RADAMÉS GNATTALI: O CONCERTINO N. 2 PARA VIOLÃO E ORQUESTRA E A UTILIZAÇÃO DO DEDO MÍNIMO DA MÃO DIREITA

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Transcrição:

693 RADAMÉS GNATTALI: O CONCERTINO N. 2 PARA VIOLÃO E ORQUESTRA E A UTILIZAÇÃO DO DEDO MÍNIMO DA MÃO DIREITA Bartolomeu Wiese Filho Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO PPGM Doutorado em Música Teoria e Prática da Execução Musical SIMPOM: Subárea de Teoria e Prática da Execução Musical Resumo Apresenta o resultado das pesquisas realizadas sobre o Concertino n. 2 para violão e orquestra de Radamés Gnatalli, onde o compositor deixou assinaladas as suas intenções sonoras relacionadas à digitação da mão direita. As marcações expostas pelo compositor na referida obra exigem do intérprete a utilização do dedo mínimo da mão direita ao modo de Garoto tocar, obtendo-se, dessa forma, acordes plaqués. O trabalho apresenta ainda uma comparação entre a obra editada e os manuscritos do compositor, além de um breve histórico da técnica violonística da mão direita, com ênfase nos autores que utilizaram o dedo mínimo. Palavras-chave: Radamés Gnattali; dedo mínimo da mão direita; Concertino n. 2; acorde plaqué. 1. Introdução O presente trabalho insere-se nas pesquisas sobre o Concertino n. 2 para violão e orquestra de Radamés Gnattali (1906-1988) e a utilização do dedo mínimo da mão direita. Procurar-se-á demonstrar como um aspecto técnico pode influenciar a representação daquilo que seria a aproximação da concepção sonora do compositor. Vale lembrar que a sinalização de tal concepção é explícita nos manuscritos e o seu significado não é casual. A obra, dedicada ao compositor e instrumentista Aníbal Augusto Sardinha (1915-1955), o Garoto como ficou conhecido, apresenta e representa, na concepção de Gnattali, um aspecto técnico inerente ao fazer musical do músico. Gnattali e Garoto se conheceram na Rádio Nacional, onde ambos trabalharam. O Diário de Notícias comenta assim a amizade entre os músicos: sentados num dos corredores da Nacional, defronte da baía coalhada de navios e barcos, aqueles dois homens pareciam alheios a tudo. Um tocava, outro ouvia. O repórter indiscreto identificou-os: Garoto e Radamés Gnattali. Um procurava saber do outro que opinião tinha da composição que acabava de criar, e pela atenção do maestro poderíamos apostar que a aprovação era certa (Diário de Notícias, apud Antônio & Pereira, 1982, p.46).

