A VARIAÇÃO NA CONCORDÂNCIA VERBAL DE PRIMEIRA PESSOA DO PLURAL NA FALA POPULAR DE MARTINÓPOLIS-TO: RESULTADOS PRELIMINARES 1 Cícero da SILVA (UFT/SEDUC-TO) 2 Maria Aparecida Nunes CARVALHO (SEDUC-TO) 3 Resumo: Neste trabalho, investigamos a variação na concordância verbal de primeira pessoa do plural na fala popular de Martinópolis, Estado do Tocantins. Pautando-nos no quadro teórico da sociolinguística variacionista, analisamos o fenômeno em questão numa amostra representada por seis entrevistas de sessenta minutos cada uma com seis informantes do distrito de Martinópolis, selecionados a partir de variáveis sociais e linguísticas. A partir dos resultados obtidos na análise quantitativa, verificamos que a variação na concordância verbal de primeira pessoa do plural está condicionada tanto por fatores linguísticos como sociais. Constatou-se que a presença da variante nãopadrão (0) é forte na fala da comunidade, independente do falante ser do sexo masculino ou feminino. A marcação zero (0) ausência total da marca padrão mos no geral foi de 81,16%. Nas ocorrências de emprego de pronome sujeito, a utilização de nós ficou com 77,53% e de a gente com 22,47%, sendo que os homens tendem a usar mais o pronome nós que as mulheres. Os resultados apontam para um quadro de variação estável, todavia corrobora a necessidade de outros estudos sobre tal unidade linguística envolvendo outras comunidades do estado para conhecer melhor esse fenômeno de variação no português brasileiro (PB) falado no Tocantins. Palavras-chave: variação; concordância verbal de primeira pessoa do plural; Tocantins Abstract: This research investigates variation in verb agreement for the first person plural in the popular variant of Portuguese spoken in Martinópolis, Tocantins State. Within the theoretical framework of variational sociolinguistics, the work analyses the phenomenon under study in the sample which consisted of six interviews of sixty minutes, each one with six native Portuguese speakers selected from linguistic and social variables, from Martinópolis Village. Results of the quantitative analysis show that variation in verb agreement for first the person plural is conditioned both by social and linguistic factors. It was found that the presence of non-standard variant (0) is strong in the speech community, independent of the speaker being male or female. The dialing zero (0) - total absence of standard mark -mos - in general was 81.16%. In instances of use of the subject pronoun, the use of we has 77.53% and 22.47% with us, and that men tend to use the pronoun we more than women. Results also indicate a stable variation pattern, nevertheless they support the need for more studies on such 1 Trabalho apresentado no I Congresso Internacional de Dialetologia e Sociolinguística, realizado no período de 17 a 21 de outubro de 2010 na UFMA em São Luís-MA. 2 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Letras Mestrado em Ensino de Língua e Literatura da Universidade Federal do Tocantins (UFT) e professor da Secretaria de Educação e Cultura do Tocantins (SEDUC-TO). E-mail: cicolinas@yahoo.com.br 3 Licenciada em Letras e Professora da Secretaria de Educação e Cultura do Tocantins (SEDUC-TO).
linguistic unity including other communities in the state to better understand this phenomenon of variation in Brazilian Portuguese (BP) spoken in Tocantins. Keywords: variation; verb agreement for first person plural; Tocantins. 1. Introdução A concordância verbal de primeira pessoa do plural na fala popular constitui uma regra variável, bastante recorrente no português brasileiro (doravante PB), como alguns estudos têm mostrado. E, observando o contexto geográfico e linguístico nacional e sua dimensão, nota-se que os estudos sociolinguísticos sobre o português falado no Estado do Tocantins ainda são poucos. E a maioria das pesquisas variacionistas realizadas no Estado têm como foco as línguas das etnias indígenas ou o PB nas comunidades quilombolas. Dessa maneira, este estudo tem por objetivo descrever a variação na concordância verbal de primeira pessoa do plural na fala de informantes da comunidade de Martinópolis, distrito localizado na zona rural do município de Bandeirantes, Estado do Tocantins. A proposta do trabalho é poder contribuir para a descrição do PB falado no Tocantins. À luz das teorias linguísticas, a primeira parte do artigo delineia considerações sobre algumas correntes de estudos linguísticos do século XX, bem como uma contextualização sobre a Sociolinguística variacionista, seu surgimento e seus pressupostos teóricos (LABOV, 2008). Já na segunda parte do trabalho, apresentamos a metodologia, a amostra, os procedimentos de coleta e análise dos dados, local da pesquisa de campo e resultados obtidos sobre a unidade linguística em estudo.
