A violência contra os acampamentos Guarani e Kaiowá no sul de Mato Grosso do Sul

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Uma publicação do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária NERA. Presidente Prudente, janeiro de 2012, número 49. ISSN 2177-4463. www.fct.unesp.br/nera ARTIGO DATALUTA A violência contra os acampamentos Guarani e Kaiowá no sul de Mato Grosso do Sul ARTIGO DO MÊS De quién es el aire?: Conflictos por el uso y apropiación del espacio en el oeste pampeano EVENTOS XX Encontro Nacional dos Estudantes de Geografia - ENEG Belém Pará, 29 de janeiro a 4 de fevereiro de 2012 XVII Encontro Nacional de Geógrafos - ENG Belo Horizonte Minas Gerais, 23 a 28 de julho de 2012 XXI Encontro Nacional de Geografia Agrária - ENGA Uberlândia Minas Gerais, 15 a 19 de outubro de 2012 PUBLICAÇÃO Práticas, Desafios e Proposições para uma educação do campo no município de Goiás. Orgs: Auristela Afonso da Costa, Elisabeth Maria de Fátima Borges, Francilane Eulália de Souza, Thiago Fernando Sant Anna. Este livro é o resultado dos debates e reflexões que aconteceram no Encontro de Educação para o Campesinato, ocorrido em agosto de 2010, no município de Goiás, na Unidade Universitária Cora Coralina da Universidade Estadual de Goiás. Dentre as temáticas, destacam-se as realizadas nas mesas redondas e na conferência que abordou Educação do campo e desenvolvimento territorial rural. Ainda, este livro como resultado de um encontro, conta com a contribuição de reflexões e debates, que compuseram o espaço titulado de Grupo de Trabalho, Mini-cursos e uma entrevista cedida pelo professor e pesquisador Bernardo Fernandes Mançano. APOIO Elaborado por Danilo Valentin Pereira (bolsista Ciência na Unesp) e Marina Fortunato Bueno da Silveira (bolsista Ciência na Unesp). Pesquisadores do NERA Coordenação: Carlos Alberto Feliciano; Revisão: Rubens dos S. R. Souza (bolsista FAPESP) e Francilane Eulália de Souza Leia outros números do BOLETIM DATALUTA em www.fct.unesp.br/nera 1

A VIOLÊNCIA CONTRA OS ACAMPAMENTOS GUARANI E KAIOWÁ NO SUL DE MATO GROSSO DO SUL 1 Aline Castilho Crespe Lutti Professora de antropologia na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul e doutoranda em História pela Universidade Federal da Grande Dourados. Pesquisadora associada ao projeto Jovem pesquisador FAPESP As formas de acampamento e membro do grupo de pesquisa MOVE (Movimentos, ocupações e Estado) do Centro de Estudos Rurais da Unicamp. alinecrespe@hotmail.com.br Nashieli Rangel Loera Professora pesquisadora do Centro de Estudos Rurais/IFCH/Unicamp. Coordenadora do projeto Jovem pesquisador FAPESP As formas de acampamento e do grupo de pesquisa MOVE. nashieliralo@gmail.com Em junho de 2011 um grupo de pesquisadores, dentre eles alunos de graduação em Ciências Sociais da Unicamp, e duas pesquisadoras, uma da Unicamp e uma da UEMS, iniciou um trabalho em conjunto, de cunho etnográfico, em acampamentos Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Durante a nossa primeira visita aos acampamentos na região de Dourados, realizamos o trajeto de carro desde Campinas e fomos surpreendidos por uma paisagem monótona, composta, principalmente por plantios de cana-de-açúcar e de soja ocupando extensões de terra de quilômetros e quilômetros de estrada. Por vezes, na paisagem, viam-se pequenos vilarejos que se intercalavam com acampamentos de lona preta. Acampamentos, muitos deles, organizados por indígenas. Na ocasião da nossa primeira visita em Dourados estivemos em dois acampamentos localizados a poucos quilômetros da cidade e tivemos a oportunidade de conversar com suas lideranças e perceber a situação de risco, precariedade e abandono na qual vivem, assim como as ameaças as quais estão expostos. Um dos acampamentos, por exemplo, há um ano havia sido invadido por pessoas alheias ao grupo familiar acampado e muitos dos barracos haviam sido queimados propositalmente. Duas semanas após nossa visita, o filho de uma das lideranças deste mesmo acampamento