694 Da amizade e admiração mútua nasceu o Concertino n. 2. A estréia deste concerto é uma data importantíssima para a história do violão brasileiro. Pela primeira vez um violonista brasileiro se apresentava no Theatro Municipal do Rio de Janeiro como solista, acompanhado por orquestra, executando obra de autor brasileiro. O ineditismo do feito foi assim noticiado pelo Diário do Povo de Niterói: Garoto dará um concerto no Municipal! Seu violão será acompanhado pela Orquestra Sinfônica. [...] Um furo sensacional [...]. É uma notícia agradabi-líssima [...] porque se trata de uma inovação, e fato nunca presenciado entre nós. Boa Garoto! (ANTÔNIO & PEREIRA, 1982, p. 48). É correto afirmar que a amizade que uniu Radamés a Garoto superava o mútuo respeito musical. Ambos conheciam e admiravam as modernas sonoridades do período e a generosa troca de idéias pode consolidar seus projetos estéticos composicionais. A obra para violão de Gnattali tem recebido atenção acadêmica e os trabalhos de pesquisa sobre sua obra de uma maneira geral vem crescendo nos últimos anos. Sobre seus concertos, Lima acrescenta: (...) eles diferem radicalmente dos modelos barroco ou clássico não só em estilo, mas também no conceito formal. (...) as estruturas temáticas não correspondem a uma organização convencional; na verdade elas são mais unidades com características temáticas do que um tema autêntico com funções de início, meio e fim. Igualmente, a estrutura como um todo é caracterizada por instabilidade harmônica e tonal (modulações, cromatismo), grupos estruturais assimétricos, extensões de frase e estruturais, funções formais redundantes, e uma diversidade de materiais motívicos e melódicos (LIMA, 2008, p. 34). Nos anos iniciais da Rádio Nacional, Gnattali continuou atuando na área da música de concerto, assim como na música popular, ora como compositor ora como instrumentista. Sobre o importante papel que assumiu o rádio para a cultura brasileira, Ulhôa escreveu: Mais uma vez a tecnologia industrial quebra a barreira da distância e a barreira do tempo, pois é possível tornar popular tanto a música étnica quanto a música erudita através do rádio (ULHÔA, 1997, p.11). 2. Breve Aproximação Histórica da Técnica da Mão Direita Federico Moretti publicou a primeira coleção, que se conhece, para a técnica da mão direita do violão, em Nápoles, Itália, no ano de 1792. Apenas na primeira metade do século XIX encontrase a adição do dedo anelar da mão direita na técnica violonística, com diferentes opiniões entre dois dos principais violonistas do período: o italiano Mauro Giuliani e o espanhol Fernando Sor. Segundo Sor, somente utiliza-se o anelar para acordes de quatro notas onde haja uma corda

695 intermediária entre as duas notas mais graves (POSTLEWATE, 2010). Giuliani, em 1812, publicou seu Metodo per Guitarra cuja primeira parte se caracteriza por um conjunto de 120 exercícios para a mão direita. Ali, Giuliani utiliza o polegar, indicador, médio e anelar. O primeiro método para violão, de que se tem conhecimento, a utilizar o dedo mínimo da mão direita é de Dionisio Aguado, na sua obra Escuela de Guitarra, de 1825. Apesar de Aguado não desenvolver a questão do dedo mínimo, apontou, de certo modo, a possibilidade de sua utilização. Trata-se, portanto, de um marco para a história da técnica violonística. Domingo Prat, na década de 1920, fez uma grande tentativa de adicionar o dedo mínimo na técnica violonística da mão direita em seu livro La Nueva Técnica de la Guitarra... para la práctica de los cinco dedos de la mano derecha. Prat partiu da idéia de girar radicalmente o punho da mão direita para o lado direito ao tocar os arpejos numa ordem invertida. Este método ficou desacreditado. Atualmente, dentre os métodos para violão, poucos tratam do dedo mínimo da mão direita e quando a técnica é mencionada limita-se aos rasgueios. A corrente que defende a heteredoxia escalar foi prenunciada pela atuação didática e prática de instrumentistas como Aguado, Fiset, Prat e Yepes. (...). A incorporação do mínimo da mão direita em trâmites escalares e arpejados pode representar uma das últimas fronteiras da técnica violonística tradicional a ser desbravada (SOUZA BARROS, 2008, p. 221). Charles Postlewate, por outro lado, na década de 1980, desenvolveu uma série de estudos sobre a inclusão do mínimo da mão direita que culminou com a publicação de quatro livros ainda pouco conhecidos. A questão dos acordes de cinco sons é uma questão fundamental para o objeto da pesquisa aqui apresentada. O assunto será retomado, então, no capítulo que se segue. 3. Aspectos Técnicos no Concertino N. 2 O idiomatismo de Garoto aparece claramente na obra dedicada a ele. Paulo Bellinati em seu estudo sobre a obra de Aníbal Augusto Sardinha apresenta as principais características técnicas das composições do autor: polegar como palheta ou alzapua (movimento alternado, para baixo e para cima ou vice-versa), pestana cruzando mais de uma casa, meia pestana com dedos diferentes do dedo 1 da mão esquerda e acordes de cinco sons com a utilização do dedo mínimo da mão direita (BELLINATI, 1991, p. 20-21). Assim, com exceção do uso do polegar como alzapua, todas as outras características se apresentam fortemente na obra supracitada de Gnattali. Destas, será

