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Transcrição:

A VISIBILIDADE DE ASPECTOS MORFOSSINTÁTICOS NO PROCESSO DA ELISÃO 1 Juliana Ludwig GAYER 2 RESUMO: A elisão é um dos processos de sândi externo que ocorrem para evitar a formação de hiatos entre palavras. Esta regra ocorre sempre que temos a vogal /a/ seguida de outra vogal (diferente de /a/). Com a aplicação da regra, a sequência fonológica fica reduzida em uma sílaba. Em nossa pesquisa anterior, descrita em Ludwig-Gayer (2008), constatamos que o caráter funcional ou lexical de um vocábulo tinha papel na aplicação da elisão, pois os resultados apontaram um desfavorecimento da elisão quando a palavra que contém a vogal alvo da elisão for funcional. Este resultado parece indicar que informações morfossintáticas estariam disponíveis para a regra do nível frasal, contrariando expectativas baseadas na Teoria Prosódica (Nespor e Vogel, 1986; Selkirk, 1978, 1986). Nesta pesquisa, reanalisamos os dados do levantamento anterior com o objetivo de verificar se realmente existe papel da estrutura morfossintática no comportamento da elisão. Nossos resultados sugerem que, na etapa da elisão, informações da constituição morfossintática das frases e da constituição morfológica das palavras não são relevantes. Desse modo, o processo de elisão parece basear-se, estritamente, nas informações fornecidas pela estrutura prosódica, assim como prevê a teoria. PALAVRAS-CHAVE: Mapeamento prosódico; Visibilidade morfossintática; Elisão. ABSTRACT: Elision is one of the vowel sandhi processes that occur to avoid the formation of hiatus between words. This rule applies whenever we have the vowel /a/ followed by another vowel (different from /a/). With the application of the rule, the sequence is reduced in one phonological syllable. In our previous research, described in Ludwig-Gayer (2008), we found that the functional or lexical character of a word had a role in the implementation of elision because the results showed an avoidance of elision when the word containing the target vowel was functional. This result seems to indicate that morphosyntactic information would be available to the rule of the phrasal level, contrary to expectations based on Prosodic Theory (Nespor and Vogel 1986, Selkirk, 1978, 1986). In this study, our goal is to verify if there really is some visible morphosyntactic structure when elision occurs. Our results suggest that, at the stage of elision, information about morphosyntactic constitution of the phrases and about morphological constitution of the words are not yet relevant. Thus, elision seems to be based strictly on information provided by prosodic structure, as predicted by the theory. KEYWORDS: Prosodic mapping, Morphosyntactic visibility; Elision. 1 Introdução O fenômeno da elisão é um dos processos de sândi externo que ocorrem para evitar a formação de hiatos entre palavras. Bisol (2002: 231) argumenta que um dos pressupostos básicos para o estudo do fenômeno é que o sândi externo é um processo de ressilabação motivada pelo 1 Agradecemos à Profa. Luciani Tenani (UNESP- São José do Rio Preto) por suas sugestões para uma versão anterior do trabalho. 2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, julianaludwig@yahoo.com.br, CAPES/REUNI.

