O REAL DO CORPO E O SINTOMA 1

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Transcrição:

O REAL DO CORPO E O SINTOMA 1 Mônica Palacio de Barros Correia 2 O corpo humano se organiza em cima de uma dualidade que podemos caracterizar por uma realidade de superfície e uma realidade tópica, ficando excluído como princípio que falemos em interior e exterior do corpo. Isso aparentemente paradoxal é simples se nos dispusermos de elementos teóricos para leitura do que leva a uma segunda exclusão já que não podemos falar do corpo em si mesmo, como uma realidade ôntica, chamado comumente corpo humano. Para percebermos isso, basta que tomemos uma parte extensiva do nosso próprio corpo, que ao deslizar por sua superfície nos damos conta da existência de buracos que remetem a seu interior. Esta descontinuidade de superfície estabelece uma continuidade tópica. Para dar conta dessa realidade Lacan serve-se de modelos topológicos com propriedades tóricas. Retenhamos aqui o modelo do toro revirado por furo ou corte e teremos o toro trique ou cassete (bastão, cano). Indo para além de podermos aí pensar uma imagem do corpo como um tubo com duas bocas (anterior e posterior), podemos também trabalhar as propriedades desse toro que, ao ser revirado, acrescenta uma dimensão meso onde aparentemente tínhamos as dimensões ecto e endo. Basta que acrescentemos um outro instrumental de leitura a essa da realidade funcional do corpo, para saber que estamos falando em íntero, próprio e exteroceptivo. Portanto: Um corpo organizado a partir de suas vísceras com predominância do tubo digestivo (boca-ânus); um corpo organizado a partir de músculos e articulações que nos permite trabalhar a função da postura ereta e das atividades corpóreas e um corpo organizado a partir dos elementos visuais e auditivos, ou seja, da imagem, da fala e da escuta. Basta que pensemos como Freud e depois Lacan transformaram tudo isso no conceito de pulsão e suas vicissitudes, assim como posteriormente na noção organizadora do estádio do espelho que para um psicanalista diz respeito à identidade e às possíveis identificações do sujeito. 1 Ipojuca, julho de 2008. 2 Psicanalista, membro de Intersecção Psicanalítica do Brasil/PE. E-Mail: mpalacio@superig.com.br. 1

Falando do corpo dessa maneira devemos ter claro que o seu surgimento é um acontecimento na linguagem, constituindo seu primeiro entorno com regras, leis, e maneiras próprias de relações (gráficas, semânticas e léxicas), permitindo o convívio entre seus membros falaseres e o estofo para acolhimento de um recém-chegado que foi dado à luz. É a gramática do desejo, como um fora representado pela mãe, que se estabelecerá como um aplique no corpo da criança. Este aplique será então em si mesmo a denotação para a criança da falta do Outro materno, que se inscreverá no seu corpo tanto pelos cuidados a ela dispensados como também fará parte dessa escrita a história, a filiação e o posicionamento do desejo de sua mãe. Aí virá a se situar um pai com o qual a criança terá que se identificar, através da maneira que ele é nomeado como representante da incógnita do desejo dessa mãe. Esta resolução Lacan chamará escrita da metáfora paterna, Nome-do-Pai que em sua função nomeante é também o Pai-donome. A cria humana, prematura, depende desse acolhimento para sua sobrevivência, esta sobrevivência para o psicanalista diz respeito às possíveis identificações e projetos existenciais. É assim que o corpo se introduz na economia do gozo e no campo da linguagem. Aquela massa corpórea vai, através de necessidades aparentemente orgânicas, receber do seu meio uma série de outras predicações situadas para além do que ali se buscava. A isso Freud vai denominar pulsionalização do corpo e Lacan vai dar preponderante papel àquilo que chama imagem do corpo na constituição do sujeito. A criança nasce prematura e funda sua existência como carente de um dom do Outro que se consubstancia na própria vida. O Outro Real, na ocasião a mãe, se institui e é instituída como absoluta, já que é ela quem supre o necessário para seu filho e ao mesmo tempo quem nega pelo jogo presença-ausência, o fundamental para sua existência. Como Outro Real, ela é detentora da vida e da morte (amor-ódio), que estão sempre a seu dispor. É segundo a leitura que a mãe faz do que acontece a sua cria que vai estabelecer um código de relação mãe-bebê: ao que é lido como fome será devidamente atendido, ao que é lido como manha será frustrada. Essa criança passará então a viver pelos dons que recebe do Outro, dos valores de linguagem e da moral que permeia seu mundo. A demanda imaginária atribuída a esse Outro é essencial à constituição do corpo pulsional. Torna-se necessário que a criança passe a perceber através de gestos, marcas e sinais aquilo que serão os precursores do que Lacan chamará posteriormente l alíngua, escrita de afeto puro. Aí está a gênese do sujeito falante que por intermédio da negação 2

