De todo modo, é necessário reconhecer que gradativamente alguns desses temas já começam a ser estudados em via mais comprometida.

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PARECER N.º, DE 2009

Transcrição:

1 O Erro no Direito Penal Econômico Breves anotações para a palestra a proferir no Primeiro Encontro Preparatório para o III Seminário de Direito Penal Econômico 04/09/2012 - Unicuritiba Caros colegas que compõem esta mesa e demais presentes: boa noite. Antes de iniciarmos as reflexões e debates desta noite, uma palavra especial de cumprimento e agradecimento se impõe. Ao cumprimentar o presidente desta mesa, Professor Alexandre Knopfholz, registro minhas sinceras congratulações ao Professor Luiz Antonio Câmara, organizador deste Seminário que superou todas as expectativas e objetivos e merece os aplausos de todos nós, pois constituiu um ímpar evento preparatório aos profícuos estudos que certamente serão envidados no III Seminário de Direito Penal Econômico. Cumprimento também os demais membros da mesa, Professor Alaor Leite e Professor Flávio Antonio da Cruz, com os quais divido hoje a gentil tarefa de apresentar alguns pontos críticos e ensejar algumas discussões à luz deste painel, que contempla o erro nos crimes econômicos. Como se sabe, o campo de reflexões no Direito Penal Econômico é bastante extenso, apresentando uma série de pontos que ainda hoje carecem de maior debate, estudo e aprofundamento. São inúmeros os temas referentes a essa desinência do Direito Penal que já não podem mais ficar apartados da fração majoritária da doutrina nacional e, sobretudo, do conhecimento dos operadores do Direito, que cotidianamente trafegam nas também inúmeras carreiras jurídicas. De todo modo, é necessário reconhecer que gradativamente alguns desses temas já começam a ser estudados em via mais comprometida.

2 Por exemplo, é possível perceber que há na doutrina uma espécie de consenso e harmonia que apontam para o reconhecimento de que o Direito Penal Econômico ou Direito Penal Socioeconômico, como preferem alguns - possui algumas determinadas particularidades que ensejam a sua individualização, permitindo verificar e identificar a sua diferenciação em contraste com outras desinências enquadradas naquilo que usualmente se chamou de Direito Penal Primário ou Direito Penal Nuclear. Importa registrar, inclusive, que em determinado momento chegou-se a cogitar que o Direito Penal Econômico possuiria uma autonomia de caráter notoriamente científico em face do Direito Penal Primário, como apontou Klaus Tiedemann. 1 Ainda que a legislação brasileira não confirme ou mesmo reconheça a existência dessa autonomia, não há impedimento em buscar um tratamento ou contemplação que observe essas peculiaridades inerentes ao Direito Penal Econômico. É de consenso geral que essas peculiaridades avultamse com maior densidade quando se tratam sobre temas como o dolo e o erro, campos de análise e estudo que bem expõem a distinta ossatura que sustenta, por assim dizer, o Direito Penal Econômico. Porém, para que se chegue nesses dois campos, nesses dois pontos distintos de reflexão, é preciso trilhar um caminho que é também flanqueado por especificidades: trata-se do conceito e compreensão dos bens jurídicos relativos aos delitos socioeconômicos. Como se sabe, as raízes que sustentaram as primeiras noções sobre bem jurídico são identificadas no pensamento filosófico estruturado a partir do século XVII com o objetivo, em síntese, de pautar o bem jurídico como fundamento para o poder punitivo do Estado. 1 Eis as palavras de Tiedemann: Con cierta independencia de esta situación legal, el Derecho penal económico ofrece unas particularidades que se refieren a cuestiones de la Parte general ya sea desde el punto de vista de la técnica legislativa ya sea como consecuencia de que el Derecho penal económico abarca nuevos fenómenos sócioeconómicos y llega por ello a soluciones novedosas en cuanto a su contenido. TIEDEMANN, Klaus. Lecciones de Derecho Penal Económico. Barcelona: PPU, 1993. p. 157.