Assim, a fala popular pode ser vista como aquela que traduz com maior frequência algum tipo de variação, pois é a linguagem usada de forma natural, espontânea no cotidiano das pessoas. Por isso, está condicionada ao assunto e a aspectos históricos e geográficos da região dos informantes. E o modelo teórico-metodológico da sociolinguística variacionista permite explicar e descrever a língua analisando os fatores sociais e linguísticos que estão envolvidos em fenômenos de variação ou mudança. 2. Fundamentação teórica A visão de língua como expressão social, já que se pode considerá-la como parte integrante da cultura de um povo, só vai ganhar importância entre os linguistas a partir do Estruturalismo saussureano (LYONS, 1987). Nesse período, isto é, início do século XX, a língua vista como sistema abstrato firma-se como método teóricometodológico dos estudos linguísticos. Todavia, a partir da análise de algumas ideias de Ferdinand Saussure, especialmente aquela que ele descreve a noção de língua e suas dicotomias (diacronia e sincronia), vão surgir conflitos em relação às ideias de outros linguistas que têm a concepção de língua enquanto mecanismo variacional e uso concreto. De acordo com Calvet (2002, p.14), o francês Antoine Meillet (1866-1936) foi o primeiro linguista a ter conflito frente às ideias saussureanas, quando este discorre sobre o polêmico conceito de que a linguística tem por único e verdadeiro objeto a língua considerada em si mesma e por si mesma, presente no final da obra Curso de linguística geral, de Ferdinand Saussure. Para Meillet, essa afirmação reconhece como
verdadeiro o caráter social da língua, porém transforma em outra coisa, uma espécie de linguística que estuda a língua como sistema fechado, isolado da comunidade de fala. Assim, o problema que se vai arrastar por mais de meio século é o fato do estruturalismo linguístico ter sido estabelecido sem levar em consideração o que existe de social na língua, que na visão de Calvet, a explicação da estrutura linguística dá-se pela história, pois Enquanto Saussure busca elaborar um modelo abstrato de língua, Meillet se vê em conflito entre fato social e o sistema que tudo contém: para ele não se chega a compreender os fatos da língua sem fazer referência à dicotomia, à história. (CALVET, 2002, p. 14) Essa ideia passa-nos a noção de língua como fato social, concebida pela sociedade, o que seria anti-saussureano, pois apesar de Saussure reconhecer que a língua é um sistema elaborado pela comunidade de fala, é somente nela que ele a considera social. Portanto, contrariando esse ponto de vista, Meillet (o qual foi um dos grandes discípulos de Saussure) defende que em um estudo da estrutura linguística é preciso unir estrutura e história, já que a língua é um fato social, pois é do seio social que ela brota. Surge, então, a linguística moderna. Mas os estudos linguísticos não vão parar por aí. Esses dois discursos vão estender seus ecos até os anos de 1950 e 1960, de forma calorosa entre os linguistas, até o Gerativismo chomskyano ganhar força e espaço. Contudo, o fervor desta nova teoria de estudo da língua(gem) vai ser muito restrito ao estudo da frase, o que significa dizer que era mais um estudo abstrato da língua(gem), pois Lyons (1987, p. 211) define-o como (...) uma versão particular do estruturalismo. Desse modo, aos estudos gerativistas vai interessar mais aquilo que as línguas possuem em comum, apontando-se certa tendência à gramática universal. Na prática, essa visão teórica de estudo de língua
