ANÁLISE DA CONFIGURAÇÃO ARGUMENTAL DOS VERBOS DE PROCESSO NA CONVERSAÇÃO

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Transcrição:

PublICa VII (2010) 01-08 1 ANÁLISE DA CONFIGURAÇÃO ARGUMENTAL DOS VERBOS DE PROCESSO NA CONVERSAÇÃO ¹ Leonardo Medeiros da Silva e ² Profa. Dra. Maria Angélica Furtado da Cunha ¹ Bolsista PIBIC. ² Professora orientadora Resumo Este trabalho investiga a ocorrência dos verbos do tipo sintático-semântico de processo na conversação espontânea. Os verbos de processo são aqueles que expressam um ou mais eventos que afetam um participante. A pesquisa tem como corpus o Banco Conversacional de Natal (FURTADO DA CUNHA, 2011), que constitui uma amostra de fala natural. Uma vez que examina dados reais de fala espontânea, a investigação permitiu observar como os verbos de processo e seus argumentos são usados por falantes envolvidos em interações comunicativas. O estudo desses argumentos engloba a classificação do papel temático do sujeito (paciente, experienciador ou beneficiário) e a classificação morfossintática, semântica e pragmática do objeto direto. Palavras-chave: Verbo de processo, estrutura argumental, conversação Abstract This work examines the occurrence of verbs syntactically and semantically classified as verbs of process. These verbs express one or more events that affect a participant. The data come from Banco Conversacional de Natal (FURTADO DA CUNHA, 2011), a corpus representative of natural speech. Since the investigation is based on real data from spontaneous speech, it allowed me to observe how the verbs of process and its arguments are used by speakers involved in communicative interactions. The study of these arguments comprises the thematic role of the subject (patient, experience or benefactive) and the morphosyntactic, semantic and pragmatic classification of the direct object. Keywords Verbs of process, argument structure, conversation

Leonardo Medeiros da Silva et al. / PublICa VII (2010) 01-08 2 Introdução Este artigo é resultado de um plano de trabalho de Iniciação Científica, vinculado ao projeto de pesquisa Motivações cognitivas e interacionais da estrutura argumental dos verbos transitivos, coordenado pela Profa. Dra. Maria Angélica Furtado da Cunha, líder do grupo de pesquisa Discurso & Gramática da UFRN. Minha pesquisa objetivou investigar a ocorrência dos verbos do tipo sintático-semântico de processo na conversação espontânea. Este trabalho está ancorado nos preceitos teóricos funcionalistas de linha norte-americana. Em oposição ao estruturalismo e ao gerativismo, o funcionalismo preocupa-se em estudar as estruturas gramaticais das línguas nos diferentes contextos comunicativos em que elas são usadas, uma vez que os fatores pragmáticos operam sobre os fenômenos linguísticos. A esse respeito, Furtado da Cunha (2008) faz a seguinte consideração: Os funcionalistas norte-americanos advogam que uma dada estrutura da língua não pode ser proveitosamente estudada, descrita ou explicada sem referência à sua função comunicativa. Ainda segundo a autora, há uma forte veiculação entre discurso e gramática: a sintaxe tem a forma que tem em razão das estratégias de organização da informação empregadas pelos falantes no momento de interação discursiva. Corroborando os preceitos funcionalistas norte-americanos, também a linguística cognitiva considera que as línguas não podem ser explicadas apenas por mecanismos formais auto-suficientes. Ao contrário, é fundamental levar em consideração os processos de pensamento subjacentes à utilização de estruturas linguísticas e sua adequação aos contextos reais nos quais essas estruturas são construídas. (MARTELOTTA et al., 2008) Partindo destes pressupostos teóricos funcionalistas e cognitivistas, que defendem análises baseadas na língua em uso, a pesquisa tem como corpus o Banco Conversacional de Natal (FURTADO DA CUNHA, 2011), que constitui uma amostra de fala natural. Para a classificação dos verbos, fui auxiliado pelo Dicionário de usos do português do Brasil (BORBA, 2002). Uma vez que analisa dados reais de fala espontânea, a investigação permitiu observar como os verbos de processo e seus argumentos são usados por falantes envolvidos em interações comunicativas. O trabalho visou gerar informações relevantes para o conhecimento sobre esses verbos, possibilitando novas estratégias para o ensino dessa classe gramatical.