a partir de então instituída, adquire a possibilidade de contar para se contar como [-1], tornando-se assim não mais adito ao Outro materno. A isso poderíamos referir o vir à luz de um indivíduo no seu devir de sujeito. A propósito da negação, Freud escreveu um texto em 1925, Die Verneinung 3 (1) (1980), traduzido por Lacan A Denegação. Esse texto sabemos de sua fundamental importância no que diz respeito à origem do humano pela via da subjetivação. O Não como fundante do sujeito pelo exercício da linguagem, Freud trabalha na Denegação como sendo ao mesmo tempo rejeição e acolhimento, recusa e apreensão. Observamos a partir disso o organismo linguagem com certos atributos característicos do organismo corpo. Cito uma alegoria tirada de um trabalho de Alduisio: O Não está para a linguagem assim como o Polegar Opositor está para o corpo (2) (2006) 4. Isso nos permite pensar que a jovem criança somente adquire a sua individuação para ser contada como um, no momento que pode ser reconhecida por aquela que a cuida, a mãe. É quando seu corpo exerce uma recusa ou mesmo uma expulsão, seja através de um movimento de emissão de substâncias que ela expele do corpo (cocô, xixi), seja por meio do regurgito na amamentação, aparentemente procedimentos apenas orgânicos, que esses tratamentos e cuidados se inscrevem na economia de trocas fundando um pacto com características simbólicas. São desses procedimentos em aparência simples que se estabelece o primeiro diálogo com o consentimento do Outro, implicando em ato a própria asserção de um eu corpóreo da criança. É por meio desses elementos constitutivos oriundos da combinatória mãe-filho, exigindo de ambos um jogo de reconhecimento, que se dá o esboço do que mais tarde será chamada cadeia simbólica. Essas significações e sentidos passarão a representar a inscrição do corpo na linguagem fazendo dele um significante. Temos aí o primitivo de uma cópula significante onde a criança vai ocupar com seus movimentos o lugar de significante unário (S1), e a presença da mãe com seu saber fazer instituindo o campo do Outro vai ser ela própria o significante binário (S2), mais tarde chamado por Lacan o Saber. Temos com isso o meio através do qual podemos começar a nos interrogar sobre o gozo, melhor dizendo sobre os diferentes modos de gozo: O fora-corpo do gozo fálico como gozo do significante; o gozo do Outro significando gozo fora linguagem, com as 3 FREUD, Sigmund A negativa - Vol-XIX, Rio de Janeiro, Imago, 1980. (Obras Completas). 4 SOUZA, Alduisio M. O não está para a linguagem assim como o polegar opositor está para o corpo. Trabalho do Seminário de Clínica, Recife, 2006. 3

