Estudo das características fonético-acústicas de consoantes em coda silábica: um estudo de caso em E/LE Fernanda R. P. Allegro (Universidad de Buenos Aires/ FUNCEB) Sandra Madureira (PUC-SP) Introdução O presente estudo, de natureza experimental, está inserido no contexto da aquisição de sons em língua estrangeira (LE). Os estudos sobre a aquisição de sons em LE são importantes porque lançam luz sobre a influência de padrões de produção e percepção adquiridos previamente, podem fornecer subsídios para as estratégias de ensino da pronúncia em LE, além de possibilitar uma reflexão teórica sobre a relevância e a pertinência das pistas fonético-acústicas. O objetivo deste trabalho é analisar as características da pronúncia de sons em coda silábica no interior de palavras e entre palavras em espanhol, contrastando as produções de um falante nativo do espanhol, variedade rio-platense, e de um falante nativo do português brasileiro, aprendiz de Espanhol como LE (E/LE). Esse contexto é de interesse para analisar os processos de interferência da Língua Materna (LM), visto que neles costumam ocorrer processos de neutralização de contrastes entre consoantes, e as realizações fonéticas dessas consoantes são específicas de cada língua. Tanto no português quanto no espanhol, em posição de coda silábica, ocorre a neutralização de contrastes fonéticos. O espanhol se diferencia do português por apresentar consoantes, oclusiva e nasal, articuladas em posição de coda silábica. No português, não há ocorrências de consoantes oclusivas na posição de coda 2635
silábica e no lugar de vogais orais seguidas de consoante nasal ocorrem vogais nasalizadas que apresentam três fases: uma parte oral, seguida de porção nasalizada e de consoante de travamento (coda nasal). A figura 1 ilustra essas fases das vogais nasalizadas do português e a figura 2 apresenta a vogal oral seguida da consoante nasal na produção da palavra quinta em espanhol. Figura 1. Forma de onda e espectrograma de banda larga de uma produção da palavra quintal por um falante nativo do português brasileiro. As três fases (oral, nasalizada e coda nasal) da vogal tônica estão sinalizadas por linhas. Figura 2. Forma da onda, espectrograma de banda larga e camada com transcrição ortográfica de produção da palavra quinta por uma falante nativa do espanhol rio-platense. A vogal tônica da palavra é seguida de uma consoante nasal. 2636
A lateral alveolar e a lateral velar são realizadas em posição de coda silábica no espanhol, enquanto no português brasileiro a semivogal labiovelar é mais produtiva, ocorrendo na maior parte do território brasileiro, e a lateral velarizada é encontrada na fala de habitantes da região Sul do Brasil. Em ambos idiomas, as fricativas tendem a assimilar o vozeamento da consoante que as seguem e as nasais tendem a assimilar o ponto de articulação do som consonantal que as seguem. Em relação à produção da consoante nasal em coda silábica pelo falante de E/LE, interessa investigar se ele produz a vogal oral seguida da consoante nasal ou se produz uma vogal nasalizada. Em relação à ocorrência de consoante oclusiva em coda silábica no espanhol, pelo fato de tal ocorrência não se verificar no português brasileiro, três estratégias são hipotetizadas: o falante de E/LE não produz a consoante oclusiva nessa posição; produz consoantes oclusivas bilabiais e velares ou africadas dento-alveolares seguidas de vogal anterior alta ou a implementa de alguma maneira. Em relação aos outros casos, são investigadas questões sobre o grau de sonorização, ensurdecimento, distribuição e caracterização dos alofones que ocorrem no contexto de coda silábica como resultado de mecanismos de transferência de sons da LM. O sotaque na língua estrangeira reflete diretamente as influências dos padrões fonéticos das línguas materna e estrangeira (LAVER, 1994). Entende-se por sotaque, uma maneira de pronunciar (LAVER, 1994). O sotaque estrangeiro acontece quando a pronúncia dos sons não corresponde ou corresponde parcialmente aos padrões acústicos da língua em questão. Cabe mencionar que outros aspectos influem no sotaque estrangeiro, tais como: a idade com que começou a falar a LE, a quantidade e o tipo de exposição à LE, as características individuais de personalidade e de aprendizagem e o conhecimento explícito sobre o tema. 2637
Na aquisição dos sons da LE, os estudantes devem criam metas perceptuais que sirvam como guia na produção da LE. Caso não as criem, ocorrerão falhas na produção. Isso se deve, segundo Flege (1987, 1988) ao fato de que a percepção dos sons da LE não provém das equivalências dos inventários fonêmicos, mas das propriedades das realizações fonéticas dos sons da fala em contextos específicos. A percepção é desenvolvida a partir do sistema auditivo e é condicionada por duas importantes propriedades: a percepção categórica e a percepção contínua, as quais, embora direcionadas primeiramente para a língua materna, permanecem disponíveis ao longo da vida do indivíduo (WODE, 1995). 1. Material e método Os dados de produção de fala, analisados neste trabalho, são de um estudante de espanhol do nível intermediário, falante nativo do Português Brasileiro (PB), natural da cidade de São Paulo. Esses dados foram comparados com os de um falante nativo do Espanhol Rio-platense. Foram gravadas as produções dos dois falantes em dois estilos de fala: leitura de uma narrativa escrita a partir de uma seqüência de quatro quadros e narrativa oral a partir da mesma seqüência de quadros. A leitura da narrativa escrita precedeu a elaboração da narrativa oral. Foram, também, gravadas palavras inseridas na frase-veículo Diga [...] bajito. As frases, bem como as narrativas escritas e orais foram repetidas três vezes por cada falante. Todos os arquivos de som foram gravados num ambiente acústico tratado, digitalizados na freqüência de 22 khz e analisados por intermédio do Praat, software desenvolvido pelos pesquisadores Paul Boersma e David Weenink da Universidade de Amsterdã. A inspeção dos dados gravados foi feita a partir de 2638
