FESTAS CATÓLICAS EM BELO HORIZONTE: ANÁLISE HISTORIOGRÁFICA-ETNOGRÁFICA DOS PRIMEIROS ANOS DA CIDADE



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1 FESTAS CATÓLICAS EM BELO HORIZONTE: ANÁLISE HISTORIOGRÁFICA-ETNOGRÁFICA DOS PRIMEIROS ANOS DA CIDADE Wanessa Pires Lott Centro Universitário Newton Paiva/MG Centro de Estudos da Religião Pierre Sanchis/UFMG wanessalott@hotmail.com 1. Introdução As festas se apresentam como um objeto de estudo de diversas áreas do conhecimento dentre as quais destaco neste trabalho a história e a antropologia. Mesclando as duas disciplinas, em seus aspectos conceituais e metodológicos, procuro não chegar a um conceito de festa para a cidade de Belo Horizonte e sim buscar possibilidades de pensar as festas católicas da/na cidade. Para tal, delimito o recorte temporal entre a festa de inauguração da capital de Minas Gerais 12 de dezembro de 1897 e o Centenário da Independência do Brasil 07 de setembro de 1922. Como inspiração para pensar os momentos festivos, trago o conceito de cena de Crapanzano (2005). A cena afasta a idéia de uma realidade suprema e primeira, finita de significados que impede os questionamentos e a contemplação científica. Remete a uma refração da situação objetiva sem que haja a anulação da realidade objetiva que está contida na cena, podendo, no entanto se alterar de acordo com o modo como a situação for estruturada. A realidade contida na cena se torna uma experiência visionária de modo a lançar sombras sobre a própria realidade objetiva. Explicada a base teórica, inicio esta escritura com uma breve apresentação da cidade. Em seguida analiso as festas católicas da/na Belo Horizonte do final do século XIX início do século XX. O trabalho de campo foi realizado nos periódicos que compõem a

2 Coleção Linhares Digital CLD, esta reúne as publicações circulantes em Belo Horizonte entre o final do século XIX e 1956. 2. A cidade de Belo Horizonte Cidade criada aos moldes das elites políticas mineiras, Belo Horizonte foi construída entre 1894 e 1897 como símbolo da República no Brasil. Planejada para ser um novo centro intelectual, foco irradiador de civilização, ordem e progresso, previa para o século XXI 200.000 habitantes, no entanto a cidade comporta hoje quase três milhões e meio de habitantes. A construção de uma cidade planejada no país foi uma inovação que refletia na estrutura urbana. A capital foi segmentada em três âmbitos: uma área rural para o suprimento coletivo, que seria ocupada em sua grande maioria por estrangeiros; uma área suburbana no entorno da Av. do Contorno e uma área urbana que se ao espaço interno dentro da Av. do Contorno. Esta última privilegiava as edificações voltadas para o poder civil e moradas para a população. A Igreja Católica também tinha seu espaço, mas em um plano geograficamente abaixo do centro do poder laico da cidade. Este, até pouco tempo ainda se encontrava na Praça da Liberdade, espaço nobre com edificações majestosas que eram ocupadas pelas Secretarias de Estado. No entanto, apesar do planejamento cuidadoso, o que se viu não seguiu as propostas urbanísiticas, pois o crescimento urbano da zona periférica para o centro desmoronou a utopia de cidade ideal cunhada pelos ideais republicanos. Pretendia-se implantar a cidade a partir do centro em direção a periferia (...) E Belo Horizonte cresceu no sentido oposto, da periferia para o centro, num processo que se repetiu em inúmeras cidades planejadas no Brasil (MONTE- MÓR, 1994:15). O aparente fracasso do ideal republicano pela expansão populacional, ainda se mostrava refletido em vários aspectos da cidade. As disposições dos prédios que abrigavam o

