V Congresso Internacional e X Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental Dietética corpo pathos 6 a 9 de setembro de 2012 Fortaleza-CE MESA REDONDA: Toxicomania e Rede de Saúde Mental: clínica, ética e política Título do Trabalho: Toxicomania e corpo: o gozo sem limites - Zaeth Aguiar do Nascimento Este trabalho visa abordar a toxicomania na sua relação com o corpo e o gozo sem limites experimentado no uso da substância. Para orientar esta discussão elegemos como referencial teórico a psicanálise Freud-Lacaniana. Para este debate consideraremos as duas formulações teóricas de Lacan, a de 1966, na qual concebe a toxicomania na dimensão da ética do gozo do corpo, bem como a sua última formulação, de 1975, proposta nas Jornadas de Estudos sobre os Cartéis da Escola Freudiana de Paris, na qual lança a definição da droga como o que permite romper o casamento com o pequeno pipi. Nas duas formulações constatamos que o que está em jogo na toxicomania é a relação do sujeito com o gozo (FREDA, 1996, p. 113). Em 1966 em O Lugar da Psicanálise na Medicina, Lacan ao tratar da dimensão ética como a que se estende em direção ao gozo, lança uma formulação central a respeito do corpo na qual afirma que Um corpo é algo feito para gozar, gozar de si mesmo. (Lacan, 1966/2001, p. 11). A perspectiva da dimensão ética do gozo do corpo proposta por Lacan faz pensar a toxicomania como um modo particular de satisfação, modo de enfrentamento das perturbações do gozo do corpo. As teorizações em torno da questão do corpo vêm desde a tradição antiga em Platão com a unidade corpo/alma até Descartes que introduz a dicotomia fundamental alma/corpo como duas substâncias distintas. A referida dicotomia presente no pensamento cartesiano, diferentemente de Platão, sustenta a ideia de ser impensável a existência de uma substância viva do corpo sendo este inanimado. Esta perspectiva cartesiana do corpo, 1
que referenda o saber médico, vai na contramão do que a psicanálise lacaniana aborda como a verdadeira natureza do corpo vivo, corpo libidinal e gozoso (SANTIAGO, 2001). Lacan (1966/2001) concebe o uso ordenado e metódico dos tóxicos como um dos efeitos da ciência que traz consequências para o corpo e nos aponta que a materialização destes efeitos vem sob a forma de diferentes produtos que vão desde os tranquilizantes até os alucinógenos (LACAN, 1966/2001, p. 11). Neste sentido, o recurso do toxicômano às drogas é apenas um efeito, entre muitos, que a ciência produz no mundo (SANTIAGO, 2001), incidências da ciência no corpo tornando possível o acesso ao real através da produção de objetos que têm função de gadgets, fabricações da ciência, como modo de ofertar ao sujeito meios de recuperar a satisfação pulsional primitivamente perdida. Considera-se que a possível relação entre esses gadgets e o gozo do corpo diz respeito ao fato de que não basta à ciência fabricá-los, mas encontrar meios de liga-los, fixa-los aos sujeitos para que estes possam consumi-los sem limites. Neste sentido, os objetos da ciência existem para que o sujeito possa gozar deles (SANTIAGO, 2001, p. 28). Concordamos com Santiago (2001a) que afirma que a adesão profunda do toxicômano à droga não pode se explicar senão pelo corpo submetido à ação do significante e inseparável do gozo (p. 31) e que neste sentido, neste modo particular de satisfação que se diferencia de uma dependência biológica, o sujeito tenta enfrentar ou se haver com as perturbações do gozo do corpo. As falas dos usuários dos serviços substitutivos da Rede de Saúde Mental, CAPS a respeito da experiência com a droga, nos permite pensar, a partir da proposição de Lacan, que a toxicomania se refere não à dimensão do prazer, mas à do gozo, na medida em que o prazer é uma barreira ao gozo (LACAN, 1966/2001, p. 12) e que o prazer, é a excitação mínima, aquilo que faz desaparecer a tensão, tempera-a ao máximo; ou seja, então, que é aquilo que nos pára necessariamente a um ponto de distanciamento, de distância bastante respeitosa do gozo. (LACAN, 1966/2001, p. 12). Nas falas dos usuários constatamos que os mesmos tentam um recurso precário vindo de fora através do apelo à barra da instituição (a internação), para manter certa distância do gozo sem limites experimentado no uso da substância. 2
