Planejamento composicional a partir de ferramentas intertextuais

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Transcrição:

Planejamento composicional a partir de ferramentas intertextuais MODALIDADE: COMUNICAÇÃO Helder Alves de Oliveira UFPB heldcomposer@gmail.com Liduino José Pitombeira de Oliveira UFRJ pitombeira@yahoo.com Flávio Fernandes de Lima IFPE/ CPM quartetoide@gmail.com Resumo: Este artigo visa descrever as etapas do planejamento composicional utilizado na peça Devaneio, de Helder Oliveira, para quarteto de cordas. A aplicação de ferramentas intertextuais sobre o Quarteto de Cordas n. 4 de Béla Bartók é a base para a estrutura de Devaneio. Essas ferramentas são oriundas dos estudos de Straus (1990) e das pesquisas de Korsyn (1991), quem traduziu para o campo musical as ferramentas elaboradas por Bloom (2002) para a análise literária. As ferramentas intertextuais serão apresentadas aqui com o intuito de propor uma metodologia de sistematização de ideias no planejamento composicional de obras musicais. Palavras-chave: Planejamento Composicional. Ferramentas Intertextuais. Bartók. Compositional Planning based on Intertextual Tools Abstract: This article aims at describing the phases of compositional planning used in Helder Oliveira s piece Devaneio, for string quartet. The application of intertextual tools in the String Quartet no. 4 by Béla Bartók is the basis for the structure of Devaneio. These tools are derived from studies of Straus (1990) and researches by Korsyn (1991), who translated to the realm of music the tools developed by Bloom (2002) for literary analysis. The intertextual tools will be presented here in order to propose a methodology for the systematization of ideas during the compositional planning of musical works. Keywords: Compositional Planning. Intertextual Tools. Bartók. 1. Introdução A peça Devaneio 1, de Helder Oliveira, para quarteto de cordas, foi estruturada a partir da utilização de ferramentas derivadas da Teoria da Intertextualidade, e teve como base (intertexto) o Quarteto de Cordas n. 4 de Bartók. A escolha dessa obra se deu por razões afetivas e por se tratar de um importante referencial estético no âmbito de obras para quarteto de cordas do século XX. Segundo Lima (2001:31), [...] podemos definir Intertextualidade [...] como uma construção híbrida, um mosaico de citações, um procedimento de empréstimos textuais em diversos tipos de abstração, com a finalidade de fazer surgir um outro texto, e onde a existência desses empréstimos, sendo ou não evidentes ou obscuros, constituem apenas simples ingredientes no processo de elaboração.

No planejamento composicional da peça Devaneio, algumas ferramentas intertextuais, associadas a processos de filtragem, bem como alterações intencionais de ordem textural, métrica e temporal, foram utilizadas para transformar o intertexto. Inicialmente, apresentaremos uma breve fundamentação teórica sobre ferramentas intertextuais e sua aplicabilidade no campo musical e, por fim, concluiremos com o planejamento composicional de Devaneio. 2. Ferramentas intertextuais Kevin Korsyn (1991) traduz para o âmbito musical diversas ferramentas criadas por Harold Bloom (2002), cujo propósito era identificar influências entre autores de textos literários. A Tabela 1 mostra as ferramentas musicais propostas por Korsyn e o equivalente literário em Bloom. Proporção Revisionária de Bloom Clinamen: Desvio inicial do precursor Tessera: Realização antitética Kenosis: Movimento de descontinuidade com o precursor Daemonização: Movimento em direção a um contra-sublime personalizado, em reação ao Sublime do precursor Askesis: Auto-redução, separação do precursor Apophrades: Retorno da morte Aplicação musical segundo Korsyn Uma estrutura musical presente no precursor é imaginada como ausente no novo texto. A relação intertextual torna-se evidente somente no retrospecto, conforme análise de Korsyn. Após uma reação inicial contrária à obra precursora, a nova obra se reverte no oposto, identificando-se com a referência. Isolamento de uma estrutura musical de seu contexto original (precursor), colocando-a dentro de um novo texto em um contexto diferente. O compositor redireciona fatos esperados, reprimindo, reinterpretando e reagindo ao discurso do precursor, deformando-o e personalizando o seu próprio texto. Trata-se de um desvio do precursor na direção de um diálogo prazeroso das ideias deste com suas próprias ideias. É a internalização das ideias precursoras, tornando-as próprias do autor pela razão da alta qualidade das mesmas, dando-as um invólucro de novo. Tabela 1: Ferramentas intertextuais de Korsyn/Bloom. Straus (1990), por sua vez, apresenta uma série de técnicas utilizadas por compositores do século XX para reutilizar sonoridades e estruturas de obras de períodos anteriores. Neste artigo, essas técnicas, assim como as de Korsyn (apresentadas na Tabela 1) também serão denominadas ferramentas intertextuais, e são elas:

Motivização: o conteúdo motívico do trabalho precedente é radicalmente intensificado; Generalização: um motivo do trabalho precedente é generalizado no conjunto de classes de notas desordenado, do qual é um membro. Esse conjunto de classes de notas é então desdobrado no novo trabalho de acordo com as normas do uso pós-tonal; Marginalização: os elementos musicais que são centrais à estrutura do trabalho precedente (tais como cadências dominante-tônica e progressões lineares que abrangem intervalos triádicos) são relegados à periferia do novo trabalho; Centralização: os elementos musicais que são periféricos à estrutura do trabalho precedente (tais como áreas de tonalidade remota e combinações não usuais das notas resultantes de ornamentações lineares) movem-se para o centro estrutural do novo trabalho; Compressão: os elementos que ocorrem diacronicamente no trabalho precedente (tais como duas tríades numa relação funcional a cada outra) são comprimidas em algo síncrono no novo trabalho; Fragmentação: os elementos que ocorrem juntos no trabalho precedente (tais como a fundamental, a terça, e a quinta de uma tríade) são separados no novo trabalho; Neutralização: os elementos musicais tradicionais (tais como acordes de sétima da dominante) são desnudados de suas funções de costume, particularmente de seu impulso progressivo; Simetrização: progressões harmônicas e formas musicais tradicionalmente orientadas para um objetivo (forma Sonata, por exemplo) são feitas inversamente ou retrógrada-simetricamente, e são assim imobilizadas. (STRAUSS, 1990:17, tradução nossa). Vale salientar que ao mencionar a ferramenta de generalização, Straus menciona as normas de uso pós-tonal. Straus não conceitua detalhadamente essas normas nesse texto, mas nos parece que ele se refere às diversas possibilidades de operações disponíveis no âmbito da teoria dos conjuntos de classes de notas (simetria inversiva, simetria transposicional, invariância, relações de subconjunto e superconjunto, complementaridade etc.), sobre a qual Straus lançou um livro no mesmo ano (1990). Na próxima seção, examinaremos a utilização de algumas das ferramentas intertextuais, tanto de Korsyn/Bloom como de Straus, no planejamento composicional de Devaneio. 3. Planejamento composicional de Devaneio O primeiro passo na elaboração de Devaneio consistiu na aplicação da ferramenta intertextual de fragmentação, ou seja, na separação de elementos contíguos. Dos compassos do intertexto, ou seja, do Quarteto de Cordas n. 4 de Bartók, somente os que correspondem a números primos 2 foram utilizados como repositório composicional para a elaboração da nova obra. Esse repositório somente serviu como recurso para a estrutura do discurso musical na forma de esboço, visto que houve decisões posteriores, tais como eliminação e repetição de compassos, que tiveram a função de diferenciar o novo texto do texto original. Várias adaptações, tais como acréscimo e omissão de notas, acréscimo de pausas e omissão de alguns dos instrumentos, foram aplicadas com o intuito de variar a textura geral, e essas atitudes foram realizadas livremente durante a escritura da obra. Porém, na peça

Devaneio, certas características permaneceram predominantemente semelhantes ao quarteto de Bartók, tais como a quantidade de instrumentos utilizados no repositório por compasso, a ordem de entrada dos instrumentos e a primeira altura de cada compasso por instrumento. A parte superior da Figura 1 apresenta os compassos do primeiro movimento do Quarteto de Cordas n. 4 de Bartók que correspondem aos três primeiros números primos (2, 3 e 5), e a parte inferior apresenta os três compassos iniciais da peça Devaneio derivados dos compassos do quarteto de Bartók mostrados na parte superior. Observe por exemplo que, no primeiro compasso de Devaneio, derivado do segundo compasso da obra de Bartók, o Violoncelo foi omitido a fim de criar uma progressão textural, e as figuras rítmicas utilizadas são praticamente as mesmas do intertexto, prolongando-se a última nota do Violino I, para criar ressonância, e ampliando-se a pausa do Violino II. Figura 1: Compassos 2, 3 e 5 do 1º mov. do Quarteto de Cordas n. 4, de Bartók, e os três primeiros compassos de Devaneio