3 Assim, extrai-se a certeza de que a questão do bem jurídico está simetricamente atrelada à compreensão conceitual de crime, em sentido material, buscando-se indicar, portanto, a pedra angular que projeta a legitimidade do Estado em considerar determinados comportamentos do homem como crime e estabelecer as suas respectivas sanções, ao mesmo passo em que se busca firmar o caráter funcional e os limites do Direito Penal. A doutrina durante muitos anos debateu as questões e os pontos de reflexão correlatos à noção de bem jurídico, e não há como ignorar que, sob os mais diversos vieses, este é ainda um tema que agrega uma série de discussões. Certa e infelizmente, aqui não se tem o espaço e tempo necessários para cotejar os mais importantes aspectos doutrinários sobre o bem jurídico no Direito Penal traçados ao longo do tempo; todavia, é necessário projetar alguns breves apontamentos para que a questão do erro nos crimes econômicos seja melhor definida. Pois bem. Registra-se primeiramente que durante o chamado positivismo legalista 2 concebeu-se como crime tudo aquilo que lei definisse como tal. Como se pode imaginar, essa premissa foi logo esgotada, abrindo espaço para outras perspectivas. Exemplo claro se verifica no campo da sociologia: primeiramente, Rafael Garofalo definiu crime como ações violadoras de sentimentos altruístas 3 ; por conseguinte, Durkheim assinalou que a característica natural do crime seria a sua reprovabilidade pela sociedade 4 ; adiante, Von Liszt pontuou que a conduta criminosa representaria uma agressão a interesses 2 Segundo Lyra Filho, o positivismo legalista volta-se para a Lei e, mesmo quando incorpora outro tipo de norma como, por exemplo, o costume, dá à Lei total superioridade, tudo ficando subordinado ao que ela determina e jamais sendo permitido de novo, a título de exemplo invocar um costume contra a lei. LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1999. p. 36. 3 Vide: GAROFALO, Rafael. Criminologia. Trad. Júlio Matos. São Paulo: Teixeira e Irmãos, 1983 4 Vide: DURKHEIM, Emile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

4 juridicamente tutelados, com especial atenção à periculosidade social identificada na personalidade do agressor. 5 Na sequência, com a passagem do Estado de Direito em sentido formal ao Estado de Direito em sentido material 6, surgiu a noção de que o crime consistiria em uma violação de deveres ético-sociais elementares ou fundamentais, perspectiva essa cujos expoentes se verificam nas lições de Hans Welzel e Hans-Heinrich Jeschek. Destaca-se que os traços marcados por essas diversas correntes acabaram por ensejar a ideia de que a função do Direito Penal, ligada ao conceito material de crime, seria a tutela subsidiária de bens jurídicos dotados de dignidade penal. Buscou-se, então, não mais na sociologia, mas no próprio sistema jurídico, uma definição material. Nesse novo campo de ideias vale registrar o entendimento partilhado por diversos doutrinadores, dentre eles Claus Roxin 7, de que os bens jurídicos dignos de tutela penal se concretizam por meio da chamada ordenação axiológica jurídico-constitucional. Sob essa perspectiva, definiu-se como bem jurídico a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade na manutenção ou integridade de certo estado, objeto ou bem em si mesmo, ambos considerados socialmente relevantes e por isso mesmo juridicamente tutelados. 8 5 Vide: LISTZ, Franz Von. Tratado de Derecho Penal: Tomo II. 4ª ed. Madrid: Editorial Réus, 1999. p. 336-340. 6 Sobre as noções de Estado de Direito formal e material, ver: GARCÍA-PELAYO, Manuel. Las transformaciones del Estado contenporáneo. Madri: Alianza Universidad, 1996. p. 54. 7 Da doutrina de Roxin é possível colher as seguintes lições: El punto de partida correcto consiste en reconocer que la única restricción previamente dada para el legislador se encuentra en los princípios de la Constitución. Por tanto, um concepto de bien jurídico vinculante políticocriminalmente sólo se puede derivar de los cometidos, plasmados en la Ley Fundamental, de nuestro Estado de Derecho basado en la libertad del individuo a través de los cuales se le marcan sus limites a la potestad punitiva del Estado. En consecuencia se puede decir: los bienes jurídicos son circunstancias dadas o finalidades que son útiles para el individuo y su libre desarrollo en el marco de un sistema social global estructurado sobre la base de esa concepción de los fines o para el funcionamiento del próprio sistema. ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General: Fundamentos: La Estructura de la Teoría del Delito. Trad. da 2ª ed. alemã por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madri: Civitas, 2006. p. 54 e ss. 8 Sobre o tema, ver: DIAS, José Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral: Questões Fundamentais: A Doutrina Geral do Crime. Tomo I. 1ª ed. brasileira. 2ª ed. portuguesa. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora, 2007. p. 114 e ss.