diversas formas pela qual a criança maneja seus estados de saúde ou doença. É diante do olhar do Outro pelo qual ela, a criança, vota as ações do seu corpo. Um outro tipo de gozo Lacan vai denominar gozo do sentido, este sentido ele vai referir como o que não deve ser alimentado por significações, mas ao contrário ser reduzido por meio do jogo sobre o equívoco, jogo de palavras, num trabalho realizado com letra e significante. O simbólico quando assume preponderância em relação ao sentido do imaginário acarreta recuo do sintoma permitindo ao sujeito outros modos de ordenação. Claude Conté em seu livro O Real e o Sexual diz: A pulsão é o único caminho oferecido a um ir agarrar o Outro, e numa nota de rodapé citando Lacan no Seminário os quatro conceitos complementa: O sujeito se esforçaria para se juntar ao Outro no campo pulsional 5 (3) (1995-142). O caminho percorrido pela pulsão é o que vai delimitar o vazio do objeto, este denominado por Lacan objeto a. Quanto ao vazio, ele próprio será passível de ser ocupado por um objeto qualquer que entra no circuito da demanda do sujeito, podendo então constituir uma borda para esse buraco, sendo essa borda equivalente ao contorno dos orifícios corporais. Por isso mesmo temos várias formações de objeto nos respondendo diferentes registros: real, simbólico e imaginário onde o ponto de arrocho que permite a manutenção desse nó borromeano é o único a viabilizar uma linguagem articulada e mediada. A esse respeito Lacan fez coincidir o matema da fantasia neurótica com a posição da demanda notada como $<>D, onde podemos ler no campo do sujeito uma posição de limite, desejo, castração e no campo do Outro a demanda imaginária que esse sujeito lhe atribui. Para isso basta conferir a parte superior do grafo da subversão do sujeito onde o gozo se articula entre as notações e $<>D. Se quiser pensar isso do ponto de vista puramente fenomenológico podemos ler que o elemento fundador, Outro Real, representado ocasionalmente pela mãe, é o que institui o existente humano a partir de uma carência que é sua (do Outro). Tomada imaginariamente como se ela pudesse portar o objeto da carência do seu filho, essa mãe se colocaria no lugar da demanda como o peito que se enfia na boca da criança. Se nesse campo insipiente estrutural da existência não houvesse um Outro que demandasse nossa presença e existência, porque existiríamos nós? Um sujeito assim implicado nessa satisfação já se constituiu no campo do Outro como sujeito do desejo ($), a esse gozo Lacan dará o nome de gozo fálico. Mas a pulsão 5 CONTÉ, Claude - O real e o sexual de Freud a Lacan. Rio de Janeiro, Zahar, 1995. 4

também tem como função evocar um gozo que se encontra mais-além, gozo sexual, que o Outro é incapaz de inscrever e por isso está fora do alcance de quem fala, gozo interdito (inter-dito). No imperativo do Supereu Goza (jouir), só posso entender (j ouis) eu ouço. É essa a inscrita do Real como impossível constituindo o avanço de Lacan em relação a Freud. Se goza, diz Lacan na Terceira 6 (4) (2000-48) e os psicanalistas são testemunhas disso quando se põem a escutar o que lhes é dito. Quanto ao analisante, por retornar seguidamente, busca mais para se satisfazer com sua análise. Ele goza de alguma coisa que é esse a mais, que o faz pensar, constituindo o benefício secundário de toda neurose. Um psicanalista sabe que o pensamento é aberrante por natureza, mas sabe também que é esse mesmo pensamento o responsável por um discurso através do que se pode viabilizar um trabalho de análise. O número Um do sentido é nisso que consiste o pensamento. As palavras introduzindo no corpo representações imbecis, diz Lacan, está aí a chave do imaginário. A essas representações ele vai denominar, nos Seminários... Ou Pior e mais, ainda, a besteira 7. O que podemos entender como o não-senso dos imperativos existenciais ao qual o sujeito não somente se submete, mas faz dele uma injunção à repetição de um gozo. É da besteira, do não-senso, que Lacan vai tratar durante os anos de 1972 e 1973 como aquilo de que se goza na tentativa de falar para escrever a relação sexual. Não podemos julgar o que seja ou não seja uma besteira quando nos referimos ao discurso analítico, esse discurso Lacan dirá que só é suportável desde que a busca de um mais gozar tenha como respaldo uma verdade que por seu meio-dizer vai sempre ocupar um lugar de semblante. Este semblante pode-se entender como uma postura que oscila entre ser e não-ser seguindo a maneira de escrevência da verdade. No momento em que afirma ser, poderá se contradizer pela parte não dita da verdade, constitutiva de uma segunda natureza do discurso. Sendo assim para Lacan o semblante do falante estará sempre presente em qualquer discurso que o trabalha, o que exclui qualquer intencionalidade. Fazer semblante não é fazer de conta. Isso aparece no lugar do Outro (cadeia discursiva) como a própria divisão do sujeito $, que produz como suposta causa dessa divisão um S1 sob a forma de 6 LACAN, Jacques A terceira. Tradução e notas de Alduisio M. de Souza - Cadernos Daimon 24. Porto Alegre, 2003b. 7 LACAN, Jacques - Seminário 19,...Ou Pior (1971-1972). Tradução e notas de Alduisio M. de Souza. Recife, 2008 / Seminário 20, Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro, Zahar, 1985. 5