choque de núcleos silábicos de palavras diferentes. Ou seja, o sândi ocorre quando as fronteiras vocálicas de duas palavras se ligam e compõem uma só sílaba. No caso da elisão, a ressilabação ocorre quando temos uma palavra terminada, normalmente, com a vogal /a/ e outra palavra, adjacente, que inicie com uma vogal diferente de /a/. Um exemplo seria mochila escolar, que, com a elisão da vogal /a/ e a posterior ressilabação, seria produzida [mu'ʃilisko'la ]. Algumas pesquisas indicaram que certos aspectos morfológicos, ou morfossintáticos, teriam papel na ocorrência da regra. Bisol (2002), por exemplo, analisou 12 entrevistas de Porto Alegre extraídas do banco de dados VARSUL. Com uma taxa de aplicação de 32%, em 1.588 dados, o grupo de fatores monomorfema foi um dos que foram selecionados como relevante. Nesse grupo, Bisol (2002) considera casos de uma palavra formada por uma só vogal ou por consoante e vogal, como vemos em seus exemplos: (a) falei a Orlando - *falei Orlando; (b) moro na esquina - *moro [nes]quina. 3 A partir de seus resultados, Bisol (2002: 245) argumenta que os monomorfemas tendem a ser preservados quando constituem com a palavra seguinte um grupo clítico (mono+palavra 0,23). E quando estamos diante da combinação palavra+mono, a regra da elisão é favorecida (0,68), pois, nesse caso, o monomorfema (V2) não é apagado. Em pesquisa semelhante, descrita em Ludwig-Gayer (2008), analisamos 784 contextos de elisão retirados de oito entrevistas da cidade de São Borja (VARSUL), encontrando uma taxa de 55% de aplicação da regra. Um dos grupos de fatores selecionados como relevante foi combinação vocabular, indicando que a regra aplica mais quando temos uma palavra não funcional na primeira posição: não funcional + funcional (mandava os), 0,64 4 ; não funcional + não funcional (casa iluminada), 0,55; funcional + funcional (pra um), 0,36; funcional + não funcional (uma igreja), 0,30. As duas pesquisas parecem mostrar que a regra da elisão não será favorecida quando o monomorfema ocupar a primeira posição, ou seja, quando essa posição for ocupada por uma palavra funcional. Porém, esses resultados levantam questões teóricas no mínimo interessantes. Vejamos. A maioria das pesquisas que analisam o sândi, inclusive as duas recém mencionadas, encontrou resultados semelhantes no que diz respeito ao papel da constituição prosódica. O interior da frase fonológica é o contexto preferido para a regra ocorrer. Segundo os pressupostos da Teoria Prosódica (Selkirk, 1978, 1986; Nespor e Vogel, 1986), as sentenças de uma língua são segmentadas pelo componente fonológico em constituintes prosódicos. Dessa forma, cada sentença é dividida desde a sílaba até o enunciado. Para mapear o constituinte frase fonológica, assim como outros constituintes prosódicos maiores, necessitamos de informação sintática. 5 Para uma teoria da interação sintaxe/fonologia nos moldes derivacionais, como a Teoria Prosódica, uma vez realizado o mapeamento das estruturas sintáticas em prosódicas, a informação sintática não ficaria mais disponível para as regras do componente fonológico. A ideia dessa teoria é que, no nível de aplicação das regras fonológicas (no nível de aplicação da elisão, por exemplo), a representação sintática (ou morfossintática) não seria mais acessada, pois ela é acessada apenas uma vez, ou seja, no momento do mapeamento. A partir daí, a informação que estaria disponível nesse nível seria apenas a prosódica. De acordo com Selkirk 3 Estes exemplos mostram que, a rigor, não se trata de uma palavra formada por um único morfema, mas por uma palavra constituída por apenas uma sílaba. 4 Peso relativo. Acima de 0,50, a regra é favorecida. Abaixo disso, ela é desfavorecida. 5 É importante deixar claro que a estrutura prosódica pode coincidir com a estrutura sintática, mas isto não é regra, pois elas não são isomórficas.