não comungava com a visão de Meillet, ou seja, com uma linguística de caráter social. Mas, finalmente, entra em cena o linguista William Labov, o qual irá defender contundentemente que a linguística é uma ciência social. A partir daí, floresce e frutifica a Sociolinguística, embora não se possa negar que essa nova linha de pesquisa da linguagem já havia aflorado muito cedo, isto é, a partir dos embates teóricometodológicos entre Saussure e Meillet. E foi confrontando os estudos linguísticos saussureanos e meilletanos que Labov procurou segmentar a sua teoria variacionista. Ao aprofundar os estudos e as análises envolvendo o confronto entre as ideias teóricas de seus predecessores, Labov reconhece a importância da ideia que Meillet defendia, ao afirmar que a língua é um fato social. Com efeito, implicaria ainda aos estudos labovianos um aprofundamento maior acerca do método de estudo linguístico adotado por Meillet, para conceber de fato o método variacionista. E, de acordo com Calvet, (...) Meillet, comparista de alto nível, trabalhou sobretudo com as línguas mortas, enquanto Labov trabalha continuamente com situações contemporâneas concretas, enfrenta problemas de metodologia da pesquisa, em suma, constrói um instrumento de descrição que tenta ultrapassar Meillet, integrando-os, aos métodos heurísticos da linguística estrutural (...). (CALVET, 2002, p. 33) Desse modo, Labov atém-se ao fato de que é preciso formular uma nova metodologia de estudo, pois suas pesquisas envolveriam análise da língua(gem) em uso por uma comunidade de fala, e não língua morta. Segundo Labov (2008, p. 215), A língua é uma forma de comportamento social: (...) ela é usada por seres humanos num contexto social, comunicando suas necessidades, ideias e emoções uns aos outros. Partindo dessa concepção, foi necessária a adoção de novos métodos de coleta de dados, envolvendo variáveis sociais e linguísticas, já que se propôs a verificar uma situação de uso real da língua.
2.1 Variação linguística Quando falamos em termos de variação linguística, basicamente, procuramonos limitar ao uso de variantes constatadas nos diversos níveis da gramática de determinada língua, como a fonética, a morfologia, a sintaxe, etc. Na verdade, podemos aceitar que essa ideia é plausível e faz parte do campo de estudo da sociolinguística. Em se tratando do léxico, Mollica (2004, p. 9) mostra alguns exemplos de variação: framengo, andano, ta, paia, encontrados no português falado no Brasil, coexistindo com: flamengo, andando, está, palha. Essas são algumas das ocorrências que ilustram a variabilidade linguística que está presente em todas as línguas naturais humanas. Observa-se também que em certos segmentos sociais não se realiza a concordância entre sujeito e verbo, e isto ocorre com mais frequência se o sujeito está posposto ao verbo (SCHERRE; NARO, 1998). Algumas palavras são empregadas em um sentido específico de acordo com a localidade de cada falante. Além disso, Beline (2005, p. 125) afirma que De uma perspectiva variacionista quantitativa, (...) a sociolinguística ocupa-se em desvendar como a heterogeneidade ou seja, a variação se organiza. Em outras palavras, pode-se afirmar que é por meio de um estudo sociolinguístico que se procura constatar e compreender de que modo a variação é regulada, de que modo ela é condicionada por fatores sociais.