5 Nesse mesmo passou firmou-se a ideia de que só pode haver criminalização se esta for indispensável à livre realização da personalidade de cada integrante do espaço social, uma vez que o Direito Penal deve constituir a ultima ratio da política social. 9 Entretanto, com o fluir do tempo, tais concepções de bem jurídico passaram a ser ajustadas aos filtros impostos pelas mudanças suportadas pela sociedade, principalmente na transposição do século XIX ao XX e os diversos acontecimentos aos quais este último século serviu como palco. Não por menos é que termos como sociedade de risco, como bem disse Ulrich Beck 10 a partir de análise de problemáticas ligadas à pós-modernidade e globalização e sociedade de hiperconsumo, como propugna Gilles Lipovetsky 11, para quem hoje se contempla não uma pós-modernidade, mas sim uma hipermodernidade pautada pela intensificação danosa dos desejos e comportamentos, ingressaram ao espaço dos estudos inerentes às ciências sociais. Sob o influxo desse panorama de mudanças é que passaram a surgir com maior relevância teorias sobre os chamados bens jurídicos coletivos, que estão no cerne da delimitação entre Direito Penal Primário e Secundário. Sendo assim, enquanto o Direito Penal Primário se relaciona, direta ou indiretamente, com a ordenação jurídico-constitucional relativa aos direitos, liberdades e garantias das pessoas, o Direito Penal Secundário se vincula essencialmente à ordenação jurídico-constitucional afeta aos direitos sociais e à organização econômica. No primeiro visa-se tutelar a esfera de atuação especificamente pessoal, enquanto no segundo almeja-se proteger a esfera de atuação social do homem. 12 9 DIAS, José Figueiredo. Op. Cit. p. 128. 10 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: Hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1994. 11 LIPOVETSKY, Gilles. Tempos hipermodernos. São Paulo: Editora Bacarolla, 2004. 12 DIAS, José Figueiredo. Op. Cit. p. 121.

6 E assim, a partir dessas ideias, é possível verificar a existência de uma espécie de trilha que conduz a compreensão de bem jurídico a pontos distintos: nesse itinerário, parte-se da proteção penal de bens jurídicos individuais para a proteção penal da ordem econômica, uma vez que os interesses tutelados nos delitos socioeconômicos podem apresentar uma dimensão individual e uma dimensão coletiva. No confronto dessas perspectivas é que se faz possível notar já nas primeiras impressões ou reflexões que, como antes se disse, os bens jurídicos inerentes ao Direito Penal Econômico se distinguem em certa medida dos bens jurídicos usualmente tutelados no campo do Direito Penal Primário. Nesse plano, algumas características essenciais ao bem jurídico inerente ao Direito Penal Econômico apresentam-se como contraste com a comum compreensão desse instituto. Enumeram-se oito, que aqui serão indicadas objetivamente, de modo a sustentar os apontamentos que serão feitos ao tratamento do erro nessa seara específica do Direito Penal. A primeira característica peculiar refere-se ao fato de que o conteúdo axiológico do bem jurídico socioeconômico encontra-se vinculado a uma determinada política econômica que, ao seu turno, desenvolvese imersa no campo de incertezas próprio da economia. A segunda característica específica reside nas chamadas teorizações econômicas que, justamente por serem voláteis, alteramse conforme os interesses e ideologias econômicas predominantes num dado momento histórico. Exemplo corrente dessa característica é o crime de evasão de divisas, cuja necessidade de criminalização tem variado constantemente, conforme os interesses econômicos vigentes. Por conseguinte, a terceira característica é identificada na necessidade da proteção do bem jurídico socioeconômico em ser realizada de modo diverso da tutela dos bens jurídicos individuais, sendo que o