imperativo categórico que o sufocava na sua existência: Seja assim! Seja assado! Olha o exemplo do teu pai! Não siga os passos do seu avô! Não se masturbe! Deus está vendo! Etc. Fica assim a possibilidade desses S1, por meio da intervenção do analista, se liberar em direção ao encontro de outros S2 abrindo caminho para novos rumos na existência do sujeito. Para finalizar retomo a questão do sintoma como o que se apresenta por uma anomalia vinda do Real, tendo como suplemento o gozo fálico para dar conta da não existência da relação sexual. O Real é o que comanda toda a função da significância (5) (Aula2-14) 8. A formulação do gozo do sentido já referido no seu equívoco entre o gozar e o ouvir, coloca o sujeito numa posição como se fosse possível escrever a relação sexual por meio de um sentido que ele se apropria, mas que é levado sempre ao fracasso. O que ele escreve é um gozo solitário através do qual apreende o outro, seu parceiro, unicamente como suporte do seu narcisismo corporal. Lacan então nos adverte e indica na figura do noborreano aberto, que por uma imposição do simbólico joga com esse mesmo equívoco em direção ao impossível do Real, que faz com que a não possibilidade de escrever a relação sexual, destituída de sua apreensão imaginária pelo sentido, não admita nenhum paliativo devendo voltar ao campo do Real já que em sua base está escrito: Não há relação sexual! O que se coloca como impossível é o termo relação, que significa paralelismo, equivalência. Sendo esta relação reconhecida como impossível viabiliza a prática sexual um a um, jamais a dois REFERÊNCAS BIBLIOGRÁFICAS: FREUD, Sigmund A negativa - Vol-XIX, Rio de Janeiro, Imago, 1980. (Obras Completas) SOUZA, Alduisio M. O não está para a linguagem assim como o polegar opositor está para o corpo. Trabalho do Seminário de Clínica, Recife, 2006. CONTÉ, Claude - O real e o sexual de Freud a Lacan. Rio de Janeiro, Zahar, 1995. 8 LACAN, Jacques - Seminário 19,...Ou Pior (1971-1972). Tradução e notas de Alduisio M. de Souza. Recife, 2008. 6

LACAN, Jacques. A terceira. Tradução e notas de Alduisio M. de Souza - Cadernos Daimon 24. Porto Alegre, 2003b.. Seminário 19,...Ou Pior (1971-1972). Tradução e notas de Alduisio M. de Souza. Recife, 2008. LACAN, Jacques. Seminário 20, Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro, Zahar, 1985. 7