Leonardo Medeiros da Silva et al. / PublICa VII (2010) 01-08 3 Segundo Chafe (1979) e Borba (1996), os verbos podem ter quatro classificações sintático-semânticas: ação, processo, ação-processo e estado. Os verbos de processo, foco deste trabalho, são aqueles que expressam um ou mais eventos que afetam um sujeito paciente ou experienciador, como por exemplo O bebê acordou, em que o sujeito o bebê é paciente, e Maria sente frio, em que o sujeito Maria é experienciador (BORBA, 1996, p. 58). Pode ser, ainda, que o sujeito de um verbo de processo desempenhe o papel semântico de beneficiário, como no exemplo a seguir citado por Borba: Leo herdou uma fazenda do avô. Mais adiante veremos com mais detalhes essas classificações. Há enunciados em que o verbo de processo apresenta um segundo argumento, que sintaticamente funciona como objeto direto, como em: Dulce tornouse/virou escrava do marido (Borba, 1996). O papel semântico desse argumento também será examinado. Metodologia O material selecionado para exame consiste de duas conversas espontâneas, totalizando 44 minutos de conversação, produzidas por nove falantes de ambos os sexos e idades variadas 1. A primeira atividade desenvolvida na realização desta pesquisa foi a leitura e discussão da literatura de cunho funcionalista e cognitivista, para que a análise dos dados pudesse ser feita de acordo com esse referencial teórico. Nesse momento tomamos conhecimento da classificação sintático-semântica dos verbos proposta por Chafe (1979) e Borba (1996). A segunda atividade consistiu na varredura do corpus em busca dos verbos de processo, foco da pesquisa. O desenvolvimento dessa etapa foi dividido em três momentos: no primeiro momento (quantitativo), foram computadas as ocorrências (tokens) e os tipos (types) de todos os verbos transitivos e intransitivos 2 usados pelos falantes nas duas conversas, à exceção dos chamados verbos de ligação. No segundo momento (qualitativo), com base na leitura e discussão do material teórico, foi feita a classificação dos verbos de processo dentre todos os verbos levantados, com consulta ao Dicionário de usos do português do Brasil (BORBA, 2002). Em seguida, na terceira etapa da pesquisa, a partir da classificação sintático-semântica desses verbos, foram examinados os papéis semânticos do argumento sujeito das orações. Nos enunciados em que o verbo de processo tem um segundo argumento (objeto direto), o papel semântico

Leonardo Medeiros da Silva et al. / PublICa VII (2010) 01-08 4 desse argumento também foi classificado. Análise dos dados Segundo Borba (1996, p. 58), o sujeito dos verbos de processo pode ser classificado como paciente, experienciador ou beneficiário. Vejamos os dados. No enunciado 131 o André só num quebrou a perna... 3 classifica-se o sujeito como paciente por ele não ter o controle do evento designado pelo verbo, ou seja, a oração expressa algo que se passa com o sujeito independentemente de sua vontade. No dado a seguir, o processo representado pelo verbo viver afeta o argumento sujeito, que é um experienciador. O papel do sujeito é experienciador quando seu referente passa por uma experiência da qual também não tem controle, como no dado 373 do corpus: dependendo do... do meio que você vive... das suas condições... das/des/do seu nível social... 4. Finalmente, o sujeito é beneficiário quando é beneficiado pelo processo representado pelo verbo, como em 169 eles estão recebendo essa informação... 5. É possível perceber, nesse enunciado, que alguém passa a informação a eles que a recebem, desempenhando, por tanto, o papel de beneficiário. Faz-se importante ressaltar que, embora prototipicamente os verbos de processo sejam intransitivos, ou seja, com apenas um argumento sujeito, Borba afirma que eles podem ter um segundo argumento objeto direto, mas não classifica esse objeto. Analisadas as duas conversas no primeiro momento da pesquisa (quantitativo), que teve por objetivo o levantamento de dados, o total de verbos de todos os tipos sintático-semânticos no corpus selecionado para análise foi 1.271 (100%), sendo que os de processo ocorreram 31 vezes (correspondendo a 2,5% do total), enquanto os de ação, ação-processo e estado totalizaram 1.239 ocorrências (correspondendo a 97,5% do total), como ilustra o gráfico a seguir.