7 conteúdo integral do ilícito dos delitos coletivos terá, frequentemente, de se exprimir em função de normas extrapenais, especialmente administrativas. A quarta característica do bem jurídico protegido no Direito Penal Econômico se verifica na ideia de que uma conduta típica isolada pode não denotar lesividade ao bem jurídico que se visa proteger, tal qual ocorre com os bens jurídicos coletivos em geral, os quais demandam uma quantidade de ações típicas similares para que possa acarretar uma efetiva lesão. Ao seu turno, a quinta característica exige uma atuação atenta do julgador, que verifica como suficiente ataque de menor intensidade ao bem jurídico protegido, inexistindo qualquer injusto material, com a incorporação explícita ao injusto de elementos típicos normativos de atitude. Adiante, a sexta característica aponta que o bem jurídico socioeconômico se constitui como um fenômeno de natureza complexa, sendo imposto pelo Estado conforme a ideologia econômica vigente, compreensível por um segmento limitado de cidadãos, normalmente não exprimindo um fundamento ético-social arraigado na comunidade em geral e existente previamente na sociedade. A sétima característica é identificada na natureza conflitiva presente no bem jurídico socioeconômico, pois, em muitas vezes, o perigo é causado por ações legítimas, socialmente adequadas e até mesmo indispensáveis. Por derradeiro, a oitava característica indica que o bem jurídico inserido no Direito Penal Econômico pode vir a apresentar um elemento institucional estatal, representado pela infração de um dever imposto pelo Estado. Diante dessas oito características aqui referenciadas, todas elas conectadas umas as outras como se a existência da peculiaridade predecessora ensejasse a existência da seguinte, é possível verificar que as

8 estruturas do bem jurídico socioeconômico estão em constante movimento, como se estivessem inseridas na perspectiva filosófica do panta rhei de Heráclito: todas elas fluem na medida em que as políticas e perspectivas econômicas inerentes a Estado e sociedade permanecerem em cíclica e contínua transformação. Por tais razões é que a predominância de elementos de valoração global do fato e a utilização da técnica de remissão legislativa (que abrange as normas penais em branco e os elementos normativos jurídicos) se mostram imprescindíveis à contemplação, estudo e reflexão dos delitos socioeconômicos. 13 Por elementos de valoração global do ato devemos entender os conceitos inespecíficos que constituem o tipo penal, que não permitem que o agente compreenda, em sentido abstrato, as circunstâncias fáticas e normativas a que o conceito se refere. De plano, já é possível assinalar ao menos uma problemática quando tal definição é transposta ao estudo do erro nos crimes econômicos, problemática essa identificada no ordenamento jurídico brasileiro em razão de suas próprias características: de nada adianta o Código Penal definir o que seja erro de tipo e erro de proibição se, no Direito Penal Econômico, existem corpos estranhos que não podem ser enquadrados com clareza nessas categorias. Portanto, há clara relevância na delimitação ensejada aos elementos de valoração global, e também aos elementos normativos, pelo Direito Penal Econômico, visto que é essencial para o estudo do erro. Ao seu turno, as ditas normas penais em branco são aquelas em que há uma necessidade de complementação para que se possa compreender o âmbito de aplicação de seu preceito primário. Em outras palavras, seria equivalente dizer quer, mesmo havendo uma descrição da conduta proibida, é necessário que outro diploma legal traga em seu bojo um complemento, para que possam ser compreendidas as limitações da proibição ensejada. 13 MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Derecho Penal Económico y de la Empresa: Parte General. 2ª ed. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2007. p. 254.

9 A remissão legislativa é aplicada aos delitos socioeconômicos por uma razão técnica traduzida no objetivo de evitar a estagnação e anacronismo da matéria versada no Direito Penal Econômico, pela crescente e célere evolução econômica e da própria sociedade. É diante dessas particularidades, e de outras mais que ainda poderiam ser citadas e que certamente serão abordadas pelos demais palestrantes, que se propugna um tratamento diferenciado para o instituto do erro no Direito Penal Econômico, uma vez que as teorias oriundas do Direito Penal Primário, pela sua própria diferenciação de essências, não podem ser automaticamente aplicadas aos delitos socioeconômicos sem um cuidado técnico ou refinamento dogmático que não ignore as transformações experimentadas pela sociedade. De modo bastante objetivo, cabe salientar que atualmente é possível colher da doutrina, mesmo no direito comparado, três propostas para um tratamento mais adequado do erro no campo do Direito Penal Econômico: por primeiro, a elaboração de alterações legislativas, com o objetivo de se aplicar ao erro critérios similares aos da teoria do dolo; por segundo, ampliação do âmbito de emprego do erro de tipo em prejuízo do erro de proibição; e, por fim, o alargamento da esfera de invencibilidade do erro de proibição, com critérios diferentes dos que regem para o Direito Penal Primário. A segunda opção, identificada na ampliação da utilização do erro de tipo em prejuízo ao erro de proibição, é que tem angariado mais adeptos na Europa. É que quando se considera que o erro sobre elementos normativos jurídicos e sobre a normativa extrapenal que complementa a norma penal em branco constitui erro de tipo, na ampla maioria dos casos, o erro acarretará a não-aplicação da pena, pois, via de regra, no Direito Penal Econômico não há a previsão de delitos imprudentes. 14 14 MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Op. Cit. p. 404.