3 poder político ganharam destaque em detrimento das Igrejas Católicas, que em épocas anteriores ocupavam os lugares mais altos nas cidades coloniais mineiras pelo poder secular que exerciam. Havia uma nítida necessidade de distinguir-se da antiga ordem colonial, impondo urbanisticamente uma mudança, um modo de demarcar a emergência de um tempo de alteração social (JULIÃO, 1996). Ruas e praças também representam a nova era republicana, ganhando nomes de estados brasileiros, tribos indígenas, personagens e datas representativas da história oficial do país, remetendo ao sentimento nacionalista inserido no ideal positivista da República. O investimento simbólico (...), a criação/determinação dos espaços de memória, com a construção de monumentos espalhados pela cidade, neste caso, a cidade de São Paulo. Sabemos que, com as mesmas características, em outras capitais brasileiras, como Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte, também foram sacralizadas datas, heróis e lugares de memória (CURY, 2002: 30-31). A modernidade, a urbanização e o planejamento se opuseram às velhas formas de Vila Rica, antiga capital mineira e atual Ouro Preto. O projeto de Belo Horizonte se distanciava de qualquer experiência urbanística mineira sendo, por conseguinte, novas formas de sociabilidade que a princípio se mostraram incipientes. Na época de sua inauguração Belo Horizonte expressava como uma cidade fria e monótona, onde os habitantes não se encontravam nas ruas, deixando estas vazias. Exigências urbanísticas seletivas dificultam o preenchimento de vazios na área urbana pela iniciativa particular, apresentando-se assim a cidade... quase toda por se calçar... ruas e avenidas quase desertas com grandes intervalos na construção predial... árvores, nenhuma, gente, pouquíssima (SALGUEIRO, 1982, p.115). Tais impressões de frieza do espaço urbano da cidade refletem o tipo de sociabilidade que se constrói nos primeiros tempos de Belo Horizonte: extremamente segmentadas. No entanto, encontros a céu aberto e festividades locais encontravam espaço no largo da Igreja da Boa Viagem, na praça da Liberdade e no Parque Municipal.

4 3. Belo Horizonte festiva Em uma primeira percepção, espera-se que a religiosidade não ocupe um lugar de destaque na cidade, pois a mesma procurava refletir os aspectos republicanos em detrimento dos conhecidos valores católicos presentes da antiga capital Vila Rica atual Ouro Preto. Em contra partida, ao me debruçar nos jornais da época, identifico grande destaque para as festas em prol da Igreja Católica, o que me levou a delimitar um campo historiográfico-etnográfico extremamente rico e questionador para pensar como as festas religiosas são apresentadas pelos jornais de Belo Horizonte. Pensar as festas por meio dos periódicos me leva ao momento festivo através da cena construída por um outro que vivenciou a festa. Sendo assim, o meu olhar segue a lente da construção da cena jornalística. Com este método de análise é possível buscar cenas que as festas apresentam na/da cidade a partir de dois olhares: o construído pelos periódicos e o construído por mim como pesquisadora. Além disso, o método e campo historiográfico-etnográfico escolhido questiona uma certa visão estreita do trabalho acadêmico que dita as fontes primárias parecem exclusivas aos historiadores e o trabalho de campo como exclusivo aos antropólogos. No entanto, ao examinar a trajetória da história e da antropologia, percebo que há um grande número de pesquisas no âmbito da antropologia que usam fontes históricas e técnicas distintas da observação participante. A relação canônica entre antropologia e trabalho de campo não deve excluir outras possibilidades metodológicas, apesar do trabalho de campo ser considerado por muitos como o ritual de passagem obrigatório para os antropólogos (GIUMBELLI, 2002). Após esta pausa metodológica, retomo as festas na esfera do católico inicialmente pelo mês de Maria, o mês das coroações. Segundo o viajante Camarate, os belo-horizontinos tinham um