Leonardo Medeiros da Silva et al. / PublICa VII (2010) 01-08 5 Gráfico 1: Ocorrências dos verbos de processo (tokens) Como se pode ver, os verbos de processo têm baixa frequência na conversação. Os verbos preocupar (três ocorrências), aprender, receber, crescer, passar, quebrar (duas ocorrências cada) foram os verbos de processo mais frequentes no corpus. Os outros quatorze verbos ocorreram apenas uma vez. Na análise da configuração argumental dos verbos de processo, foi possível observar, também, que 42% dos verbos de processo ocorreram com complemento objeto direto, 32% com objeto indireto e 26% ocorreram sem complemento. Observados esses dados, é possível perceber que em quase metade dos casos (treze ocorrências) o verbo de processo tem como complemento um objeto direto. Isso mostra que a ação indicada pelo verbo, assim como Borba (1996) e Chafe (1979) postulam, de fato afeta preferencialmente o primeiro argumento, o referente do sujeito sintático; entretanto, esses verbos podem ser usados com um segundo argumento, visto que em apenas 26% dos casos os verbos ocorreram sem objeto. Borba (1996) considera, ainda, a existência de três tipos semânticos de sujeito que podem ocorrer com os verbos de processo (cf. p. 3). Em meu corpus, 55% desses sujeitos são experienciadores, 39% são pacientes e 6% são beneficiários. Sendo assim, é possível afirmar que o tipo semântico de sujeito mais frequente é o experienciador, com dezessete ocorrências no corpus, equivalendo a mais da metade dos casos. Contudo, é importante salientar que o tipo textual e o gênero discursivo em que os dados ocorrem podem ter influência sobre esses números. Nesse sentindo, para confirmar tais aspectos semânticos se faz necessária uma pesquisa que abranja diferentes tipos textuais e gêneros discursivos.

Leonardo Medeiros da Silva et al. / PublICa VII (2010) 01-08 6 Desse momento em diante, tratamos de classificar o segundo argumento que acompanha os verbos de processo. Conforme a tabela a seguir, esses objetos diretos foram classificados de acordo com: i) natureza semântica (+ ou animado); ii) codificação morfossintática (pronome ou substantivo); iii) estatuto pragmático (informação nova ou velha). Classificação do segundo argumento Resultados Semântica Animado: 9% Inanimado: 91% Morfossintática Pronome: 13% Substantivo: 87% Pragmática Informação nova: 87% Informação velha: 13% Conforme se pode concluir com base nos dados acima, o objeto direto dos verbos de processo é predominantemente não animado, ou seja, seu referente é uma coisa. Ainda a respeito da animacidade do objeto é importante que se faça uma ressalva: o universo de objetos examinados é o mesmo para as classificações semântica, morfossintática e pragmática. Entretanto, não houve correlação entre estas classificações, uma vez que OD com traços de animacidade podem ser codificados tanto como substantivos quanto como pronomes, podendo ainda ser informação velha ou nova. Foi possível constatar, também, que a classificação pragmática e a classificação morfossintática dos OD estão diretamente relacionadas, uma vez que sempre que o objeto for codificado como pronome será informação velha e sempre que for expresso por como substantivo será informação nova. Isso acontece porque, quando se usa o pronome, se está retomando uma informação compartilhada pelos falantes, dada no contexto discursivo anterior, dessa maneira uma informação velha. Sendo assim, confirma-se que a informação nova é preferencialmente codificada por um substantivo. Considerações finais e Discussões Segundo Chafe (1979, p. 100), os verbos determinam a presença e a natureza dos nomes que o acompanham. Ainda de acordo com esse autor, os verbos de processo sempre causam uma mudança no estado do sujeito. Observe o exemplo citado por ele: What happened to Harriet? [que aconteceu com Harriet?] She died [Ela morreu]. Como se vê, o estado do sujeito mudou Harriet estava viva, e agora está morta. Considerando essa afirmação, os sujeitos que acompanham verbos de processo são receptores dos efeitos do processo designado pelo verbo, seja como paciente, experienciador ou beneficiário. Borba (1996) postula que os verbos de processo têm pelo menos um argumento, que é afetado pelo processo descrito pelo verbo. Ambas as