(1986: 375), teríamos níveis da estrutura prosódica da sílaba até o enunciado fazendo a intermediação entre as regras do nível fonológico e os constituintes sintáticos ou morfossintáticos. Na etapa da elisão, então, a regra só enxergaria os aspectos prosódicos, já que as regras fonológicas não poderiam ter acesso à estrutura morfossintática diretamente, mas somente através dos constituintes prosódicos dela derivados. Como explicar, então, essa visibilidade de aspectos morfossintáticos que aparece nos resultados de pesquisas anteriores? É uma questão empírica verificar se as proposições da teoria de fato se observam nos dados de um fenômeno frasal, como o sândi vocálico em português. Portanto, o objetivo desta pesquisa é buscar evidências para verificar se realmente existe papel da estrutura morfossintática no comportamento da elisão. Pretendemos responder às seguintes perguntas: (a) A constituição morfossintática das frases fonológicas poderia ter papel? (b) A vogal elidida pode ser vogal temática, índice temático, morfema de tempo ou de gênero: isso faz alguma diferença? Nossa hipótese é, de acordo com a Teoria Prosódica, de que a informação sintática, e consequentemente morfossintática, estaria disponível apenas uma vez, ou seja, no mapeamento das estruturas sintáticas em prosódicas. Pensando nas regras já do nível prosódico, como é o caso da elisão, esta informação, que serviu de base ao mapeamento, não estaria mais disponível neste nível. Como nossos resultados anteriores mostraram que parece ser relevante a combinação das palavras funcionais e não funcionais - ou seja, informação de ordem morfossintática -, precisamos analisar os dados com mais acurácia, para avaliar se de fato essa informação é acessada no nível de aplicação da elisão ou se outros fatores estariam influenciando o resultado. Em Gayer (2012), verificamos se a aplicação de elisão seria diferente em contexto de frase fonológica simples e de frase reestruturada, conforme distinção proposta em Nespor e Vogel (1986). Nessa análise, constatamos que a diferença na taxa de aplicação da regra em frases fonológicas simples e reestruturadas não é significativa, resultado este que está de acordo com a teoria, já que indica que informações de ordem sintática parecem não ser relevantes para a regra da elisão, regra do componente fonológico. A presente análise complementa aquela, já que ambas se debruçam sobre a questão até que ponto a estrutura sintática estaria influenciando a realização da elisão, utilizando como base empírica o mesmo conjunto de dados. 2 Voltando aos dados Nesta seção, retomaremos os dados analisados em pesquisa anterior e analisaremos melhor esses dados. Como foi dito, analisamos 784 contextos de elisão em nossa pesquisa de mestrado, a qual também envolveu a análise variacionista dos outros processos de sândi: degeminação e ditongação. Para esta pesquisa, focamos nos casos que ocorrem dentro da frase fonológica, incluindo casos em que o contexto está inserido no que se considera grupo clítico (Nespor e Vogel, 1986). Sendo assim, restaram 495 dados que serão analisados a seguir. Antes de passarmos à análise propriamente dita, é importante delimitar a diferença entre palavras funcionais e não funcionais, já que partimos de resultados referentes a essas categorias. De acordo com Cavalcanti (2004), com base nas ideias de Câmara Jr. (1970), existem dois tipos básicos de palavras: aquelas que se referem a objetos e a eventos do mundo real (ou de nossa imaginação) e outras que só existem para o funcionamento da língua. O primeiro tipo representa as palavras não funcionais da língua, as quais compõem uma classe aberta de palavras,

já que o falante é capaz de criar novas palavras a partir delas. São exemplos os nomes, os verbos, etc. Já o segundo tipo descrito representa as palavras funcionais. Esse tipo de palavra constitui um inventário fechado, pois não serve de base para a criação de novas palavras. É o caso das conjunções, das preposições, dos artigos, etc. Além desses critérios de ordem semântica e morfológica, há outros. Por exemplo, as palavras funcionais não somente não servem de base para a criação de novas palavras, mas também não apresentam flexão. Esse critério, porém, não sustenta sozinho a distinção, pois há palavras lexicais que também não se flexionam. Baseamo-nos nos critérios de Cavalcanti (2004) para delimitar o que consideraríamos palavras funcionais (as quais o autor denomina gramaticais ) e o que consideraríamos palavras não funcionais (as quais o autor denomina lexicais ). Para facilitar, apresentamos um quadro com esses critérios. Como se pode ver, a classe gramatical e a função de uma palavra não determinam se ela é funcional ou não funcional. Por exemplo, há advérbios que são não funcionais e outros que são funcionais. palavras não funcionais (inventário aberto) Quadro 1 Palavras funcionais X não funcionais critério semântico critério funcional Nome (inclusive substantivo A aspereza daquela Numeral) resposta me fez mal. adjetivo O evento atraiu os dois. Me senti mal com aquela resposta áspera. palavras funcionais (inventário fechado) advérbio [São os advérbios temporais (hoje, agora, cedo) ou aqueles terminados em -mente (felizmente, rapidamente, ociosamente] Há duas pausas nesta música. Respondeu asperamente. Verbo Venceremos. Pronome (inclusive substantivo Você gosta de sorvete? Artigo) "nome gramatical" adjetivo Sorvete é do seu agrado? advérbio O sorvete daqui é ótimo! Conectivo coordenativo Lutou e venceu. subordinativo Informamos que o tempo da prova acabou. Adaptado de Cavalcanti (2004)