696 destacada a última. Acredita-se que a omissão ou a substituição de uma relevante intenção do compositor, insistentemente assinalada na partitura, constitui uma alteração da concepção original da obra. Braga comenta: oculta um importante aspecto que integrou a técnica violonística daquele artista (BRAGA, 2010, informação oral), o Garoto. No Concertino n. 2, Radamés Gnattali assinalou inúmeras vezes a digitação da mão direita que intencionava para a execução. O estudo das obras para violão do compositor comprova que raramente Gnattali sinalizava uma digitação, particularmente aquelas referentes a da mão direita. Acredita-se, portanto, ser esta obra uma exceção. Embora o dedo mínimo esteja sendo usado para a realização de acordes plaqués acordes executados simultaneamente, sem arpejar ou quebrar, e isso possa parecer pouco relevante, podemos afirmar que esta é a sua função primordial na obra em questão. A inserção deste dedo na técnica violonística significa que ele pode ser utilizado tanto para arpejos, como para harmônicos, escalas, acordes e outras funções possíveis, como agente percussivo, etc. Com a intenção de apresentar e demonstrar os benefícios desta técnica utilizada por Gnattali serão apresentados exemplos que corroboram as afirmações apresentadas neste trabalho. Para isso utilizou-se o manuscrito para violão e orquestra do Concertino n. 2. 3.1 Primeiro Movimento No primeiro movimento Allegro moderato, no compasso 27, no primeiro tempo, aparece a primeira indicação digitacional do compositor de como atuar com a mão direita. Repete a instrução no compasso 28, conforme a figura 1. Figura 1. Manuscrito de Radamés Gnatalli, Concertino n. 2, c. 27-28. Radamés escreve p, m, i, a e o número 5, entre parênteses. Nesta primeira sinalização algumas questões aparecem: a) pode-se, facilmente, deduzir que a ordem pretendida pelo autor seria p-i-m-a-(5), como observa-se no compasso seguinte, onde Radamés reafirma suas intenções digitacionais da mão direita com a inclusão do dedo mínimo, agora na ordem correta e não a apresentada no compasso 27, (p-m-i-a-5).

697 b) o número 5 representa o dedo mínimo, isto é, o quinto dedo da mão direita. Na maioria dos métodos, quando se pretende grafar este dedo, utilizado normalmente para os rasgueados, escreve-se a letra c, proveniente do vocábulo espanhol chico, cujo significado é: pequeno, menor. Como não é de uso freqüente, pressupõe-se que Gnattali tenha criado o seu próprio símbolo. No compasso 30, segundo tempo, mais uma vez a intenção do autor se apresenta. Este exemplo nos leva a crer que o terceiro tempo deva ser executado com a mesma digitação do tempo anterior, pois apresenta a mesma estrutura. Ver figura 2. Figura 2. Manuscrito de Radamés Gnatalli, Concertino n. 2, c. 30. 3.2 Segundo Movimento No segundo movimento Saudoso, nos cinco primeiros compassos, sobre um acorde de Si bemol diminuto com sétima maior e bemol treze, Gnattali emprega o dedo mínimo, conforme observa-se na figura 3. Figura 3. Manuscrito de Radamés Gnatalli, Concertino n. 2, c. 1-3. Neste movimento, Gnattali foi ainda mais explícito quando assinalou, no primeiro compasso e no primeiro tempo, as cordas que devem ser utilizadas, fato pouco usual na escrita do compositor. Aqui vale ressaltar que, caso o intérprete não queira fazer uso do dedo mínimo da mão direita, teremos uma sonoridade arpejada. No caso do intérprete decidir por tocar os acordes com o polegar, fatalmente teremos uma sonoridade na corda Lá, a quinta corda do violão, um som indesejável, portanto. Caso o intérprete opte pela utilização de polegar duplo, isto é, tocando a sexta e imediatamente a quarta corda com a adição dos dedos indicador na terceira corda, médio na segunda e anular na primeira, teremos um som arpejado, contrário ao desejo do autor, ou seja, um acorde plaqué. Nícolas de Souza Barros apresenta uma outra alternativa, (p-i-i-m-a), isto é, o indicador tocará a terceira e quarta cordas