To interno agora. Mas antes era o quanto tivesse ; Uso uma pedra, duas, até o dinheiro dá ; depende do dinheiro, pode ser muitas pedras. Dez pedras..eh. As vezes passo dois dias ou três sem usar, mas depois volto ; num sei, o que o dinheiro der. Na média umas cinco pedras ; Uso dependendo do dinheiro pra comprar ; Quando começa só para quando tá liso. Enquanto tem pedra a pessoa tá usando, ninguém guarda pedra pra fumar depois. A pessoa não consegue deixar pra mais tarde ; Depende do dinheiro, 3 vezes ; fumo um cigarro de maconha por semana, assim..mas o crack é quase todo dia, depende do dinheiro, inclusive já peguei empréstimo com minha mãe pra pagar o traficante Farias (2009) em pesquisa realizada, localizou uma particularidade nas falas dos usuários de drogas Eles muito falam sobre suas aventuras com a droga, sobre a quantidade utilizada, os tipos de drogas que já consumiram, a maneira como se iniciaram no consumo, suas desventuras, mas nada dizem a respeito do sujeito, que se encontra mudo. (p. 50). Podemos considerar que a experiência destes sujeitos num gozo sem limites com a substância insere-se na dimensão que Lacan define como gozo, (...) aquilo que chamo gozo, no sentido em que o corpo se experimenta, é sempre da ordem da tensão, do forçamento, do gasto, até mesmo da proeza. Há incontestavelmente gozo no nível em que começa a aparecer dor e nós sabemos que é somente no nível da dor que se pode experimentar toda uma dimensão do organismo que de outra forma fica velada. (LACAN, 1966/2001, p. 12). No Seminário 20, Mais Ainda, Lacan (1972-1973/1985) define o gozo como uma instância negativa e como aquilo que não serve para nada (p. 11). Constatamos que as considerações a respeito da droga tanto em Freud como em Lacan indicam uma concepção do recurso à droga como uma solução. Em Freud, em O Mal-Estar na Civilização (1930) localizamos que a droga é uma das soluções para o mal-estar na civilização (BENETI, 1998, p. p. 220). 3
Em Lacan, a solução aponta para uma ruptura e é o que em sua última formulação, de 1975, na qual lança a definição da droga como o que permite romper o casamento com o pequeno pipi, indica uma tentativa do sujeito de, ao fazer uso da droga, buscar uma ruptura com o gozo fálico e assim busca um gozo que não passe pelo Outro, um gozo ex-sexo. De acordo com Miller, a droga aparece como um objeto que concerne menos ao sujeito da palavra do que ao sujeito do gozo, portanto ela permite obter um gozo sem passar pelo Outro. (Miller, 1995). Neste sentido, a toxicomania é problematizada como um novo modo de gozo, gozo do Um, gozo não fálico, sem falta, todo, não sexual, gozo auto-erótico. Assim, a droga trata-se de um objeto que permite obter um gozo (...) sem passar pelo Outro, pelos significantes fálicos, um objeto que concerne menos à palavra, ao sujeito da palavra, do que ao sujeito do gozo (BENETI, 1998, p, 221). Segundo Beneti (1998), Miller propõe uma definição para o termo como gozo cínico, gozo próprio do toxicômano no qual se constata uma insubordinação ao serviço sexual com um gozo que não passa pelo corpo do Outro e sim pelo próprio corpo, autoeroticamente (BENETI, 1998, p. 221). Neste sentido, retomando Miller, localizamos que a droga como objeto dá acesso a um gozo que não passa pelo Outro e, em particular, pelo corpo do Outro como sexual. (Miller, 1995). A este tipo de gozo que não passa pelo corpo do Outro, mas pelo próprio corpo denomina-se como gozo auto-erótico. Na relação autoerótica, o toxicômano se subtrai ao imperativo do gozo afim de nunca encontrar este horror que é a marca da castração no Outro. Ele chega a produzir uma formação de ruptura, mais do que de compromisso, com o gozo fálico (FREDA, 1996, p. 114). Ainda Beneti, ao estabelecer um paralelo entre a toxicomania ontem e hoje destaca alguns princípios no modo de abordagem da toxicomania ontem tais como: 1. Introdução do sujeito do Inconsciente; 2. Introdução de uma clínica sob transferência; 3. Nem todos que se drogam são toxicômanos verdadeiros; 4. Singularidade de cada um em questão; 5. A instituição enquanto lugar terapêutico; 6. A instituição enquanto lugar dos quatro discursos tem que incluir o discurso do analista. O referido psicanalista contrapõe ao modo de abordagem da toxicomania hoje na qual há uma mudança radical, sendo os objetos mais-de-gozar maiores que os ideais (BENETI, 1998). 4