Além dessa explicitação de critérios na delimitação dos tipos de palavras funcionais e não funcionais, é importante ressaltar o caso dos verbos de ligação. Esse tipo de verbo não seria uma palavra funcional, por exemplo, já que apresenta flexão, assim como as palavras não funcionais da língua. Por outro lado, considerar esse tipo de verbo como palavra não funcional é problemático à medida que ele apresenta, de certa forma, uma função gramatical, ligando dois termos da oração. Acreditamos que este seja um caso especial; por isso, resolvemos computar esses casos de forma isolada. Tabela 1 Combinação de palavras Grupo clítico Frase fonológica Não-funcional + funcional (ajudava os) - 6 86/117 7 73,5% Não-funcional + não-funcional (dia inteiro) - 32/44 72,7% Funcional + não-funcional (minha infância) 46/134 34,3% 24/40 60,0% Funcional + funcional (pra um) 11/44 25,0% 24/48 50,0% Verbo de ligação + funcional (era esse) - 49/58 84,5% Verbo de ligação + não-funcional (era irmã) - 6/7 85,7% Funcional + verbo de ligação (pra estar) - 0/3 0% A partir dos resultados da Tab. 1, vemos que, quando temos uma palavra funcional na primeira posição, a elisão não ocorre muito, principalmente dentro do grupo clítico. Por outro lado, quando temos um verbo de ligação nessa posição, a regra se aplica bastante, em mais de 80% dos casos. Para que este resultado seja tomado como verdadeiro, precisaríamos contrariar a teoria e argumentar a favor da visibilidade de aspectos morfossintáticos no nível em que a elisão ocorre. Porém, acreditamos que outros fatores estariam influenciando esse resultado. Pretendemos, então, buscar que fatores seriam esses. Para tanto, serão apresentados os resultados já como tentativas de respostas às perguntas que nortearam a presente pesquisa. 2.1 Respondendo à primeira pergunta Nossa primeira pergunta está relacionada ao conteúdo morfossintático do constituinte: a constituição morfossintática das diferentes frases poderia ter papel? Nesta análise, dividimos a variável nos seguintes fatores, considerando a categoria morfossintática da palavra que continha a vogal alvo /a/: nome, numeral, verbo, pronome, advérbio, preposição, adjetivo e artigo. 6 Não houve ocorrência. 7 Aplicação/Total.

Tabela 2 Categoria da palavra 1 Aplicação/Total % Nome 16/18 88,8 (de roupa usada) Numeral 13/16 81,2 (desde sessenta e quatro) Verbo 136/181 75,1 (ele passa envolvido) Pronome 19/31 61,3 (da minha infância) Advérbio 3/5 60,0 (que nunca ouviu) Adjetivo 4/7 57,1 (minha própria experiência) Preposição 41/92 44,6 (ir pra o internato) Artigo (tem uma outra faculdade) 45/145 31,0 Os dados da Tab. 2 mostram uma aplicação superior a 50% quando a primeira palavra é da classe dos nomes (88,8%), dos numerais (81,2%), dos verbos (75,1%), dos pronomes (61,3%), dos advérbios (60%) e dos adjetivos (57,1%). As demais classes têm aplicação inferior a 50%, ou seja, em menos da metade dos casos, ocorre a elisão. Em relação à classe dos nomes, apesar de termos poucos dados, obtivemos a maior porcentagem de aplicação da regra. Estes poucos dados, porém, podem ser analisados com mais atenção, como vemos na Tab. 3. nome dia (o dia inteiro) nome roupa (de roupa usada) nome coisa (uma coisa inexplicável) outros (uma farmácia inteira ) Tabela 3 Categoria nome Aplicação/Total % 3/3 100 2/2 100 2/2 100 9/11 81,8 Há palavras recorrentes nos dados e que são submetidas, em todas as ocorrências, à regra de elisão. As palavras dia, roupa e coisa aparecem em sete contextos, nos quais a regra se aplica todas as vezes. Por isso, temos 100% de aplicação nesses casos. Essa aplicação frequente na ocorrência destas palavras provavelmente faz com que a aplicação nos contextos de nomes se eleve. Mas, de qualquer forma, considerando apenas os casos de outros nomes, ainda temos uma porcentagem de aplicação elevada: 81,8%.