698 simultâneamente, utilizando-se da técnica escovada (SOUZA BARROS, 2010, informação oral). Ressalva-se que quando o autor desejava um acorde arpejado ele utilizava o símbolo adequado, uma linha ondulada na vertical. Para exemplificar, basta conferir tal afirmativa na primeira intercessão do violão no primeiro movimento, no compasso 19, primeiro e terceiro tempos. Ver figura 4. Figura 4. Manuscrito de Radamés Gnatalli, Concertino n. 2, c. 19. Desconhecem-se as razões destas importantes informações não aparecerem na edição da obra. O que leva uma edição ou um editor a suprimir dados primordiais para um bom entendimento de uma obra? 3.3 Terceiro Movimento Novamente, no terceiro movimento, na primeira intervenção do violão, Radamés Gnattali apresentou 16 compassos seguidos com exceção dos c. 33 e 34 em torno da tonalidade de Lá Maior, acordes simétricos e cromáticos com a utilização do dedo mínimo. O cromatismo é uma linguagem musical explorada ao extremo por Radamés Gnattali (WIESE, 1994, p.98). Ver figura 5. Figura 5. Manuscrito de Radamés Gnatalli, Concertino n. 2, c. 27-28. A seqüência destacada acima aparecerá diversas vezes durante o movimento, como um refrão de uma forma rondó. Aparecerá, também, em forma fragmentada, nos compassos 64 a 68, nos compassos 169-170, 173-174, 177 a 179. Nestas situações enumeradas acima, o benefício que se tem ao executar da maneira sinalizada pelo compositor, além de se obter acordes simultâneos, é o de se adquirir maior clareza nas notas graves, quando esta voz tenta imitar os tímpanos que aparecem nos primeiros compassos do movimento. É provável que o ritmo apresentado pelos

699 tímpanos seja um padrão rítmico apresentado nos cultos de macumba. Radamés ao descrever o terceiro movimento disse: o terceiro movimento é um ritmo de macumba (ZANON, 2006). Uma situação onde Radamés não escreveu a digitação, mas que se torna bastante funcional encontra-se no c. 131. Por ser o violão um instrumento onde os arpejos acontecem em abundância, o esperado é que este acorde seja arpejado. O ouvinte acostumado com os recursos do instrumento será surpreendido se tal acorde for tocado de forma plaqué com o dedo mínimo, podendo transformar-se numa real surpresa sonora. Também neste exemplo ver figura 6 encontra-se uma dificuldade técnica maior, em função da abertura entre os dedos indicador, que estará na quinta corda, e o médio, que estará na terceira corda. Figura 6. Manuscrito de Radamés Gnatalli, Concertino n. 2, c. 130-131. 4. Exemplos de Ocorrências do Dedo Mínimo da Mão Direita em Outras Obras No Concerto à Brasileira Concerto n. 4 para Violão e Orquestra Radamés Gnattali escreveu uma seqüência de acordes de cinco notas com o Lá (como pedal) no grave e no agudo. Pode-se, nos compassos assinalados abaixo, criar uma nova possibilidade sonora, a partir da opção do dedo mínimo da mão direita. Ver figura 7. Figura 7. Concerto n. 4, Radamés Gnattali, c. 39-43. O exemplo a seguir figura 8 mostra uma variação da figura 7 com acordes quebrados. Figura 8. Concerto n. 4, Radamés Gnattali, c. 14-15.