Leonardo Medeiros da Silva et al. / PublICa VII (2010) 01-08 7 proposições dos autores supracitados são confirmadas com os resultados das análises deste trabalho. É notável o baixo índice de verbos de processo nos enunciados do discurso falado espontâneo. Os achados deste trabalho podem servir de ponto de partida para outras investigações, uma vez que nos mostram grande contraste, em termos de frequência de ocorrência, entre os verbos de processo por um lado, e os de ação, açãoprocesso e estado, por outro. É interessante, também, cotejar tipos textuais e gêneros discursivos distintos, por exemplo, com relação ao uso dos verbos de processo. Pode-se, ainda, investigar as motivações cognitivas e comunicativas para a baixa ocorrência desses verbos. Outro ponto a ser abordado diz respeito à comparação entre os verbos de processo e os de estado, pois, observando Chafe (1979), notou-se que se pode fazer um estudo comparativo e descritivo, por exemplo, entre os aspectos afins e diferentes dos verbos de processo e dos verbos de estado, já que a moldura semântica de ambos prevê argumentos sujeito em condições semânticas semelhantes. Para tanto, se faz necessário o levantamento e a classificação de dados a respeito dos verbos de estado para que estes possam ser confrontados com os de processo. Esses aspectos deverão ser examinados em uma etapa posterior da pesquisa. Enquanto se classificava semanticamente o sujeito dos verbos de processo, foi possível notar que há relativa dificuldade em atribuir papéis temáticos a esses argumentos, pois em inúmeros casos é difícil dizer se o sujeito de uma oração é apenas paciente, beneficiário ou experienciador, como no dado 600 e o menino de onze anos parece... morreu... em que o sujeito do verbo morreu é classificado como um paciente, mas até que ponto esse sujeito também não experiencia a ação? Ou seja, como atribuir apenas uma classificação a esse sujeito? Outro problema é a atribuição do papel temático de beneficiário, uma vez que nem sempre a ação indicada pelo verbo aponta para um benefício, por haver casos em que essa ação aponta para um malefício. No nosso corpus não há um exemplo desse tipo, mas se pensarmos num enunciado como Ricardo herdou AIDS de seu pai, vemos que esse sujeito não é beneficiado pela ação do verbo. Desse modo, a existência de uma classificação que indique que o sujeito foi beneficiado acaba exigindo uma classificação para quando a situação for inversa, assim como a do exemplo. Logo, teríamos um sujeito maleficiário. No entanto, até que ponto é produtivo se criar tantas classificações? Em breve teríamos, praticamente, uma classificação para cada papel temático que o sujeito assumisse com relação ao verbo, o que não seria uma contribuição útil para o ensino de língua materna.

Leonardo Medeiros da Silva et al. / PublICa VII (2010) 01-08 8 É relevante ressaltar que o corpus de análise representa um material linguístico inteiramente espontâneo e oriundo de situações reais de fala. Isso propicia uma descrição do uso efetivo da língua mais coerente com a realidade e, consequentemente, os resultados da pesquisa podem gerar subsídios importantes para o ensino dessa classe gramatical nos níveis fundamental e médio. Referências: BORBA, F. S. Dicionário de usos do português do Brasil. São Paulo: Ática, 2002., F. S. Uma gramática de valências do português. São Paulo: Ática, 1996. CHAFE, W. Significado e estrutura lingüística. Rio de Janeiro. Ao Livro Técnico, 1979. FURTADO DA CUNHA, M. A. (org). Banco Conversacional de Natal. Natal: EDUFRN, 2011. FURTADO DA CUNHA, M. A. Funcionalismo. In: MARTELOTTA, M. E. (org). Manual de Linguística. São Paulo: Contexto, 2008. ; OLIVEIRA, M. R.; MARTELOTTA, M. E. (orgs). Lingüística funcional: teoria e prática. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. MARTELOTTA, M. E. Linguística Congnitiva. In. MARTELOTTA, M. E. (org). Manual de Linguística. São Paulo: Contexto, 2008. HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 1 Neste trabalho não serão observadas as características sociais dos falantes, como idade, escolaridade, sexo, etc. 2 Inicialmente, a pesquisa tinha como objeto de análise os verbos de processo transitivos. No entanto, a baixa frequência de tais verbos no corpus fez com que o foco da pesquisa se expandisse, abrangendo também os verbos de processo intransitivos. 3 Dado da conversa nº 6. 4 Dado da conversa nº 3. 5 Dado da conversa nº 3. Leonardo Medeiros da Silva Endereço eletrônico: leo.ling.ufrn@hotmail.com Grupo de pesquisa: Discurso & Gramática Endereço postal Departamento de Letras, Centro de Ciências Humanas Letras e Artes, Campus Universitário, Natal/RN, 59078-970, Brasil