espectrogramas de banda larga, meio que permitiu a comparação das produções dos dois falantes. A unidade básica da análise acústica é a onda sonora. O meio acústico é integrador entre a produção e a percepção. A partir dele é possível inferir modos de produção e fazer correlações com a percepção. Os instrumentos de análise acústica tornam possível a visualização do sinal acústico, a identificação das características fonético-acústicas, a segmentação das unidades lingüísticas e a realização de medidas dos parâmetros acústicos (duração, freqüência e intensidade) nesse sinal e a elaboração de gráficos com base nos valores medidos. A figura 1 apresenta a segmentação dos elementos fônicos da palavra correr produzida por um falante nativo do Espanhol Rio-platense. Medidas de duração em ms, freqüência fundamental em Hz e intensidade em db foram anotadas respectivamente nas camadas superior, intermediária e inferior. Figura 3. Forma da onda, espectrograma de banda larga com superposição do traçado de freqüência fundamental e camadas com anotações da transcrição ortográfica e das medidas dos parâmetros acústicos de duração, freqüência fundamental e Intensidade. 2. Análise dos resultados 2639
A inspeção espectrográfica dos dados permitiu contrastar as características fonético-acústicas das produções de consoantes em posição de coda silábica. As consoantes seguidas de vogais sofreram processo de ressilabificação nas produções de ambos falantes. Os resultados indicam que, em relação à produção das consoantes oclusivas e laterais alveolares em posição final de palavra antes de pausa a falante de E/LE realizou estratégias para atingir as metas de produção da LE. Em todas as repetições, a oclusiva não foi seguida da vogal anterior alta e a consoante lateral alveolar foi mais freqüentemente produzida como uma consoante lateral velarizada. Sendo paulistana, era de se esperar que a falante de E/LE empregasse a vogal epentética e a variante labiovelar. Na figura 4 são contrastadas as produções da palavra edad da argentina e da brasileira. Na produção da argentina, a consoante é articulada e na produção da brasileira, constata-se, na porção final da emissão, uma modificação nas características espectrais e manutenção do vozeamento. Figura 4. Formas da onda e espectrogramas de banda larga de produções da palavra edad da argentina (à esquerda) e da brasileira (à direita). No caso das realizações das oclusivas em coda silábica não houve interferência da LM, mas essas realizações diferiram dos padrões da LE. 2640
As consoantes fricativas surdas seguidas de sons sonoros foram realizadas, pela falante de E/LE, com vozeamento. Esse processo de assimilação de vozeamento, produtivo na língua portuguesa, foi transferido para a LE. Nesse contexto de fricativas, a falante nativa do espanhol não produziu vozeamento durante parte ou totalidade do intervalo referente à obstrução parcial dos articuladores (no espectrograma de banda larga foi constatada presença de barra de sonoridade interrompida ou ausente). A figura 5 apresenta as produções de tres hermanos da argentina (à esquerda) e da brasileira (à direita). Figura 5. Forma da onda e espectrograma de banda larga das produções de tres hermanos da argentina (à esquerda) e da brasileira (à direita) com, respectivamente, realizações não vozeada e vozeada da consoante final de tres. Nas produções da falante de E/LE ocorreram vogais nasalizadas e nas da falante nativa do espanhol ocorreram vogais orais seguidas de consoante nasal. O emprego de vogais nasalizadas nas produções de E/LE, indicam que não houve a utilização de estratégias para atingir as metas de produção da LE, ou que essas metas não foram identificadas. Ambos falantes empregaram tepe em posição de coda silábica em final de palavra, mas a vibrante só ocorreu na produção da falante nativa do espanhol. 2641
Os dados analisados indicam que a presença de vozeamento e de nasalização foram as características que mais diferenciaram as produções das duas falantes, contribuindo para a caracterização do sotaque estrangeiro. Referências FLEGE, James Emil. The production of new and similar phones in a foreign language: evidence for the effect of equivalence classification. Journal of Phonetics, n. 15, p. 47-65, 1987.. Human communication and its disorders. In: WINITZ, H. (Ed.). The production and perception of speech sounds in a foreign language. Norwood: Ablex, 1988. p. 224-401. LAVER, J. Principles of phonetics. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. WODE, Henning. Speech perception and linguistic experience: theoretical issues in cross-language speech research. STRANGE, W. (Ed.). Speech perception, language acquisition and linguistic: some mutual implications. Timonium: York Press, 1995. 2642