foi morto na estrada enquanto esperava a sua filha que voltava da escola no transporte escolar. Ele foi supostamente atropelado por um ônibus dos Rurais, daqueles que transportam trabalhadores das fazendas que sequer parou para auxiliar a vitima. Esse é somente um caso de dezenas de mortes que acontecem com frequência naquela região. No Mato Grosso do Sul há uma verdadeira guerra contra os povos indígenas, principalmente contra as comunidades Guarani e Kaiowá que vivem no sul do estado. Muitas delas têm sofrido vários tipos de violência e quase sempre perpetuada por pessoas ligadas ao movimento ruralista, do qual fazem parte fazendeiros, setores da imprensa, parlamentares, governantes etc. Esta situação atesta a existência de um fenômeno chamado de agrobanditismo, conforme recentemente apontou a geógrafa Márcia Yukari 1 Os dados apresentados fazem parte dos resultados preliminares da tese de doutorado de Aline Crespe Lutti e do trabalho de campo da pesquisa realizada pela equipe de pesquisa do grupo MOVE que faz parte do projeto Jovem pesquisador As formas de acampamento financiado pela FAPESP (período 2010-2012, n. de processo 2010-02331-6). Disponível em www.fct.unesp.br/nera 2

Mizusaki no artigo O agrobanditismo e as disputas territoriais em Mato Grosso do Sul 2. Paradoxalmente, o governo do estado e a população regional parecem não se abalar com a situação de violência a que têm sido submetidas várias comunidades indígenas. A última morte violenta contra indígenas acampados aconteceu no dia 18 de novembro de 2011 quando o indígena Nísio Gomes, liderança Kaiowá do acampamento Guayviri, localizado em Amambaí, na fronteira com o Paraguai, foi assassinato em frente a seus familiares. Segundo informações veiculadas na Internet e recebidas de parentes e amigos de pessoas que estavam no lugar, o acampamento foi invadido por dezenas de homens encapuzados e armados, a liderança foi morta e seu corpo foi levado em uma camionete para o país vizinho. Como as investigações correm em sigilo na Polícia Federal, até o momento não há informações precisas sobre o ocorrido, tampouco sobre o corpo da vítima. Este caso foi divulgado na grande mídia e tem tido repercussão nacional e internacionalmente. Isso tem ocorrido graças aos esforços dos próprios índios e de movimentos sociais, ONGs, estudantes e professores que se articulam a partir de redes sociais e virtuais e promoveram ampla divulgação do caso. No entanto, a depender de certos setores da imprensa regional, sustentados pelos cofres públicos e pelo dinheiro dos ruralistas, este fato não teria qualquer divulgação. Em Amambaí, município onde ocorreu a tentativa de massacre, um jornal de circulação na Internet, chamado A Gazeta News, sequer noticiou a violência no dia do ocorrido. Fez isso apenas depois da repercussão que o caso teve fora do estado. Em Dourados, segunda maior cidade do estado, o jornal Dourados News colocou como manchete do dia a prisão de um índio acusado de tráfico de drogas próximo ao município de Amambaí e, mais tarde, no mesmo dia, em letras pequenas e no fim da página, noticiou a violência ocorrida contra aquele acampamento indígena. O caso de Nísio não é o primeiro e infelizmente não será o último a envolver violência contra comunidades indígenas em Mato Grosso do Sul. Em 2011, o CIMI (Conselho Indigenista Missionário) publicou o relatório As violências contra os povos indígenas no Mato Grosso do Sul 3, no qual apresenta os índices sobre a violência entre os anos de 2003 e 2010. Segundo os dados apresentados pela antropóloga Lucia Helk Rangel, o número de assassinatos de indígenas ocorridos no estado em apenas oito anos é superior aos assassinatos de indígenas ocorridos em todo o restante do território nacional. Nesse período, os crimes contra índios ocorridos em Mato Grosso do Sul somam 55,5% da média nacional. Em oito anos, 250 índios foram assassinatos no estado enquanto no restante do país 202 índios morreram dessa forma. Além dos assassinatos, as mortes por suicídio