O tratamento das alturas no planejamento do novo texto foi efetivado pela aplicação da ferramenta intertextual de daemonização, que consiste na reinterpretação do discurso anterior por deformação, personalizando seu próprio texto. O tipo de material utilizado para o parâmetro altura é diferente em ambos os textos. Em Bartók, observamos escalas distintas para criação dos materiais motívicos; em Devaneio, esses motivos, além de serem modificados ritmicamente para uma adaptação métrica, sofreram alterações intervalares a partir da aplicação de um filtro conversor de classes de conjuntos de classes de notas 3, que estão dispostas em uma sequência que segue praticamente a mesma ordem cíclica em toda a peça [012], [013], [014], [015], [025], [016], [027], [037], [036], [026], [036], [037] e [048] e são usadas em suas transposições, inversões e permutações, ou seja, para cada classe, a inteira paleta Tn/TnI 4 pôde ser utilizada. Assim, na Figura 1, observa-se como o conteúdo intervalar de cada compasso foi alterado a partir da aplicação dessa filtragem. Por exemplo, as três primeiras alturas no Violino I (Mi, Ré e Dó) foram convertidas pelo filtro [012] em Mi, Mib e Ré. Cada classe de conjuntos, na maioria dos casos, está relacionada a um compasso do repositório formado pelos compassos selecionados do quarteto de Bartók. Os contornos melódicos da peça Devaneio ora se assemelham, ora se distanciam dos contornos melódicos do quarteto de Bartók, e são considerados livremente durante a escritura da obra. A Figura 2 apresenta na parte superior uma parte do repositório oriundo do segundo movimento do quarteto de Bartók, e na parte inferior, os compassos de Devaneio correspondentes a esse repositório, cada um com sua filtragem através de uma classe de conjunto específica segundo a sequência pré-estabelecida. Por exemplo, as classes de notas Sol, Dó (Violino I) e Ré (Violino II), no compasso 179 do quarteto de Bartók, foram convertidas respectivamente em Si, Dó e Sib, no compasso 92 de Devaneio, por meio da filtragem através da classe de conjunto [012]. Essa transformação foi aplicada tanto em nível vertical (indicada com círculos conectados) como horizontal (indicada com colchetes).

Figura 2: Parte do repositório do 2º mov. do Quarteto de Cordas n. 4 de Bartók utilizado em Devaneio a partir da filtragem de uma sequência de classes de conjuntos Outra ferramenta intertextual utilizada no planejamento de Devaneio foi tessera, que consiste em uma compleição antitética do texto original. O novo texto, como demonstrado na Tabela 2, é estruturado em cinco seções, correspondendo respectivamente aos cinco movimentos do quarteto de Bartók. Se considerarmos a dicotomia par versus ímpar como oposição, as fórmulas de compasso do intertexto foram substituídas pelos seus opostos, isto é, fórmulas de compasso com numerador ímpar foram substituídas por fórmulas de compasso com numerador par, e vice-versa (exceto a segunda seção), e fórmulas de compasso com divisão binária (par) foram substituídas por fórmulas de compasso com divisão ternária (ímpar), e vice-versa (exceto a seção 4). Na Tabela 2, são listados os tipos de compassos predominantes para cada movimento/seção. Quarteto de Cordas n. 4 de Bartók Devaneio Movimento Compasso Seção Compasso 1 Quaternário com divisão binária 1 Ternário com divisão ternária 2 Binário com divisão ternária 2 Binário com divisão binária 3 Quaternário com divisão binária 3 Ternário com divisão ternária 4 Ternário com divisão binária 4 Binário com divisão binária 5 Binário com divisão binária 5 Unário com divisão ternária Tabela 2: Compleição antitética da métrica entre o Quarteto de Cordas n. 4, de Bartók, e Devaneio