No caso da classe dos artigos, a taxa de aplicação desce bastante na porcentagem total. Mas se considerarmos o tipo de artigo em separado, temos resultados diferentes, como vemos na Tab. 4. Tabela 4 Categoria artigo Aplicação/Total % artigo indefinido 17/26 65,4 (tenho uma irmã) artigo definido 16/55 29,1 (dando a impressão) contrações (através da oração) 12/64 18,7 Os resultados da Tab. 4 mostram que a aplicação da elisão se dá de forma mais frequente se o artigo é indefinido (65,4%). Quando temos casos de artigos definidos ou contrações, a porcentagem fica mais baixa e a regra passa a não se aplicar na mesma frequência. Estas duas porcentagens baixas tendem a baixar a porcentagem geral, quando se considera todos os casos de artigo, sem distinção. Como vimos, Bisol (2002) encontrou resultados semelhantes ao analisar o monomorfema, casos de artigo definido e contração. Seus resultados mostraram que os monomorfemas são preservados quando formam com a palavra seguinte um grupo clítico. A análise de Bisol (2002) baseia-se na ideia de que o que influencia a ocorrência da regra, nesse caso, é o tamanho da palavra, pois, se um artigo definido for apagado, ele não deixa vestígios. Já com o apagamento da última vogal do artigo indefinido, alguma porção da palavra permanece, fazendo com que ele ainda seja identificado. Entretanto, essa ideia, de cunho funcionalista, não encontra uma formalização adequada nas teorias de base formal com que trabalhamos (entre as quais se inclui a Fonologia Prosódica de Nespor e Vogel (1986) e Selkirk (1978, 1986)). Consideramos que, possivelmente, outra força esteja em jogo aqui. Em vocábulos formados apenas por uma vogal, ela é tanto o início quanto o final da palavra que constitui. Sabemos, por constatação do comportamento dos fenômenos de sândi e de outros fenômenos de fronteira de palavra, que a porção inicial de uma palavra é mais resistente a alterações. Nesse sentido, sugerimos que a explicação esteja no fato de que esses clíticos muito pequenos resistem mais à elisão por estarem em posição inicial de vocábulo fonológico. 8 Segundo Beckman (1997, 2004), encontramos, em várias línguas, essa resistência em sílaba inicial de palavra. A autora afirma que experimental evidence indicates that the application of fast-speech assimilation rules in two-word sequences preferentially affects the end of the first word, rather than the onset of the second (1997: 7). Um exemplo é o que ocorre em Leti, uma língua austronésia. Nessa língua, a metátese se aplica para satisfazer restrições prosódicas do nível da frase. Porém, essa regra só se aplica quando em contexto de final de palavra. Em início de palavra, a metátese é sempre bloqueada. No coreano falado em Seul, também encontramos um exemplo de maior resistência em início de palavra. Nessa língua, há um processo de apagamento de glide que ocorre muito mais em sílabas finais do que em sílabas de início de palavra. 9 Dessa forma, percebemos que não seria um caso isolado considerar a porção 8 É importante deixar claro que, neste momento, não pretendemos discutir a organização dos clíticos em constituintes prosódicos. Acreditamos que o clítico pode estar em início de palavra, sem ser palavra prosódica sozinho. Dessa forma, considerar o clítico palavra prosódica ou não não alteraria nossa tentativa de explicação. 9 Exemplos extraídos de Beckman (2004: 314).

inicial de palavra mais resistente a mudanças, pois essa resistência já foi observada em algumas línguas. Em relação à classe das preposições, que também apresentou uma taxa de ocorrência inferior a 50%, podemos separar os dados de para ou pra dos dados com outras preposições. Tabela 5 Categoria preposição Aplicação/Total % outros 6/11 54,5 (sou contra o progresso) para/pra (convidaram pra entrar) 35/81 43,2 Percebemos, na Tab. 5, que o tipo de preposição que realmente tem baixa porcentagem é para ou pra, além de ser o tipo mais recorrente nos dados. 10 Em suma, a observação das classes de palavras envolvidas indicou um comportamento diferenciado de artigos e preposições, em relação a outras classes de palavras. Entretanto, nossa sugestão é de que a diferença de comportamento não esteja na classe da palavra envolvida, mas no seu tamanho reduzido, devido ao qual as únicas sílabas destes vocábulos mostram resistência comparável à de outras sílabas quando em início de palavra. 2.2 Respondendo à segunda pergunta Nossa segunda questão diz respeito à natureza da vogal apagada: a vogal elidida pode ser vogal temática, índice temático, morfema de tempo ou de gênero (ou parte de um deles): isso faz alguma diferença? A distinção entre vogal temática e índice temático é feita com base em Villalva (2008). Essa autora denomina vogal temática apenas a vogal dos verbos. Já a vogal dos nomes, adjetivos e advérbios é classificada como índice temático, especificando assim sua classe temática (de tema em -a, -e, -o, ou atemático). Incluímos também, nesse último grupo, os numerais. índice temático (uma guerra econômica) morfema de tempo (ele cortava os lençóis) vogal temática (chama o filho) morfema de gênero (da mesma idade) Tabela 6 Tipo de morfema Aplicação/Total % 31/38 81,6 105/136 77,2 31/45 68,8 5/8 62,5 10 Uma análise interessante seria verificar se, na produção dos falantes, a realização foi [ paɾa] (duas sílabas) ou [pɾa] (uma sílaba) com o que poderíamos encontrar explicação para essas taxas, caso a aplicação fique mais reduzida quando a realização for pra. Pretendemos realizar essa análise em uma próxima etapa, a fim de verificar se há alguma relação entre a produção de uma forma ou outra e a ocorrência da elisão.