e atropelamento em estradas são muito maiores que a média nacional. Não é possível resolver esta situação sem atentar à raiz desses conflitos e resolver a situação fundiária das terras indígenas no estado, tema que ainda é extremamente complicado face à inércia do Estado Brasileiro. Neste sentido, segundo dados do mesmo relatório, são 73 áreas indígenas sem providências. Desse total, 70 são áreas reivindicadas por comunidades Guarani e Kaiowá, das quais foram expulsas décadas atrás. O relatório não deixa claro em que situação do processo administrativo cada uma 2 Disponível em http://www.diarioliberdade.org/index.php?option=com_content&view=article&id=22329:oagrobanditismo-e-as-disputas-territoriais-em-mato-grosso-do-sul&catid=63:repressom-e-direitos-humanos&itemid=78. Acesso em 18/12/2011. 3 Disponível em http://www.cimi.org.br/pub/ms/viol_ms_2003_2010.pdf. Disponível em www.fct.unesp.br/nera 3

destas áreas está, mas evidencia a complicada situação fundiária vivida pelos índios de Mato Grosso do Sul. O antropólogo Levi Marques Pereira, no artigo Módulos de assentamento Kaiowá atuais, publicado na revista Tellus em 2006, apresenta dados sobre as modalidades de assentamentos Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Dialogando com o autor é possível delinear um quadro sobre as atuais formas de assentamentos Guarani e Kaiowá no estado, a saber: a) as reservas indígenas criadas no período de 1915 e 1928, momento em que foram demarcadas as oito reservas indígenas na região; b) as terras indígenas demarcadas a partir de 1980, resultado da mobilização dos grupos Guarani e Kaiowá que reivindicavam a definição de novas áreas; c) os acampamentos em margens de rodovias mobilizados para retomada de terras reconhecidas pelos indígenas como áreas de ocupação tradicional; d) os acampamentos em margens de rodovias não mobilizados para retomada de terras; e) os acampamentos dentro das áreas de fazenda. Por outro lado, existem muitas famílias que moram em áreas urbanas, dentro de fazendas e mesmo em acampamentos urbanos. Em Dourados havia um acampamento urbano com famílias indígenas e não indígenas, as quais foram recentemente remanejadas para um conjunto habitacional construído pela prefeitura municipal. No que se refere aos acampamentos de lona preta organizados por indígenas, podemos pensá-los como resposta ao processo de territorialização 4 nas reservas indígenas, iniciado em 1915. Para acelerar as atividades econômicas que começam com a exploração da erva-mate no final do século XIX e segue no século XX com a chegada de colonos vindos de várias regiões do Brasil, são fundadas as primeiras reservas indígenas na região. Hoje, estas reservas, prestes a completar um centenário, se encontram superlotadas, com escassez de recursos ambientais, falta de espaço para plantar, conflitos políticos internos devido ao desrespeito das formas de organização social próprias destes grupos no momento de criação da reserva 5, além dos altos índices de violência, assassinatos e suicídios. Essa situação esta associada também à densidade populacional das reservas. A Reserva Indígena de Dourados, localizada dentro da cidade de Dourados, tem menos de 3.600 hectares e uma população de 15.000 pessoas, sobretudo índios das etnias Kaiowá, Guarani e Terena. Neste contexto, os acampamentos são uma resposta relativamente recente ao esbulho sofrido por comunidades indígenas e ao processo de territorialização nas reservas. A partir dos dados levantados em campo e em documentos consultados no Ministério Público Federal em Dourados, estima-se que eles começaram a surgir no estado a partir da década de 1980. Temos investigado como vários fatores interligados estão na base da formação dos acampamentos. O primeiro deles está associado à promulgação da Constituição Federal de 1988 e têm a ver com o fortalecimento de vários movimentos sociais, entre eles os movimentos indígenas voltados para a retomada de territórios tradicionais. É na década de 1980 que começam a ser reconhecidos novos territórios Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul. A partir dessas novas áreas é que grupos macro-familiares que tinham sido transferidos para reserva, ou que ainda viviam em fazendas nas regiões, começam a reivindicar as áreas que reconhecem como 4 O conceito de processo de territorialização utilizado foi proposto por João Pacheco de Oliveira, no artigo intitulado Uma etnologia dos índios misturados? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais, publicado pela revista Mana, em 1998. 5 Nas reservas foram sobrepostos grupos macro-familiares que outrora funcionavam como grupos político e economicamente autônomos, os quais a partir de então se viram diante de uma nova configuração política liderada pelo capitão, a liderança indígena apoiada pelo órgão indigenista oficial. Disponível em www.fct.unesp.br/nera 4

sendo de ocupação tradicional. Por outro lado, este é um momento também de proliferação dos acampamentos sem-terra no estado. Tivemos conhecimento de que na década de 1980 ocorreram reuniões com lideranças indígenas e lideranças do movimento sem terra, mas ainda não temos dados suficientes para mensurar sobre a sociogênese dos acampamentos indígenas e em que medida o surgimento dos acampamentos sem terras influenciaram seu aparecimento na região. Apesar dos acampamentos começarem a surgir naquela época, eles não tiveram muita visibilidade até o ano de 2006. Neste ano, dois professores e pesquisadores da Universidade Federal da Grande Dourados, Levi Marques Pereira e Jorge Eremites de Oliveira, após tomarem conhecimento de um acampamento próximo ao município de Guia Lopes da Laguna, escrevem um relatório notificando o caso para o Ministério Público Federal de Dourados. Hoje são uma média de 35 acampamentos indígenas no estado. Lideranças dos acampamentos têm se organizado politicamente com um movimento paralelo ao movimento indígena já existente em Mato Grosso do Sul. Entre os dias 12 e 14 de novembro de 2011, tivemos oportunidade de participar do primeiro encontro de acampamentos indígenas realizado no acampamento Itay, no município de Douradina, com lideranças das etnias Guarani, Kaiowa e Terena. No encontro, além das lideranças se reuniram professores, advogados, um vereador e um antropólogo, todos indígenas. Junto com professores e advogados não índios foram realizadas oficinas esclarecendo principalmente sobre o processo de regularização fundiária de uma terra indígena. Além das oficinas, o encontro serviu também para os índios falarem sobre as pressões e violências sofridos pelos fazendeiros, deixando evidente o sentimento de insegurança que marca a vida nos acampamentos. No final do encontro, antes de partirem para outro acampamento chamado Laranjeira Ñanderu, no município de Rio Brilhante, onde foi realizado um encontro de rezadores, os índios redigiram uma carta. Trata-se de um documento publicado na página do CIMI no dia 16 de novembro de 2011, dois dias antes do atentado ao acampamento Guayviri em Amambaí. Um trecho da carta diz o seguinte: Realizamos este evento com nossos corações cheios de angústia, porque, ao mesmo tempo em que aqui estamos discutindo nossa situação, recebemos a notícia de que nossos irmãos Kaiowa do acampamento de Guaiviry retornaram novamente, há alguns dias, ao seu tekohá e encontram-se, neste momento, cercados por jagunços a serviço dos fazendeiros. Além da ameaça de ataques violentos, agora sofrem com a fome, em função do covarde cerco a que são submetidos. Tememos pela vida e integridade física de nossos parentes. Advertimos que qualquer agressão que acontecer será de responsabilidade das autoridades brasileiras. Infelizmente, o que os índios temiam aconteceu, como também aconteceu com os professores Rolindo Vera e Genivaldo Vera, assassinados no acampamento Y poi, em Paranhos, no mês de agosto de 2009. Foi o que também aconteceu com Marcos Verón em janeiro de 2003, em Takuara, município de Juti, e agora, recentemente, com Rosalino Lopes do acampamento de Pueblito Kue, no município de Amambaí. Rosalino morreu dois anos depois de ser atingido por tiros no momento em que eram despejados por jagunços do fazendeiro, em dezembro de 2009. O antropólogo Kaiowá Tonico Benites declarou que antes de morrer Rosalino falou as seguintes palavras: Estou morrendo por causa de tekoha terra em que nasci...queria muito retornar viver em Pyelito kue com minha família... tentei retornar, mas fui judiado e morri por Pyelito kue-mabrakay. Disponível em www.fct.unesp.br/nera 5

