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1 Ah, glorioso, mais glorioso dos gloriosos! E mais uma vez glorioso! O sol espalha calor e luz dourada no rosto e nos braços de Lucy. Novas folhas claras brotam tão rápido que ela quase pode ouvir os pequenos suspiros que fazem enquanto se abrem. Pássaros piam e gorjeiam, como trabalhadores urbanos procurando parceiros em potencial. Algumas nuvens vacilantes pontuam o doce céu azul. O mundo cambaleia, bêbado de felicidade. Lucy quase ri alto. Que dia prodigioso. O dia mais prodigioso de todos, desde o comecinho dos tempos. Ela não percebe o quanto ela própria acrescenta à sua perfeição. Será o vestido de verão estampado de rosas, que a brisa sopra e vira para cima contra suas pernas? Ou o simples fato de que a própria Lucy é perfeita como uma rosa, uma flor recém- -aberta tão perfeita que a gente pode imaginar o sol quebrando todas as regras da imparcialidade para brilhar só em cima dela. Que paraíso, ela pensa. Que felicidade! Quem quer que esteja encarregado do clima hoje conseguiu (para variar) alcançar a perfeição. Seu passo é leve. A distância do ponto de ônibus até o trabalho é curta. Ela sorri, um quase sorriso de menina-mulher que ilumina seus traços adoráveis. O sol pinta luzes suaves em suas maçãs do rosto e boca bem formada, ilumina seu cabelo claro. 9 No_Inicio_Nao_Havia_Bob.indd 9 13/05/2015 16:55:09

Ela sonha com os meses de verão por vir, as conversas inteligentes, os longos fins de tarde rosados, as possibilidades de amor. Sua juventude, seu sorriso, sua felicidade, tudo se junta, nesse momento, para torná-la a mulher mais irresistível da Terra. Um rapaz anda a alguma distância atrás dela. Se ele já não tivesse decidido não se apaixonar por ela ou por qualquer outra pessoa, nunca mais poderia correr para alcançá-la. Em vez disso, ele diminui o ritmo e se afasta, sem gostar dela, por nenhum bom motivo. Lucy saltita um pouco, feliz. Ela passa por um chafariz e se inclina para dentro do borrifo, deliciada com seus arco-íris cintilantes. Então apruma-se e continua a andar, cantarolando uma pequena oração como uma esperança, um feitiço particular: Querido Deus, ela reza, eu gostaria de me apaixonar. Mas espere... o que é isso? Que sorte! Deus (que quase nunca se dá ao trabalho de escutar as pessoas) ouve sua oração. A oração de Lucy! Transportado por sua beleza, decide atendê-la ele mesmo. Que milagre! Muito mais do que glorioso! O próprio Deus está prestes a se apaixonar. 10 No_Inicio_Nao_Havia_Bob.indd 10 13/05/2015 16:55:09

2 Acorde! Deus está sonhando com água. Em seu sonho há um chafariz e uma garota nua e (é claro) ele. A água está quente, a garota, a fim; sua pele é macia. Ele estica uma das mãos para acariciar seu seio, mas em vez disso enrosca os dedos em volta de um braço magro... Acorde. Uma ponta de impaciência acompanha a ordem. Ah, Jesus. É aquele sinistro Sr. B seu assistente, secretário particular, o chato pessoal de Deus. E, que surpresa. Os óculos de B escorregaram para a ponta de seu nariz e ele está de cara fechada. Deus está acordado. Ele abre um olho. O que foi? Vá até a janela. Sua cabeça dói. Me fala logo. Levante-se. Pés no chão. Ande até a janela. Olhe lá para fora. Com um suspiro enorme, o cérebro turvo e lento como pudim, o garoto se senta, coloca os pés no chão, se levanta, balança por um instante e passa uma das mãos pelo cabelo (que ele pode notar, com irritação, que migrou para um lado de sua cabeça, como se tivesse ficado estagnado depois de um vento 11 No_Inicio_Nao_Havia_Bob.indd 11 13/05/2015 16:55:09