Outra oposição ocorre na mudança dos andamentos demonstrada na Tabela 3. O aumento de batidas por minuto (bpm) de um andamento a outro, no quarteto de Bartók, é substituído pela diminuição de bpm entre as respectivas seções de Devaneio que correspondem a esses andamentos, e vice-versa (com exceção da última mudança de movimento/seção, onde ambos os textos aumentam a velocidade). Aqui, não importa o grau de mudança entre um andamento e outro, mas somente se há um acréscimo ou decréscimo de bpm. Tomemos, como exemplo, os dois primeiros movimentos do quarteto de Bartók. O segundo movimento consiste em andamento mais rápido que o andamento do primeiro movimento. Assim, em compleição antitética (tessera), a segunda seção de Devaneio consiste em andamento um pouco mais lento que o andamento da primeira seção, não importando o grau de mudança entre os andamentos dos seus movimentos correspondentes no quarteto de Bartók. Quarteto de Cordas n. 4 de Bartók Devaneio Movimento Unidades de tempo por minuto Seção Unidades de tempo por minuto 1 110 1 72 2 176 196 2 68 3 60 3 72 4 142 4 68 5 152 5 72 Tabela 3: Compleição antitética do andamento entre o Quarteto de Cordas n. 4, de Bartók, e Devaneio 4. Conclusão Neste artigo, demonstramos a aplicação de ferramentas intertextuais de Korsyn e Straus no planejamento do quarteto de cordas Devaneio a partir da deformação do Quarteto de Cordas n. 4 de Béla Bartók. A aplicação das ferramentas intertextuais aqui apresentadas se revelou como uma metodologia eficaz de sistematização de ideias e criação de repositórios na fase de planejamento composicional de obras musicais, podendo ser extremamente útil no ensino da composição. Referências: BARTÓK, Béla. The String Quartets of Béla Bartók. Partituras dos Quartetos de Corda 1, 2, 3, 4, 5 e 6. New York : Boosey & Hawkes, 1945. BLOOM, Harold. A Angústia da Influência: Uma Teoria da Poesia. 2. ed. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Imago, 2002.

KORSIN, Kevin. Toward a New Poetics of Musical Influence. Music and Analysis, v. 10, n. 1/2, 1991, p. 3 72. LIMA, Flávio F. Desenvolvimento de sistemas composicionais a partir da intertextualidade. João Pessoa, 2011. 239f. Dissertação (Mestrado em Música, área de concentração Composição, linha de pesquisa Processos e Teorias Composicionais). Universidade Federal da Paraíba. STRAUS, Joseph N. Remaking the Past: Musical Modernism and the Influence of the Tonal Tradition. USA: Harvard University Press, 1990.. Introduction to Post-Tonal Theory. Upple Saddle River, NJ: Prentice Hall, 2000. WEISSTEIN, Eric W. The CRC Concise Encyclopedia of Mathematics. London: CRC Press, 1999. Notas 1 Obra composta em 2012, e premiada no Concurso FUNARTE de Música Clássica, teve sua estreia no concerto da XX Bienal de Música Contemporânea Brasileira realizado no dia 2 de outubro de 2013, no auditório Leopoldo Miguez da UFRJ, às 19h. Deveneio foi interpretada pelo Quarteto Camargo Guarnieri, composto por Eliza Fukuda (1º violino), Ricardo Takahashi (2º violino), Silvio Catto (viola) e Joel de Souza (violoncelo). 2 "Um número primo é um inteiro positivo que não tem outros divisores além de 1 e dele mesmo. Ainda que o número 1 fosse considerado anteriormente um número primo, ele requeria tratamento especial em tantas definições e aplicações envolvendo primos maiores ou iguais a 2, que ele é geralmente colocado em uma classe própria. Os primeiros números primos são 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17, 19, 23, 29,..." (WEISSTEIN, 1999, p. 1432). 3 A teoria pós-tonal opera com os seguintes elementos hierárquicos: nota (elemento com altura e registro definidos, como por exemplo Lá3), classe de nota (elemento com altura definida, mas com registro indefinido, como por exemplo Lá ou 9), conjunto de classes de notas (conjunto com diversas classes de notas, como por exemplo 034), e classe de conjuntos de classes de notas (grupo de todos os conjuntos de classes de notas que se relacionam por transposição ou inversão; por exemplo, a classe de conjuntos [014] contém 24 membros, os quais consistem em todas as transposições e inversões do tricorde 014). O maior aprofundamento sobre esses níveis hierárquicos podem ser encontrados nos dois primeiros capítulos de Straus (2000). 4 Tn = transposições em nível n; TnI = inversão em torno do eixo 0 (Dó) seguida de transposição em nível n (STRAUS, 2000, p. 34 42).