É justamente este desejo de voltar a seus territórios tradicionais, chamados de Tekoha que move a formação dos acampamentos e os fazem resistir à violência perpetrada contra eles. O termo Tekoha, para os Kaiowá e Guarani, tem uma conotação de lugar, mas não apenas lugar físico, um lugar onde podem manter e reproduzir uma determinada forma de vida e de relação com a parentela próxima, mas está relacionado também com uma idéia do bom viver, ou o modo tradicional de ser Guarani, o que eles chamam de ñanke reko. Assim, o termo Tekoha vem de Teko (sistema, modo de estar, lei, hábito, costume). Além da violência, as pessoas que vivem nos barracos de lona nos acampamentos em margem de rodovia enfrentaram situações de vida muito precárias. Os acampamentos não são reconhecidos como terra indígena por parte do Estado Brasileiro, o que implica em certa demora no atendimento prestado por parte de órgãos como FUNAI e FUNASA. Soma-se a isso a dificuldade de conseguir trabalho, a falta de espaço para plantar, as péssimas condições sanitárias e a dificuldade de acesso a água. Os acampamentos dentro de propriedades rurais esperam pela continuidade do processo administrativo e jurídico para a regularização fundiária das terras indígenas ali existentes. Com permissão judicial para permanecerem em parte da área reivindicada até a conclusão do processo administrativo e jurídico, os índios encontram melhores condições econômicas e sanitárias, mas a situação de conflito tende a se intensificar. Intimidações, assassinatos, atropelamentos e criminalização dos índios envolvidos na luta pela retomada dos territórios tradicionais são as armas utilizadas pelos ruralistas para que os indígenas desistam dos territórios reivindicados. Mas o que podemos perceber com a persistência deles em permanecer nos sítios de ocupação tradicional, e com os depoimentos dos índios, é que eles têm com a terra uma relação umbilical, tal como colocou o antropólogo Fábio Mura em sua tese de doutorado À procura do bom viver : território, tradição de conhecimento e ecologia doméstica entre os Kaiowá, de 2006. Por conta da situação vivida nas reservas, onde os índios não encontram condições adequadas para se reproduzirem física e culturalmente, eles se lembram de voltar, tal como disse a liderança do acampamento Pacurity, em Dourados. Depois de ser expulso de seu território, andar pela casa dos parentes, passar pela situação da reserva nós lembremos de voltar para o tekohá. O acampamento é a viagem da volta como nos versos de Torquado Neto: desde que saí de casa, trouxe a viajem da volta gravada na minha mão, enterrada no umbigo, dentro e fora assim comigo, na minha própria condução 6, os quais João Pacheco de Oliveira utiliza para explicar o processo de etnogênese dos índios do Nordeste e que também são adequados para pensarmos em relação aos acampamentos. Não estamos falando de um movimento de etnogênese, mas também de um movimento de saída, de viagem e de retorno à origem. Se os Guarani e Kaiowá estão emocionalmente ligados aos sítios de ocupação tradicional, os acampamentos passam a ser a linguagem utilizada por estes grupos para reivindicar seus territórios junto ao Estado Brasileiro. Por isso, torna-se cada vez mais urgente que os processos de reconhecimento das terras indígenas sejam acelerados para amenizarmos os conflitos étnicos que estamos a viver. 6 PACHECO DE OLIVEIRA, João. A viagem da volta. Rio de Janeiro: Contracapa, 2006, p. 32. Disponível em www.fct.unesp.br/nera 6