Os resultados da Tab. 6 mostram que todos os casos apresentam um alto índice de aplicação da elisão. Temos uma porcentagem de mais de 50% independentemente do tipo de morfema analisado. Dessa forma, vemos que não há diferença entre um tipo de morfema e outro, o que já esperávamos, com base na teoria. 3 Conclusões Em relação à constituição morfossintática das frases, nossos resultados preliminares mostraram que algumas classes apresentaram uma taxa de aplicação elevada, enquanto outras se mostraram com porcentagem baixa. Os nomes e numerais, por exemplo, obtiveram uma alta taxa de aplicação: 88,8% e 81,2%, respectivamente. Já as classes dos artigos definidos e das preposições apresentaram baixa porcentagem, com a regra se aplicando em 29,1% das ocorrências no caso de artigos definidos e em 44,6% no caso de preposições. Embora nossos resultados pareçam indicar que alguma informação ainda teria de ser acessada, pelo menos informação referente à classe morfossintática da primeira palavra, concluímos que o comportamento aparentemente distinto das classes de preposição e artigo pode ser atribuído à sua estrutura fonológica. Como apontamos anteriormente, a explicação desse comportamento parece residir não em sua classe morfossintática mas em seu tamanho, pois artigos e preposições com mais de uma sílaba se comportam de forma distinta dos vocábulos formados apenas por uma sílaba. Indicamos, como possível explicação para esta observação, o fato de que, em artigos definidos e preposições monossilábicas, a sílaba que constitui a palavra resiste ao apagamento por ser também sílaba inicial de palavra. Já a diferença entre vogal temática, índice temático e morfema de tempo ou de gênero parece não ter papel. Em todos os casos, a regra da elisão tem uma taxa de aplicação elevada, não apresentando grandes evidências no favorecimento de um tipo de morfema ou outro. Com esses resultados, confirmamos nossa hipótese inicial de que a informação morfossintática não seria mais acessada no momento da elisão. Como não teríamos mais acesso a essa informação, informações puramente morfológicas também não poderiam estar visíveis à regra. Nossos resultados indicam que, na etapa de aplicação da elisão, informações da constituição morfossintática das frases e da constituição morfológica das palavras não são relevantes na aplicação da regra. Desse modo, concluímos que o processo de elisão baseia-se, estritamente, nas informações fornecidas pela estrutura prosódica da sequência-alvo. Referências BECKMAN, J. Positional faithfulness. In: MCCARTHY, J. (ed.) Optimality theory in phonology: a reader. Blackwell Publishing, 2004, 310-342. BECKMAN, J. Positional faithfulness, positional neutralization and Shona height harmony. In: Phonology 14.1, 1997, 1-46. BISOL, L. A degeminação e a elisão no VARSUL. In: BISOL, L.; BRESCANCINI, C. (orgs.) Fonologia e variação: recortes do português brasileiro. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. p. 231-250. CÂMARA JR., J.M. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1970.

CAVALCANTI, C.B.O. (2004) Moderna perspectiva da classe de palavras. Em Homenagem a J[oaquim] Mattoso Câmara Jr. Disponível em: <http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno03-15.html>. Data de acesso: 03/10/2011. GAYER, J.L. (2012) A frase fonológica e seu papel no processo da elisão. Submetido para publicação da Universidade Federal de Uberlândia. LUDWIG-GAYER, J. Os processos de sândi externo: análise variacionista da fala de São Borja. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008. NESPOR, M.; VOGEL, I. Prosodic Phonology. Dordrecht: Foris, 1986. SELKIRK, E. On prosodic structure and its relation to syntactic structure. In: T. Fretheim (ed.). Nordic Prosody II. Trondheim: TAPIR, 1978. p. 111-140. SELKIRK, E. On derived domains in sentence phonology. Phonology Yearbook 3, 1986. p. 371-405. VILLALVA, A. Morfologia do português. Lisboa: Universidade Aberta, 2008.