2 A morfologia lexical

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Transcrição:

2 A morfologia lexical Nossa intenção, neste capítulo, é apreciar os estudos de morfologia lexical, de forma a destacar dois pontos centrais: as condições de produção e de produtividade lexicais. Para tal, primeiramente, mostraremos que nem todas as propostas de abordagem do componente morfológico da língua são adequadas à análise da estrutura interna de formas derivadas já existentes e à criação de novas formas. Em seguida, pressupondo o modelo gerativo lexicalista, apontaremos o que orienta a formação de novas palavras, conforme a noção de competência lexical. 2.1 Diferentes abordagens da morfologia lexical Quanto ao componente morfológico da língua, é possível identificar quatro abordagens principais, quais sejam: o descritivismo tradicional, o historicismo, o estruturalismo e o gerativismo. Nas duas primeiras, cuja influência ainda hoje é muito grande, como mostraremos na apreciação sobre as gramáticas tradicionais, as possibilidades para fazer pesquisas relacionadas com a produtividade lexical são poucas. A proposta descritivista tradicional, que remonta aos estudos dos gramáticos-filósofos gregos, é um modelo preocupado com a descrição e fixação de paradigmas. O historicismo, que surge no século XIX, caracteriza-se pelo interesse por estudos diacrônicos, os quais se fazem a partir de exemplos cristalizados. Somente no princípio do século XX tal quadro muda. Com Saussure, a língua passa a ser considerada um sistema formado por valores que se opõem entre si, formando as mais variadas estruturas linguísticas, as quais podem constituir-se como objeto da ciência, independentemente de sua origem, de sua história e mesmo de seus sujeitos falantes. A análise morfológica estruturalista, em essência, preocupou-se em fazer a identificação dos morfemas e proceder à sua classificação, o que se constitui em importante contribuição para a morfologia; no entanto, ainda ali, os elementos não

12 podiam ser definidos conforme o significado. A proposta da escola gerativista considera a língua inerente à condição humana. A partir da Hipótese Lexicalista, o gerativismo concebe a estrutura das palavras como parte do conhecimento lexical, incluindo-se tanto o significado quanto as propriedades gramaticais. Neste sentido, conforme argumenta Basilio (1980:7), a morfologia derivacional passa a ser definida como a parte da gramática que dá conta da competência do falante nativo no léxico de sua língua, e o estabelecimento de morfemas como entidades linguísticas perde importância em detrimento da identificação da formação ou análise das palavras por regras de formação. Mas é somente a partir do estabelecimento da Hipótese Lexicalista, proposta por Chomsky em Remarks on Nominalization (1970), na qual se defendia que estruturas nominais seriam geradas por regras de base e a relação entre formas como verbos e nominalizações seria feita no próprio léxico, que se desenvolveram propostas mais abrangentes para uma teoria lexical, dedicadas não só à análise da estrutura interna de formas derivadas já existentes, mas também à criação de novas formas. 2.2 A formação de novas palavras Observemos então, a partir da teoria lexical proposta por Basílio (1987), por que se formam novas palavras. Pode-se tratar de três funções na formação de palavras: a de mudança categorial, por exigência do sistema linguístico, quando é necessário empregar um item lexical de uma classe em outra; a expressiva de avaliação, por influência do sujeito-falante, como se evidencia no uso de sufixos afetivos, enfáticos e intensificadores; e a de rotulação, relacionada com o aspecto semântico, ou seja, com a necessidade que tem o homem de dar nome às coisas. Assim, afirma Bauer, trazido por Rocha (2008: 79), que uma formação esporádica pode ser definida como uma palavra complexa nova, criada pelo falante/escritor, sob o impulso do momento, para satisfazer alguma necessidade imediata. Tal formação é criada de acordo com as regras de formação de palavras (RFP) de uma língua; por exemplo, na língua portuguesa, a regra produtiva de formação de verbos a partir de verbos associados ao prefixo des- pode ser acionada a qualquer momento, fazendo surgir formações esporádicas como