10 Porém, no Brasil, com algumas raras e felizes exceções, o tema e a problemática do erro no Direito Penal Econômico sequer são tratados com o empenho e comprometimento necessários. Ressalta-se que aqui não se propugna uma solução que privilegie cegamente critérios diferenciados para o Direito Penal Primário e para o Direito Penal Econômico apenas em razão de suas distinções estruturais e ontológicas. Acredita-se que é possível alcançar uma resposta adequada para o âmbito econômico que não exija uma abordagem completamente distante dos delitos tradicionais. Afinal, ambos os campos são preenchidos com tipos legais, existentes em ambos os setores: talvez o elemento diferencial crucial nessa análise resida no fato de que, no Direito Penal Econômico, preponderam os tipos permeados por características peculiares que demandam um tratamento que não ignore tais especificidades. Assim, sobre a problemática do erro nesse setor específico do Direito Penal, certamente que das alternativas antes apresentadas a mais correta e profícua seria verificada nas necessárias alterações legislativas aptas a pautar e regular tais questões contemplando a movimentação natural a qual o bem jurídico socioeconômico está sujeito, como ocorreu no ordenamento jurídico português, onde já se estabeleceu que a ocorrência e verificação de erro sobre elementos de fato ou de direito de um tipo penal, ou ainda sobre proibições cujo conhecimento seja razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do fato, acaba por ensejar a exclusão o dolo. Todavia, o ordenamento jurídico brasileiro ainda não possui em sua estrutura uma norma destinada a regular esse tema que se mostra cada vez mais urgente. Por ora, a alternativa de se privilegiar a prevalência do erro de tipo sobre o erro de proibição nos delitos econômicos se apresenta como a solução que pode satisfazer, seja plano dogmático ou crítico, as

11 problemáticas aqui suscitadas, mesmo porque é adequada e compatível com a legislação brasileira em vigor, sendo tal tratamento decorrente da própria teoria do crime e não apenas de uma opção de política criminal, sendo possível alcançar resultados bastante próximos daqueles obtidos com a já apontada alteração legislativa. O que não se pode admitir é a desídia destinada ao tema, como se percebe nos julgados recentemente proferidos pelos Tribunais brasileiros e pelo próprio legislador, que insistem em acreditar que a teoria do crime desenvolvida com base na proteção de bens jurídicos individuais pode dar resposta adequada aos tipos penais que protegem a ordem econômica. Há, portanto, uma extensa trilha a ser cumprida e, por todos nós, uma tarefa a ser realizada. Assim como o caminho é formado e construído pelos próprios passos daqueles que nele trafegam, como bem expressou o poeta sevilhano António Machado em seus versos, também a resolução das questões pertinentes ao erro no Direito Penal Econômico se concretizará nos debates e estudos como os realizados neste Seminário. O Direito, e principalmente o Direito Penal, não é uma simples ferramenta que se opera, mas sim um conhecimento que se constrói em benefício da vivência em comunidade e na construção de uma sociedade solidária, como ainda almejado pela ordem constitucional inaugurada na primavera de 1988. Segundo o jurista alemão Peter-Alexis Albrecht, a proteção da liberdade é um dos desafios do Direito Penal 15, e certamente esse desafio se amolda com facilidade na atual realidade do Direito Penal brasileiro, por vezes confundido com uma masmorra de cidadãos em lugar de um palco de liberdades legitimamente protegidas. 15 ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia. Uma fundamentação para o Direito Penal. Curitiba: Lumen Juris/ICPC, 2010, p. 581.

12 De tudo o que aqui se expôs, de todos os pontos críticos e desafios que aqui foram pontuados, fica a ideia e sensação de que, quando se fala do erro inerente ao Direito Penal Econômico no cenário jurídico brasileiro, ainda há muito por fazer. E assim finalizo essa singela reflexão com os dizeres do romancista francês André Gide, que disse que os bons trabalhadores têm sempre a ideia de que ainda poderiam trabalhar mais. 16 Que todos nós sejamos, então, além de operadores e construtores do Direito, também bons trabalhadores. noite. Agradeço sinceramente a atenção de todos. Uma boa 16 GIDE, André. Os Moedeiros Falsos (Les Faux-Monnayeurs). Rio de Janeiro:Francisco Alves Ed., 1983, p. 183.