Retomando essa ideia, na concepção de Tarallo (1990, p. 8) variantes lingüísticas são as diversas maneiras de se dizer a mesma coisa em um mesmo contexto, mantendo-se o mesmo valor de verdade. Assim, a variação manifesta-se tanto em nível de grupo como no nível individual. No caso atual do português brasileiro, observando os resultados de uma pesquisa envolvendo a variação na marcação de plural nos SNs, Scherre e Naro (1998, p. 1) afirmam que: Diferentemente do português de Portugal, o português vernacular do Brasil apresenta variação sistemática nos processos de concordância de número, exibindo variantes explícitas e variantes zero (0) de plural em elementos verbais e nominais (...). Essa situação configura uma ocorrência de variação linguística na comunidade de fala observada tanto no Brasil quanto em Portugal. O exemplo citado também ilustra que, apesar disso, o uso da variante zero (0) ou não-padrão representa uma das variantes linguísticas peculiares no uso cotidiano do português brasileiro. 2.2 Concordância verbal de primeira pessoa do plural A alternância das formas dos pronomes sujeitos nós e a gente, representando a primeira pessoa do plural, é de uso comum entre os falantes no Brasil (LOPES, 2008). A gramática normativa, entretanto, por raramente explicar certos fenômenos já consagrados na língua falada, em alguns momentos parece apresentar divergências quanto à classificação e inserção da forma a gente no sistema de pronomes pessoais e considera o pronome nós como mero plural de eu.
Nos últimos anos, foram realizadas várias pesquisas sobre a introdução da forma a gente no quadro dos pronomes pessoais, como uma variante do pronome de primeira pessoa no plural nós (ZILLES; BATISTA, 2005). No caso atual do português brasileiro, observando os resultados de uma pesquisa envolvendo a variação em termos de uso da expressão a gente em vez de nós, a ocorrência geral de uso de a gente chegou a 69% (OMENA, 1996, p. 79). Nota-se, então, que em uma comunidade há falantes que evitam o uso de a gente, enquanto outros dificilmente lembram-se de nós. São atitudes e opções individuais, que, de certo modo, configuram o aspecto social da comunidade linguística, uma vez que neste caso temos a variante não-padrão (a gente) sendo usada concomitantemente com a forma padrão (nós). Observa-se também que é crescente o emprego da expressão a gente na função de pronome pessoal, ora para fazer referência à primeira pessoa do plural (nós), ora para fazer uma referência genérica, mas sempre o falante inclui-a no conjunto referido. Geralmente, nos casos em que a expressão a gente faz referência a nós, podemos observar que os pronomes possessivos que a ele se relacionam tomam a forma da primeira pessoa do plural. Porém, a concordância com os objetos pode manifestar ou não a primeira pessoa do plural. Em termos gerais, os pronomes pessoais são caracterizados pelos gramáticos como indicadores universais das três pessoas do discurso: quem fala, com quem se fala e de quem se fala. Admitindo-se formas no singular com correspondente no plural, a descrição gramatical refere-se à oposição singular plural nos pronomes pessoais, dando a noção de número, o que implica o agrupamento de elementos de mesma natureza, embora não seja isto que ocorre com a forma nós, entendida como plural de eu e vós/vocês como plural de tu/você.
Com base em um levantamento sobre a marcação de plural em língua portuguesa (BECHARA, 1976), verifica-se que vários são os processos utilizados para isso. Mas, na primeira pessoa do plural, o morfema flexional marcador de plural na língua oficial do Brasil tem sua representação pela desinência -mos, oposto a um [0], pois a marcação de plural ocorrerá tanto no sintagma nominal (SN) como no sintagma verbal (SV). De acordo com Monteiro (1991, p. 60), A desinência /mos/ em viajamos indica a pessoa (primeira) e o número (plural). Será incorreto encontrar dois morfemas, ou seja, dizer que /mo/ marca a primeira pessoa e /s/ caracteriza o plural. Desse modo, o desinência /mos/ é indivisível e expressa as duas noções simultaneamente. 3. Metodologia A pesquisa é de natureza bibliográfica e de campo, fundamentada nos princípios teóricos da sociolinguística (LABOV, 2008; TARALLO, 1990), a fim de possibilitar a comparação de resultados entre as variedades linguísticas. O corpus é constituído de seis gravações (em fita K-7) de sessenta minutos cada uma com seis falantes da comunidade de Martinópolis, Estado do Tocantins. Os informantes foram selecionados de acordo com as variáveis sociais: sexo (3 feminino e 3 masculino), idade (25-54 anos e + de 55 anos), tempo de escolarização (até 4 anos). Após as gravações, os dados foram transcritos e os enunciados que apresentavam a unidade em análise, marcação verbal de primeira pessoa do plural na fala, foram extraídos do texto.