Consideramos que a clínica contemporânea nos permite pensar a forma como os sujeitos elegem seu modo de gozo no qual há a prevalência do auto-erotismo que dispensa a relação com o Outro: É o que localizamos nas falas dos usuários que remetem a uma ruptura com o gozo fálico numa substituição do sexo pelas drogas: Às vezes eu vejo que substituo o sexo pelas drogas. E amor num relacionamento eu acho que vai vir né? No momento em que eu tiver me compreendendo melhor, me amando melhor, acho que vai surgir. Me cuidando melhor, né? tô sozinho, nessa vida num dá certo mulher Minha vida amorosa... Tô sem amar ninguém. Eu tava de namorico com um que tava aqui. Ele veio me ver. No dia que ficou da gente se encontrar eu tava fumando. Eu falei para ele que não ia ligar para ele, porque como você sabe, existe casamento que é empurrado com a barriga pelos filhos Estes recortes clínicos nos fazem pensar que o modo de gozar que a droga propõe responde bem ao mundo de hoje mantendo-se o sujeito alijado, afastado do Outro (BENETI, 1998, p. 222). Ao usar o recurso à droga o toxicômano busca um modo de gozo que não passa pelo corpo do outro, mas pelo seu próprio corpo. Neste modo de gozo o toxicômano celebra um gozo que remete ao casamento do sujeito com a droga. Com Dias, Pereira, Liberal e Nascimento (2009) consideramos que no que diz respeito ao toxicômano, Esa manera singular con la que el sujeto trata lo sexual es siempre precaria y constituye propiamente el síntoma de cada uno frente a la dificultad estructural, derivada del hecho de que el lenguaje atraviese el cuerpo de los humanos. Em la verdadeira toxicomanía, esa dificultad se torna más evidente en función de que la satisfacción obtenida por el sujeto se sitúa casi exclusivamente en un objeto donde no se encuentra ningún tipo de ambigüedad ni equívoco: el goce está al alcance de la mano, en el próprio cuerpo del sujeto (p, 71) A clínica da toxicomania ao trazer desafios e interrogações parece colocar o analista no limite de sua prática (TOROSSIAN, 2003, p. 62) levantando várias 5
interrogações, Como escutar sujeitos que remetem quase a uma impossibilidade associativa? Como analisar pessoas que colocam a droga no lugar da fala? (TOROSSIAN, 2003, p. 62). Guiando-nos pelos ensinamentos lacanianos concordamos com Freda (1996) quando afirma que No que concerne ao toxicômano, a psicanálise lhe propõe um ato único de fazê-lo sair de sua felicidade, para que ele possa encontrar na sua intimidade os contornos da causa que o determina, e deixar de ser o objeto da razão cega do social (p. 115) Referência bibliográfica: BENETI, A. A toxicomania não é mais o que era. Almanaque online, n. 9. Revista Eletrônica do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, Belo Horizonte, Ano 5 - Nº 09. - julho a dezembro de 2011.. Toxicomania e suplência. In: BENTES, L. e GOMES, R. F. (Orgs). O brilho da infelicidade. Kalimeros Escola Brasileira de Psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998. DIAS, C., PEREIRA, C. LIBERAL, L. NASCIMENTO, Z. Uma solución feliz em tempos de alloverdose. In: Pharmakon 11: El Lazo social intoxicado. Publicación de grupos e instituciones de toxicomanía y alcoholismo del Campo Freudiano. Luis Darío Salomone y Judith Miller. 1ª ed. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2009. Vol. 11. FARIAS, C. D. Toxicomania: uma solução não sintomática e sua relação com a língua saussuriana e a linguagem lacaniana. Dissertação de mestrado defendida em 2009. PRPG Letras/ UFPB. FREDA, F. Hugo. Da Droga ao Inconsciente. In: Subversão dos sujeitos na clínica das toxicomanias. Publicação do Centro Mineiro de Toxicomania. Belo Horizonte: 1996. Lacan, J. O lugar da psicanálise na Medicina. In Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, nº 32, São Paulo: Edições EOLIA, dezembro de 2001. Texto original escrito em 1966 in Cahier du Collège de Médicine, vol 12. 1966). LACAN, J. (1972-1973). Seminário 20 Mais Ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985 6
MILLER, Jacques Alain. Para uma investigação sobre o gozo autoerótico. In: MILLER, Jacques Alain. Sujeito, gozo e modernidade I. Buenos Aires, Atuel-TYA, 1995. SANTIAGO, J. Lacan e a Toxicomania: efeitos da ciência sobre o corpo. In: Ágora. V. IV n. 1 Jan/Jun 2001a.. A droga do Toxicômano uma parceria cínica na era da ciência. Zahar: Rio de Janeiro, 2001b TOROSSIAN, S. D.. Contribuições para a clínica psicanalítica com crianças e adolescentes usuários de drogas e toxicômanos. In: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, v. 24, p. 61-74, 2003. 7