5 suavíssimo e piedoso entretenimento do Mês de Maria, na Matriz da Boa Viagem, todas as noites, às 7 horas, entre cânticos, ao som de um harmônio, oficiando o pároco F. Martins Dias. Cada noite uma menina coroava a Virgem Santíssima e outras meninas atiravam-lhe flores, todas vestidas de branco, engrinaldadas (apud BARRETO, 1995: 110). Indo ao encontro com a descrição de Camarate, o periódico Aurora anuncia o festejo, que por sua vez, traz o tom da afirmação social ao nomear a menina que corou a santa. Cantam os fieis contemplando o altar que se levanta ali a um dos lados, altar magnífico, ornado com profusão de flores, onde se vê a Virgem Maria, coroada naquele momento por Célia, pela gentil Célia, que está debaixo de uma chuva de pétalas perfumosas, toda sorridente, plena de felicidade por ter, com uma linda coroa cingindo a fronte augusta da rainha dos anjos (AURORA, 1897: 02). Nas páginas seguintes do mesmo periódico as referências as festas do mês de Maria se matem. Esteve neste lugar, tendo pregado nas solenes festas celebradas na arrematação do mês de Maria, o reverendo padre Joaquim Silveiro de Souza, ilustrado sacerdote (AURORA, 1897: 04). O periódico Flammula, também destaca as participantes da festa: Na matriz da Boa Viagem, coroarão hoje a V. Santíssima, as meninas Maria da Conceição Moreira, Maria Amélia e Célia Catarino (FLAMMULA, 1907: 02). Há uma nítida hierarquização nas celebrações de coroação. Por exemplo, as meninas que coroam a Virgem Maria são mais importantes que as que entregam as palmas, que por sua vez, são mais importantes que as meninas que apenas oram ao redor da Santa. Trata-se aqui da manutenção de mais uma reminiscência dos tempos de Vila Rica: a hierarquização social epifanizada por meio de festas. O grande número de notícias sobre de festas religiosas nos periódicos belo-horizontinos me remete à questão da modernidade. Teoricamente, nas sociedades modernas a organização social não se pauta mais sob a ótica religiosa, mas pela racionalidade técnico-científica. Tal mudança não significa o fim da religião, mas o surgimento de uma forma singular de politeísmo, onde deuses e profetas cedem lugar aos valores

6 seculares. Contudo, percebo como Belo Horizonte apresenta sua religiosidade nos jornais, vinculamos muito mais às práticas religiosas do que às práticas seculares. No âmbito público e privado a religião influencia a cidade construindo festas fervorosas. Corroborando com esta premissa, busco os estudos realizados em Belo Horizonte no final do século XX pelo Professor Pierre Sanchis. Este identifica que os surtos religiosos contemporâneos se inscreveriam, apesar das aparências, como a projeção criativa da mesma lógica secularizante, em contexto civilizacional diferente de um lado, de outro definir-se-iam ao contrário como uma volta, um retorno da religião (SANCHIS, 2001: 29) (grifo do autor). Aplicando esta dedução à formação histórica de Belo Horizonte, pode-se pensar que estes movimentos encontraram suas bases ainda no início da cidade ou talvez, os surtos religiosos sejam uma continuidade da religiosidade do início do século. Deixando de lado tais especulações, o que posso afirmar é a forte presença do religioso, principalmente católico, na capital. Religioso este que se apresenta muito mais aos moldes das festas barrocas, deixando as práticas seculares nos rodapés das cenas construídas pelos periódicos. Neste sentido, a modernidade belo-horizontina epifaniza o paradoxo dos preceitos modernos: o concomitante distanciamento e a simultânea aproximação com os valores tradicionais. A verdade da modernidade é que ela não é jamais mudança radical ou revolução, mas que sempre entra em implicação com a tradição, num jogo cultural sutil, num debate onde as duas estão ligadas, num processo de amálgama e de adaptação. Não se trata de ruptura, mas de uma dinâmica do amálgama (BAUDRILLARD, 1982: 7). Ressalto que neste texto a tradição está sendo entendida como aquilo que é transmitido de maneira viva, por meio da palavra, da escritura ou das posturas, particularmente no âmbito religioso. Ou seja, a forma de transmissão dos valores religiosos em Belo Horizonte se faz tanto pelas festas vividas como também nas cenas construídas pelos