Como Martinópolis foi fundado no final da década de 60, foram entrevistadas pessoas que, em sua maioria, eram agricultores, caseiros e donas de casas. Para participar da pesquisa, o informante deveria: I - ter vivido no mínimo os últimos 35 anos de sua existência em Martinópolis; II - não ter vivido mais de um ano fora da comunidade de Martinópolis nos últimos 35 anos. Mas alguns dos informantes selecionados residem na região há mais de 40 anos, segundo depoimentos. 3.1 A comunidade de fala tocantinense Segundo Cavalcante (1999, p. 30), as primeiras invasões no norte goiano de que se têm notícias mais precisas datam do século XVII. Partiram inicialmente do bandeirismo paulista, ocasião em que o bandeirante Beuchior Carneiro, em 1607/1609 atingiu essa região, seguido por Martin Rodrigues em 1608/1609. Na verdade, o grande vazio demográfico que constitui o atual Estado do Tocantins só teve a formação dos primeiros núcleos de povoamento em função da descoberta do ouro no século XVIII pelos bandeirantes. Mas os arraiais que surgiam próximos às minas de ouro, na maioria das vezes, eram abandonados após o esgotamento desse minério. Vale lembrar também que a maioria dessas minas estava localizada na região Sudeste do atual Tocantins (em Natividade, Arraias e Almas), o que favorecia a ligação com a Bahia e Sul de Goiás. Desse modo, o Norte Goiano tinha pouca importância para o governo da Capitania de Goiás. Para Aquino (2004, p. 339), o Norte de Goiás (hoje Tocantins) ao longo dos anos foi construindo uma identidade própria, mas contando com uma composição
étnico-cultural de larga influência de estados nordestinos, notadamente Maranhão, Piauí e Bahia. Assim, a chegada da BR-153, durante o governo JK (1956-1961), representa, de maneira definitiva, a ocupação dos sertões do Norte Goiano. Ou seja, é também a partir desse período que vão ocorrer grandes transformações sociais, políticas e econômicas na região. Portanto, a criação do Estado do Tocantins só vai acontecer definitivamente em 5 de outubro de 1988, bem como a emancipação de alguns distritos no mesmo período. Não há informações precisas sobre a data da criação do distrito de Martinópolis, mas, segundo depoimentos de alguns informantes, a origem histórica do referido distrito teria sido aproximadamente no final do ano de 1968. Todavia, é somente em 28 de julho de 1975 que o povoado é oficializado com o nome Martinópolis, pelo senhor Martinho Pereira Rodrigues, o qual integrava as correntes políticas da cidade de Colinas do Tocantins. O terreno habitado de Martinópolis era um dos lotes rurais de Colinas. Assim, a escola, o posto de saúde, a rede elétrica e a rede de distribuição de água construídos no distrito, até início da década de 1990, foram assistidos e administrados pela Prefeitura do Município de Colinas. Com a criação do Estado do Tocantins em 1988, foram criados alguns municípios no Estado, dentre eles, Bandeirantes do Tocantins. Assim, a partir do início da década de 1990 Martinópolis torna-se um dos distritos que compõem o município de Bandeirantes, deixando de fazer parte da área do município de Colinas do Tocantins. Hoje, são aproximadamente 25 famílias que ainda residem no lugar e vivem basicamente da agricultura de subsistência. Todavia, Martinópolis vive um momento de decadência, já que os jovens estão mudando para cidades próximas em busca de