13 desnoivar *, desconseguir *, deseleger *, etc (o asterisco indica que tais formas não são atestadas). Já as formações chamadas institucionalizadas são aquelas que, devido às circunstâncias especiais em que foram produzidas, passam a ser familiares à grande maioria daqueles que fazem uso da língua, ou à grande maioria dos falantes pertencentes a determinado grupo linguístico. Conforme Corbin (1987), as palavras construídas apresentam um significado previsível, linguístico, que lhes é conferido pela sua estrutura morfológica; preconiza-se a existência de uma relação entre esse significado e a referência da unidade lexical. Neste sentido, privilegia-se a construção conjunta da estrutura morfológica e da interpretação semântica das palavras derivadas, o que torna as distorções entre forma e sentido apenas aparentes. Observemos com mais atenção tal possibilidade no próximo item. 2.3 A competência lexical Ainda de acordo com Corbin, os falantes das diversas línguas têm um sistema de regras interiorizado que lhes permite produzir e interpretar um número infinito de palavras construídas, inclusive aquelas ainda não conhecidas. Neste sentido, justifica-se a existência de uma competência derivacional, revelada pela elaboração inconsciente de regras, e não pela memorização de unidades lexicais isoladas. Uma palavra construída, da mesma forma que revela uma estrutura interna complexa, dada pela aplicação de uma operação derivacional sobre uma base, também apresenta um sentido composicional, correspondente àquela estrutura formal. A relação entre a base e a operação derivacional realiza-se por meio de uma RFP. As operações categorial, semântico-sintática e morfológica associadas pela RFP garantem a previsibilidade do sentido da palavra construída. As aptidões que os usuários de uma língua expressam através da análise e relacionamento entre palavras bem como da formação de novas palavras correspondem respectivamente aos fenômenos básicos de redundância lexical e produtividade lexical. O primeiro termo é entendido como o estabelecimento de relações sistemáticas entre palavras ou entre conjuntos de palavras morfologicamente complexas; o segundo, como já vimos, é utilizado em referência à possibilidade de formação de novas palavras na língua. Basílio

14 (2007) argumenta que a formação de novas palavras na língua é um processo relacionado mas distinto do reconhecimento de redundâncias morfológicas no léxico. Ou seja, RFPs apresentam em contraparte uma regra de análise estrutural (RAE), mas nem toda RAE tem uma RFP correspondente, o que justifica o fato de que nem toda regularidade lexical reconhecida pelos falantes constitui um processo produtivo na língua. Desta forma, segundo Basilio (1980: 9), a competência lexical de um falante nativo desdobra-se nos seguintes conhecimentos: uma lista de entradas lexicais; a estrutura interna dos itens dessa lista e suas interrelações; e a capacidade de formar entradas lexicais gramaticais novas, rejeitando, obviamente, as agramaticais. Quanto às entradas, é preciso se levar em conta que o falante conhece não apenas o morfema isolado, mas também, separadamente, os produtos das combinações entre eles. Por outro lado, a partir de evidências como a de que o falante conhece, por exemplo, o verbo paquerar, o morfema -dor e o produto paquerador, mas não conhece o produto apelidador, apesar de ter ciência de apelidar e -dor, mostram que também devem fazer parte da lista de entradas lexicais os lexemas, palavras que apresentam raiz, morfema de significação externa, comum a várias palavras de um mesmo grupo lexical. Os macroprocessos de criação das palavras são também importantes quanto à identificação da palavra. Por exemplo, em português, a nominalização dos verbos é comum, assim como é de alta previsibilidade a motivação semântica e não gramatical para a formação de verbos, como na relação magro => emagrecer, na qual o verbo é formado para denotar processo, e não para preencher uma lacuna na classe. É preciso observar, no entanto, que, em relações como cimento => cimentar ou caixote => encaixotar, o significado do verbo não é tão previsível para se entender cimentar não basta conhecer o significado de cimento, mas também para que serve, como é utilizado, etc. A interpretação do verbo é automática a partir do reconhecimento do uso que aquilo representado pelo substantivo tem na sociedade em geral, ou seja, a utilização é que faz deduzir a semântica do verbo, o que ocorre também em uma série de formas em que não há sempre previsibilidade de sentido, como passadeira, a que estão associados os sentidos tapete ou quem passa a ferro. Desta forma, conforme o modelo gerativo, a tarefa da morfologia deveria consistir, primordialmente, na fixação das RFP da língua e na verificação da

