apesar de ser largamente enfatizado pelas pesquisas empreendidas sobre o IPHAN os laços de amizade que uniam os membros da intelectualidade ligada à preservação do patrimônio (BOMENY, 1994; CHUVA, 2009; SANTOS, 1996), supõe-se, a partir da análise e reflexão sobre o conteúdo das atas e da Série Personalidades, que nem todos os membros do Conselho Consultivo faziam parte desse grupo que se encontrava cotidianamente na sala de Rodrigo M. F. de Andrade, no sétimo andar do prédio do Ministério da Educação e Saúde (MES), para conversar sobre a cultura brasileira (FARIA, 1995; SANTOS, 1996). Desse modo, verificou-se que havia vozes mais requisitadas dentro do Conselho Consultivo. Levando-se em consideração que muitos membros que estavam sempre presentes nas sessões não eram escolhidos pelo presidente para ser relator dos casos, pode-se interrogar qual era o critério de escolha do membro para o estudo de cada caso. De acordo com Márcia Chuva (2009), ao longo das décadas de 1930 e 1940 gestaram-se discursos e práticas dos intelectuais que integravam o SPHAN que foram sendo identificados com os bens culturais que seriam passíveis de tombamento, ou seja, identificados como nacionais. Tudo que fugia a esses parâmetros elaborados por esses intelectuais era contestado e tratado com estranheza. Cabe ressaltar que, em 1967 quando da mudança de diretor do órgão de patrimônio e, consequentemente, do Conselho Consultivo, o fato de Renato Soeiro ter substituído Rodrigo M. F. de Andrade não significou uma mudança substancial no Conselho no que se trata desses discursos. Além disso, as mesmas vozes que antes eram privilegiadas continuaram a ser na presença do novo presidente. As relações do Conselho Consultivo com outras esferas de poder mostraram-se, a partir da análise das atas, bastante controversas. Apesar de manterem um grau de seriedade com que desempenhavam as atividades fato importante de ser notado foram as abstenções de votos declaradas por conselheiros que se diziam envolvidos profissional, emocional, familiarmente com os processos de tombamento em votação, as disputas com os interesses particulares foram algumas vezes mediadas por concessões, principalmente quando estes interesses envolviam grandes empresas e interesses de outras esferas públicas

(municipalidades e governos estaduais). Apesar disso, os pedidos de reconsideração de destombamento de bens por parte do Presidente da República (possíveis a partir do decreto-lei nº 3.866, de 2 de novembro de 1941) foram sempre solicitados, e dificilmente não atendidos. Nas falas dos conselheiros, assim como salienta Maria Cecília Fonseca, percebe-se que queriam legitimar o Conselho Consultivo como imune às pressões externas, no entanto, na prática, apesar de ser explícito o esforço, muitas vezes rendeu-se relutantemente às demandas dos proprietários. Conclusão A partir, principalmente, da pesquisa das atas do Conselho Consultivo e da Série Personalidade analisou-se a composição, as práticas rotineiras, os discursos quanto aos tombamentos do Conselho Consultivo do IPHAN. Ao que parece, a distinção entre Conselho e órgão do patrimônio mostrou-se apenas na ordem do discurso, visto que as práticas de uma esfera legitimam a da outra, e vice-versa. Tanto a posição que os conselheiros ocupavam nos espaços políticos e intelectuais quanto o caráter tutelar, centrados nos atos de definir e controlar o patrimônio nacional (CHUVA, 2013), do decreto-lei nº 25 parecem ter sido cruciais para a legitimidade construída pelo/para o Conselho. Ademais, ao que parece, as vozes heterogêneas dentro do Conselho Consultivo não tiveram a mesma representatividade nas decisões acerca do tombamento. Cabe ressaltar que as conclusões desta pesquisa são apenas parciais, uma vez que ainda se encontra em andamento. Referências Bibliográficas BOMENY, Helena. Guardiões da Razão. Modernismo mineiros. Rio de Janeiro: UFRJ/Tempo Brasileiro, 1994. CHUVA, Márcia. Os Arquitetos da Memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Ed.UFRJ, 2009.. Patrimônio cultural no Brasil: proteção, salvaguarda e tutela. In: Souza Lima, A. C. (org). Tutela: de instituto jurídico a forma de poder Direito, formação de Estado e tradições de gestão no Brasil, 2013 (no prelo).

FARIA, Luiz de Castro. Nacionalismo, nacionalismos - dualidade e polimorfia: à guisa de depoimento e reflexão. In Chuva, Márcia (org.). A Invenção do Patrimônio: continuidade e ruptura na constituição de uma política oficial de preservação cultural no Brasil. Rio de Janeiro: IPHAN, 1995. FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Iphan, 2009. GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/MinC-IPHAN, 1996. GRAMSCI, Antonio. O leitor de Gramsci: escritos escolhidos (1916-1935). In: COUTINHO, Carlos Nelson (org.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. PROTEÇÃO e revitalização do patrimônio cultural no Brasil: uma trajetória. Brasília, MEC- SPHAN pró-memória, 1980. SANTOS, Mariza Veloso Motta. Nasce a academia Sphan. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 24, 1996.