emprego e oportunidade de estudo. Assim, sua população atual é constituída basicamente de crianças menores e adultos. 3.2 Análise dos dados Ao transcrever as entrevistas, foram excluídos os dez minutos iniciais e os dez finais, pois é fundamental que o pesquisador desconsidere principalmente os dez minutos iniciais de uma entrevista, já que é o tempo necessário para que ele envolva o informante e que este esqueça a presença do gravador e da pessoa do pesquisador. Foram extraídos da amostra todos os enunciados que apresentavam a unidade em análise, marcação verbal de primeira pessoa do plural. Atentou-se também para a questão do conteúdo, perfil do informante, e, quando necessário, foram observados, na análise, outros dados sociais do informante. Embora o mercado disponha de softwares especializados para realização de cálculos estatísticos dos dados de pesquisas sociolinguísticas, neste estudo não foi possível usar nenhum software, o que não nos permite apresentar pesos relativos nas tabelas, apesar de ser uma informação a mais para o estudo. Assim, calculamos apenas os percentuais das ocorrências. Na variedade padrão do português falado, a concordância verbal em termos de desinência número-pessoal (DNP) é considerada regra básica. Entretanto, algumas pesquisas mostram que, nas variedades não-padrão do português do Brasil, a concordância verbal é uma regra variável, pois (...) as investigações já realizadas sobre concordância verbal como regra variável se concentram principalmente na presença/ausência de marca de 3ª pessoa do plural, tendo demonstrado variação na concordância verbal ao longo de todo o continuum dialetal brasileiro (...). (ZILLES; BATISTA, 2005, p. 100).
Em outras palavras, significa dizer que é predominante o uso da forma básica do verbo (radical + vogal temática) sem desinência número-pessoal. Agora, vejamos algumas ocorrências de marcação verbal na primeira pessoa do plural na fala de informantes de Martinópolis: (1) Nois tomava banho nos córrego. (FA35) 4 (2) Naquela época nós plantava milho, arroz, feijão... (MB64) (3) Nós gostava de brincar de boneca. (FA48) (4) Depois de uns mês nois queria voltar. (MB68) (5) Quando nois chegou aqui as casa era tudo de paia. (FB66) (6) Nós já falamo pro vereador daqui. (MB64) Ao observar o aspecto das variáveis sociais dos informantes que enunciaram as frases (1), (2), (3), (4) e (5), nota-se que essas ocorrências são marcadas pela ausência da desinência mos nos verbos, sendo que em (6) ocorreu apenas o apagamento fonético de /s/, mantendo-se a concordância conforme a norma padrão. Assim, após o cruzamento das ocorrências na fala de cada um dos seis informantes de Martinópolis, chegou-se aos seguintes resultados sobre a marcação verbal na primeira pessoa do plural: Tabela 5 I Variação na Concordância verbal de 1ª pessoa do plural na fala popular de 6 informantes de Martinópolis-TO em relação ao sexo Variáveis Sociais PD ÑPD ZERO Aplic. % Aplic. % Aplic. % Feminino 0/36 0,00 5/36 13,89 31/36 86,11 Masculino 0/33 0,00 8/33 24,24 25/33 75,76 Total 0/69 0,00 13/69 18,84 56/69 81,16 4 Legenda 1: Sexo: F Feminino / M Masculino; Faixa etária: A de 25 a 54 anos / B mais de 55 anos. 5 Legenda 2: PD Presença da marca padrão -mos (Ex: Nós falamos); ÑPD Presença da marca não-padrão, ocorrendo apenas o apagamento do s da desinência mo (Ex: Nós falamo. Nós trabalhamo.); Zero Ausência total da marca padrão mos (Ex: Nós fala.; Nós trabalhava.)