700 Esses acordes de cinco sons aparecem inúmeras vezes na obra de Aníbal Augusto Sardinha, são integrantes do seu idiomatismo. O Garoto usava o dedo mínimo, como eu também uso (MENEZES, 2010). 5. Considerações Finais O desenvolvimento técnico do violão encontra-se em constante transformação, portanto, concorda-se com os pareceres, já citados, de Souza Barros e Braga sobre o dedo mínimo da mão direita. O exemplo do violonista Marcus Tardelli que apresenta uma técnica inovadora para a mão esquerda, na realização de acordes, harmônicos e pestanas em mais de uma casa do instrumento ou com pestanas duplas, corrobora o exposto ao longo do presente trabalho. Acreditamos ser uma postura coerente diante da história técnica do violão, não limitar a sua verdadeira vocação. Afinal demonstrou-se que a inserção do dedo anelar na técnica violonística, atualmente difundida nos meios acadêmicos, tem, aproximadamente, cem anos. Pode-se imaginar as possibilidades criativas advindas da incorporação de tal técnica, a do dedo mínimo, no futuro. Desejou-se destacar a flexibilidade do compositor Radamés Gnattali ao representar aspectos idiomáticos de Aníbal Augusto Sardinha, que comprovadamente utilizava o quinto dedo da mão direita. José Menezes, contemporâneo, amigo e parceiro musical de ambos, confirmou esta característica do instrumentista. Pretendeu-se mostrar, ainda, tal possibilidade técnica em outras obras de Radamés. Um domínio parcial da técnica de utilização do dedo mínimo da mão direita, em experiência realizada pelo autor deste trabalho, demonstrou-se extremamente rápido, em torno de seis meses com uma hora diária de estudo. Vale ressaltar, por fim, a premência na revisão da obra violonística de Radamés Gnattali, não somente com o intuito de reparar os erros existentes nas edições, mas como forma de se fazer redescobrir a riqueza musical do compositor. Referências bibliográficas ANTONIO, Irati e PEREIRA, Regina. Garoto, sinal dos tempos. Rio de Janeiro: Funarte/Instituto Nacional de Música, 1982. BELLINATI, Paulo. The Guitar Works of Garoto. Volume 1/2. Califórnia: Editora GSP, 1991.

701 LIMA, Luciano Chagas. RADAMÉS GNATTALI: Os Quatro Concertos para Violão Solo e Orquestra. Anais do II Simpósio de Violão da Embap, 2008. MENEZEZ, José. Entrevista. Entrevista semi-estruturada realizada pelo autor desta pesquisa em áudio e vídeo. Guapimirim/RJ: 02 de maio de 2010. POSTLEWATE, Charles. Adding the Right Hand Little Finger to Guitar Technique. Junho 2002. Disponível em <http://www.worldguitarist.com/postlewate.html> Acesso em 16 jun. 2010. SOUZA BARROS, Nícolas de. Tradição e Inovação no Estudo da Velocidade Escalar ao Violão. Rio de Janeiro: Tese Programa de Pós-Graduação em Música, CLA/UNIRIO, 2008. ULHÔA, Martha Tupinambá de. Nova História, Velhos Sons: Notas para ouvir e pensar a Música Brasileira Popular. Rio de Janeiro: Revista Debates v.1, n.1, p. 80-101, 1997. WIESE, Bartolomeu Filho. Radamés Gnattali e sua obra para Violão solo. Rio de Janeiro: Dissertação - Programa de Pós-Graduação em Música, CLA/Escola de Música da UFRJ, 1994. ZANON, Fábio. O Violão Brasileiro. São Paulo: Programa da Rádio CULTURA FM, abril, 2006.