forte). Gemendo, ele se vira e anda, cansado, até a janela, seus pés descalços e frios. O barulho da água é mais alto do que no sonho. Para sua surpresa, há água onde a rua costumava ficar, e por um momento ele se sente bastante aliviado pelo fato de seu quarto não ficar no andar térreo do prédio. Água diz ele, com interesse. Sim, água. Os modos do Sr. B são mansos, mas ele treme com sentimentos contidos. Deus se esforça para dar um sentido à cena. Por que há água nas ruas? Ele fez isso acontecer? Certamente não. Estava dormindo. Olhe aqui. Ele olha. O que você vê? Fora do quarto há um grande banheiro, completo, com privada, pia, piso de mármore branco, banheira vitoriana grande. Banheira. A banheira! Deus se lembra agora; ele estava preparando um banho de banheira e então, enquanto esperava que enchesse, ele se deitou. Só por um momento. Deve ter adormecido. E enquanto dormia, sonhando com aquela garota linda, a garota no chafariz, a banheira transbordou. Ah. Ah? Só ah? Vou fechar a torneira. Eu fechei a torneira. Ótimo. O garoto volta para a cama e desaba. O Sr. B se vira para Deus com sua combinação costumeira de resignação e raiva. Não acha que deveria fazer algo a respeito da bagunça que causou? Do lado de fora da janela, a água corre pelas ruas. Vou fazer resmunga ele, já semiadormecido. Mais tarde. 12 No_Inicio_Nao_Havia_Bob.indd 12 13/05/2015 16:55:09

Mais tarde, não, agora. Mas Deus puxou um travesseiro por cima da cabeça, sinalizando (com bastante determinação) que não adiantava reclamar. O Sr. B solta fumaça. Deus está sonhando com sexo ensaboado com a namorada de mentirinha enquanto o resto do mundo se afoga no banho. No banho dele. É sempre assim. Dia após dia, ano após ano, década após década. Sem parar, sem parar, sem parar. O Sr. B (mais do que um assistente pessoal, menos do que uma figura paterna um quebra-galho, talvez, um facilitador, secretário) suspira e volta a sua mesa para verificar a correspondência, a qual (apesar de ser resolvida diariamente) tem uma tendência a se empilhar em enormes torres oscilantes. Ele vai escolher uma ou duas orações e tentar tomar uma atitude urgente. Não as mostra para Deus, pois a capacidade de concentração do garoto é mínima, na melhor das hipóteses. De vez em quando, uma voz salta da torrente de orações e o comove pela simples virtude de sua sinceridade. Querido Deus, eu gostaria de me apaixonar. Uma oraçãozinha pouco exigente. Vinda exatamente do tipo de garota doce que ele gostaria de ajudar, para começar assegurando-se de que nunca botasse os olhos (ou qualquer outra coisa) nela. Mas Deus tem um nariz de perdigueiro para garotas deslumbrantes e, antes que o Sr. B possa esconder a oração, o garoto está fora da cama e espiando por cima de seu ombro, farejando a oração como se fosse uma trufa, praticamente a inalando em sua ansiedade para botar as mãos... Quem é ela? Ninguém. Uma anã. Baixa, peluda, velha. Um troll. Ela resmunga, ela ronca, ela fede. Mas é tarde demais. Ele a viu. Ele observa Lucy em seu vestido de verão conforme ela anda pela luz mesclada da manhã 13 No_Inicio_Nao_Havia_Bob.indd 13 13/05/2015 16:55:09

a luz dele, seus quadris redondos balançando, seu cabelo claro em brasas. Ela é primorosa. Impecável. Nesse exato instante, há um clarão ofuscante de luz. É tão intenso que por um momento o mundo desaparece. Vou ficar com ela diz Deus. Quando o Sr. B consegue abrir os olhos mais uma vez, a expressão no rosto de Deus faz seu coração afundar. São 12 partes de amor abstrato, 83 partes de desejo sexual e 10,5 milhões de partes de determinação cega. Ah, por favor, o Sr. B pensa, não uma humana. Não outra humana. Ele é tomado de desespero. A paixão de Deus por humanas sempre leva à catástrofe, à perturbação meteorológica de proporções épicas. O que há de errado com o garoto que ele não consegue ficar de pau duro por alguma bela deusa? Por quê, ah, por que ele não pode procurar um relacionamento sensato, que não vá terminar em desastre? O Sr. B queria chorar. Tentar convencer Deus do contrário ao que ele queria é tão útil quanto tentar argumentar com uma lula. Ele vai correr atrás de Lucy até seu tesão acabar ou até que alguma enorme perturbação geológica a apague da face da Terra. O Sr. B já conhece essa história. Terremotos, tsunamis, tornados. A notável incapacidade única de Deus de aprender com os próprios erros: mais um traço maravilhoso que ele passou adiante para suas criações. Feliz agora, o garoto volta para a cama, onde cochila, criando situações obscenas em torno da namorada que ainda não encontrou. 14 No_Inicio_Nao_Havia_Bob.indd 14 13/05/2015 16:55:09