Como ilustra a tabela I, a partir da soma total individual de ocorrências de marcação verbal de primeira pessoa do plural, obteve-se um corpus com um total de 69 ocorrências. Desse total, a marcação padrão mos (PD) teve 0%, não-padrão mo (ÑPD) 18,84% e ZERO 81,16%. Como se observa, é baixa a concordância na unidade em análise levando-se em consideração a norma culta padrão do português brasileiro (PB), detectada na fala dos 6 informantes selecionados da comunidade em estudo. Tanto na fala de homens quanto de mulheres a presença da marca padrão mos (PD) foi de 0%, e com o apagamento fonético de /s/ em mos chegou a 18,84%. É importante ressaltar que foi um estudo sobre o uso da fala popular, envolvendo informantes com no máximo quatro anos de escolaridade. Assim, podemos considerar que esses resultados trazem um aspecto peculiar da língua portuguesa em uso na fala corrente de uma comunidade rural tocantinense. Observando as ocorrências encontradas em outras comunidades linguísticas brasileiras (urbanas), como os resultados de um estudo realizado com 32 informantes sobre a concordância verbal com a primeira pessoa do plural na fala de Panambi e Porto Alegre (ZILLES; BATISTA, 2005, p. 106), a partir das 1.035 ocorrências que compõem o corpus chegou-se aos seguintes números: marcação zero 13%, não-padrão mo 34%, padrão mos 53%. Apesar de ter sido evidenciada a aplicação da marca padrão mos 53% na concordância com a primeira pessoa do plural na pesquisa de Zilles e Batista (2005), isso pode ser justificado uma vez que tal estudo envolveu a fala culta de informantes com primário (4 anos de escolaridade) e segundo grau (11 a 12 anos de escolaridade), o que difere do estudo realizado sobre essa mesma unidade em Martinópolis. Ou seja, os
informantes da comunidade tocantinense selecionados tinham mais de 25 anos e até 4 anos de escolaridade. Quanto aos resultados obtidos em relação à variável social sexo em Martinópolis, fica evidente que a aplicação da regra de concordância entre os informantes do sexo feminino e do sexo masculino não difere muito. Os dados apresentados mostram que na fala dos informantes do sexo feminino (três) é mais elevada a ausência de concordância, pois das 36 ocorrências, 0% foi PD, 13,89 ÑPD e 86,16% são de marcação ZERO. Com o grupo de informantes (três) do sexo masculino, das 33 ocorrências, a marcação PD ficou com 0%, ÑPD 24,24% e ZERO 75,76%. Como se pode observar, a aplicação da marcação ZERO é mais elevada na fala dos informantes do sexo feminino. É importante ressaltar que, segundo Zilles e Batista (2005, p. 105), (...) o comportamento de homens e mulheres nos processos de variação e mudança lingüística depende dos papéis que desempenham nas sociedades e das características sócio-históricas dessas sociedades. O que se observou em Martinópolis é que a mulher tem um convívio social um pouco mais limitado que o homem, pois, geralmente é o homem que vai à cidade fazer as compras ou levar um filho doente ao médico. Essa é uma questão cultural que pode influenciar os resultados, apontado maior uso da marca padrão na fala masculina. Entretanto, algumas pesquisas mostram que as mulheres apresentam melhor desempenho que os homens quanto à aplicação da norma padrão ao uso da língua (PAIVA, 2004; MILROY; MILROY, 1997), uma vez que a variedade padrão traz prestígio social. Mas, acima de qualquer coisa, a presença da marcação ZERO e a ausência da marcação padrão (-mos) deixam clara a variação linguística existente neste momento na fala popular dessa comunidade. E, apesar de ser
tida como forma estigmatizada do ponto de vista padrão, é ela que predomina e estabelece as relações sociais dentro dessa comunidade. Além disso, outra variante analisada neste estudo foi o emprego do pronome sujeito a gente em lugar da forma padrão nós. E a tabela II traz os seguintes resultados: Tabela II Distribuição geral da variação dos Pronomes sujeitos Nós e A gente na fala popular de 6 informantes de Martinópolis-TO Variáveis Sociais Nós A gente Aplic./Total % Aplic./Total % Feminino 36/50 72,00 14/50 28,00 Masculino 33/39 84,62 6/39 15,38 Total 69/89 77,53 20/89 22,47 Com base na tabela II, considerando apenas a variável sexo, podemos