15 existência ou não de restrições quanto à sua aplicação. Tal fato, de que as RFPs podem não ser 100% produtivas, pode ser explicado com a distinção entre condições de produtividade e condições de produção, proposta por Basílio (1990), à qual nos dedicaremos no próximo item. 2.4 As condições de produção e de produtividade lexical Considerando-se que base é uma seqüência fônica recorrente, a partir da qual se forma uma nova palavra ( produto ) ou através da qual se constata que uma palavra é morfologicamente complexa, pode-se afirmar que os conceitos de base e produto estão relacionados com a intuição que o falante tem de palavra primitiva e palavra derivada. Criam-se novas palavras com base em palavras já existentes na língua, e não juntando-se raízes a prefixos, sufixos, desinências, vogais temáticas, etc, conforme preconizava o estruturalismo, como mostramos anteriormente. Conforme Basilio (1987: 13-4), as palavras não são formadas apenas por uma simples sequência de elementos constitutivos; elas são também estruturadas em camadas que podem atingir vários níveis. Observemos então os dois conceitos que titulam esta seção. As condições de produtividade têm relação direta com especificações da base e do produto, quanto à categorização, subcategorização, constituição morfológica, traços semânticos, dentre outros. As RFPs estabelecem como possíveis operações morfológicas determinadas, com funções específicas, em certos tipos de base, de acordo com especificações categoriais, sintáticas, semânticas, morfológicas e fonológicas. Nas bases sem restrição determinada, pode haver ocorrência de mais de uma operação morfológica, como mostra o par atestado internação / internamento. Quanto a operações morfológicas de mesma função, há operações mais gerais que outras; por exemplo, substantivos com o sufixo -agem são formados somente a partir de verbos de ação; substantivos com - ção ou -mento são derivados de bases verbais sem restrição semântica, ou seja, as condições de produtividade são diferentes. É importante frisar que a mudança categorial por si só não garante produtividade plena: há diferença entre a mera função de mudança categorial e a mudança categorial com função semântica; por exemplo, em português, a

16 produtividade é absoluta na substantivação de verbos; mas restrita quanto ao acréscimo de -izar a substantivos. Desta forma, a mudança categorial não é relevante para definir produtividade, mas sim a ausência de uma função semântica particularizada. Pode-se então prever produtividade maior para os casos de função de mudança categorial pura e menor produtividade de casos de mudança categorial com função semântica particularizada; mais ainda: produtividade maior em casos sem mudança categorial, mas de semântica geral, em oposição à produtividade menor em casos de mudança categorial com função semântica particularizada. Assim, por exemplo, adjetivos deverbais formados com o sufixo -do são mais produtivos do que aqueles formados com -vel, assim como adjetivos com base nominal formados com -ico e -al são mais produtivos que os formados com - oso e -udo. De acordo com este princípio (da relação produtividade / mudança categorial), prefixos devem ser necessariamente menos produtivos que sufixos. Mas, em termos semânticos, prefixos de semântica mais generalizada podem ser mais produtivos que sufixos, ainda que estes efetuem mudança de classe. O prefixo des- é produtivo com verbos, adjetivos e substantivos. Quanto à noção de expressividade, observa-se que qualquer substantivo ocorre no diminutivo para afetividade; para dimensão pequena, no entanto, há a restrição semântica de tamanho. Pode-se então afirmar que a generalidade de um processo de formação se relaciona com a possibilidade de esse processo extrapolar limites de categoria sintática nas bases. Assim, a produtividade de um processo ou padrão de formação de palavras se liga à sua função semântica em dois pontos: 1º) quanto menor for a especificação da função semântica, mais produtivo será o processo; e 2º) maior será a possibilidade de ele transpor o limite categorial da base. As condições de produção, que vão garantir ou não a existência de produtos reais, devem-se a restrições fonológicas, restrições paradigmáticas (criadas pela opção dos falantes em fazer uso de outras regras ou recursos além de uma determinada possibilidade posta à sua disposição), restrições pragmáticas (criadas pelo fato de a formação prevista não ser relevante), restrições discursivas (relacionadas a características de determinados tipos de discursos), à inércia morfológica, uma espécie de rejeição a novos itens lexicais, quando há condições

17 propícias para isso, ou ao bloqueio, o qual, segundo Aronoff (1976: 43), é a nãoocorrência de uma forma, devido à simples existência de uma outra. Ou seja, de acordo com Basilio (1980:15), a produtividade das regras de formação das palavras é afetada pela própria lista das entradas lexicais já existentes. O discurso literário, tema desta dissertação, conforme Cardoso (2006:11-22), pode abarcar ainda uma outra forma de criação lexical, fundada sobre a pesquisa da expressividade da palavra para traduzir idéias não originais de uma maneira nova ou para exprimir de forma inédita uma certa visão pessoal do mundo. Nele, as condições de produtividade e de produção atuarão de forma própria, conforme mostraremos quando da análise do corpus de O Coronel e o Lobisomem, mais à frente. Guilbert, trazido por Cardoso (2006), afirma que a criação literária é ligada à originalidade profunda do indivíduo falante, à sua liberdade de expressão, à sua faculdade de criação fora dos modelos conhecidos ou contra eles. Percebe-se muitas vezes a utilização de um item lexical que carece de aceitabilidade não dicionarizado e/ou relacionado a um processo não produtivo de forma absolutamente proposital com o objetivo de frustrar expectativas e surpreender. Para acompanharmos tal processo em O Coronel e o Lobisomem, é preciso, primeiramente, refletir sobre quais seriam as análises morfológicas postas à disposição para as formações sobre as quais nos debruçaremos nessa obra. Este é tema do próximo capítulo.