afirma que os resultados obtidos sobre a variação dos pronomes sujeitos nós e a gente, na fala dos 6 informantes da referida comunidade, é bastante peculiar. Das 50 ocorrências na fala dos informantes do sexo feminino, o emprego de nós chegou a 72% e de a gente a 28%. Por outro lado, das 39 ocorrências na fala dos informantes do sexo masculino, o uso de nós é de 84,62% e a gente é de 15,38%. Esses percentuais mostram o emprego mais elevado da variante a gente nas falas do grupo feminino, sendo que o grupo masculino prefere a forma-padrão nós. Apesar disso, a diferença entre os percentuais é pequena, mas a presença da variante não-padrão (a gente) está evidente. Essa variação que se detectou na fala popular dos seis informantes da pesquisa realizada em Martinópolis reflete o uso simultâneo dos pronomes sujeitos nós e a gente, variante recorrente na fala da maioria da população brasileira. De acordo com os percentuais da tabela II, de um total de 89 ocorrências de emprego de pronome sujeito, a
utilização de nós ficou com 77,53% e de a gente com 22,47%, como mostram as seguintes ocorrências: (7) Nós passamo um dia na estrada. (FA48) (8) Quando a gente era moça nóis bricava muito de roda. (FA35) (9) A gente ia pros festejo. (MA55) (10) A gente é muito fraco. (MB64) No geral, os resultados da pesquisa ilustram uma preferência elevada pelo uso de nós versus a gente. Assim, observando os resultados de uma pesquisa de Lopes (2008), envolvendo 18 entrevistas do projeto NURC-BRASIL (6 de cada cidade RIO, Porto Alegre e Salvador) sobre o emprego dos pronomes sujeitos nós e a gente, No Rio acusa-se uma preferência de 69% para o uso de a gente, em oposição a Porto Alegre e Salvador, cujos falantes utilizam mais a forma nós (72% e 63%). Ou seja, comparando os resultados, nenhuma dessas três cidades atingiu os números obtidos em Martinópolis (nós 77,53% e a gente 22,47%). De qualquer maneira, o estudo nessa comunidade tocantinense ainda é preliminar, todavia revela resultados semelhantes à realidade nacional sobre o uso da variante a gente. 4. Algumas considerações Como demonstrou o estudo, a falta de concordância na unidade em análise - levando-se em consideração a norma culta padrão do português brasileiro (PB), é bastante elevada, pois na fala de homens e mulheres a presença da marca padrão mos (PD) foi de 0% e com o apagamento fonético de /s/ em mos chegou a 18,84%. É importante ressaltar que foi um estudo sobre o uso da fala popular de uma comunidade rural, além de todos os informantes entrevistados só terem até quatro anos de
escolaridade. Acreditamos que a inclusão de informantes de outra faixa etária (15-24 anos) e com outro nível de escolaridade (até 8 anos) da comunidade poderá mudar os resultados obtidos até aqui. Assim, podemos afirmar mais uma vez que esses resultados trazem um aspecto regional importante da variação na concordância verbal de primeira pessoa do plural no PB em uso na fala corrente de uma comunidade tocantinense (representada por seis informantes de Martinópolis), muito embora não difira tanto de resultados encontrados sobre a mesma unidade estudada em outras comunidades brasileiras (Cf. OMENA, 1996; ZILLES; BATISTA, 2005; LOPES, 2008). Os resultados apontam para concordância de primeira pessoa do plural em algumas direções. Quanto aos fatores sociais, a presença da variante não-padrão é forte na fala da comunidade. Mas, independente do falante ser do sexo masculino ou feminino, a marcação zero ausência total da marca padrão mos no geral foi de 81,16%. Além disso, os resultados apresentados mostram também o uso simultâneo dos pronomes sujeitos nós e a gente, variante recorrente na fala da maioria da população brasileira. Nas ocorrências de emprego de pronome sujeito, no geral a utilização de nós ficou com 77,53% e de a gente com 22,47%, sendo que os homens tendem a usar mais o pronome nós que as mulheres. Portanto, os dados mostram que é preciso realizar outros estudos envolvendo informantes mais jovens, com outros níveis de escolaridade para conhecer melhor o fenômeno da variação linguística nessa comunidade tocantinense. Referências bibliográficas
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