7 jornais. Como exemplo, deixo de lado a celebrações do mês de maio e trago à tona a cena da Semana Santa construída no jornal. Ensinava então que era o Pão da vida, e que comendo-o se viveria, que se não comesse a carne do Filho do homem ou não se bebesse seu sangue, não se teria a vida; que sua carne era o verdadeiro alimento e o seu sangue a sua verdadeira bebida, que aquele que comia a sua carne e bebia o seu sangue, habitava nele. O povo escandalizado, afastava-se perguntando com ironia como é que ele daria a sua carne de comer. O como eil-o. Esta cena contém toda a religião de Jesus (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 1907: 01). A cena apresenta o mistério e a magia em torno da religião cristã, que desde a Idade Média foi sendo ensombreado pela Igreja secular. Antes da Reforma, a Igreja atribuía, por exemplo, às preces um poder de encantamento que até mesmo expulsava demônios do corpo de jovens e uma grande eficácia mágica às imagens de santos e às relíquias sagradas. Conferia quase que um culto totêmico aos santos de cada paróquia que, por sua vez, eram incumbidos de atender a pedidos específicos. Na Belo Horizonte do início do século XX os santos também conotam esta relevância e as festas em torno dos padroeiros eram recorrentemente anunciadas. Temos hoje a registrar a notícia da salutar e atraente devoção das Quarenta Horas, a se realizar proximamente, em nossa igreja, onde esta solenidade terá particular brilho, como nos anos anteriores, pelo profundo respeito e grande afluência de devotos do S.S. Sacramento, os quais terão mais uma vez oportunidade de atestar bem alto sua religiosidade e sua fé robusta como devotos também de São José, o padroeiro e principal guarda dos destinos do Calafate (O ARAUTO, 1922: 02). Outro periódico convida para os festejos de Nossa Senhora das Dores. Sexta-feira, às 8 da manhã missa e cânticos do estilo, e acompanhamento de harmonium. Todos os devotos de Nossa Senhora das Dores são convidados a assistir em número avultado a essa tocante cerimônia, tão popular no Brasil (ACTUALIDADE, 1906: 02) Na sequência do convite, há a programação da solenidade.

8 Todos os dias da missão, haverá às 5 horas da madrugada, missa com prática, às 8 horas, outra missa com conferência, às 2 horas da tarde catecismo popular para os meninos e meninas, às 7 horas da noite, conferência, terço e sermão da penitência. Todas as noites às 9 horas tocará o sino, chamado dos pecadores, rezando-se nessa hora 5 Padre Nosso e 5 Ave Maria pela conversão dos pecados (ACTUALIDADE, 1906: 02). A escolha do padroeiro de uma igreja também guardava atenção especial. Recente discussão sobre a escolha do santo que deve servir para padroeiro da nova igreja da Floresta (O ARREPIADO, 1921: 02). Mais tarde fica-se sabendo que o santo padroeiro é de fato uma santa, Nossa Senhora das Dores. Fica-se igualmente sabendo que para a construção do templo foi realizada uma festa junina. Em nome da comissão construtora agradece o infra assinado a todos os que concorreram para os festejos tradicionais de São João em favor da construção da Igreja de Nossa Senhora das Dores na Floresta, declinando a publicação do nome de qualquer das pessoas que mais dedicaram, para não sofrer a modéstia de ninguém, mas salpicando a maior benção de Deus, sobre todos os benfeitores. Padre Severino Severens (FLORESTA-JORNAL, 1922: 07). As festas em prol das construções das igrejas eram comuns nos primeiros anos de Belo Horizonte. Assim como a igreja de Nossa Senhora das Dores, a capela de Nossa Senhora do Rosário promovia tais festejos. Por extremo esforço da esposa do Sr. Coronel Felippe de Mello, o espetáculo da companhia equestre Zovetti & Santos foi dado a 22 deste, em benefício da Capela do Rosário. Tocou durante a função, a banda de música da polícia (BELLO HORIZONTE, 1898: 02). No mesmo jornal, há a chamada para outra festividade em benefício da capela. Para a aquisição de um harmônio e paramentos que ainda faltam, para isso vai realizar-se a 3 de julho futuro um leilão de prendas, que terá o lugar no adro respectivo às 7 horas da tarde, depois da primeira benção, abrilhantado pela excelente banda de música do primeiro batalhão de polícia que foi graciosamente cedida. Às excelentíssimas famílias pede-se o obséquio de oferecerem prendas (BELLO HORIZONTE, 1898: 04).

9 E até mesmo a Matriz da capital, contava com a festa para coletar fundos para sua construção. No Parque Municipal, nos dias 11 e 12 do corrente, realizaram-se os festejos que vinham sendo bastante anunciados. Desnecessário é dizer que foi uma festa digna de nota, porquanto as gentis senhoritas e as senhoras que a compunha não deixaram nada a desejar, pois que o concurso prestado, para as barraquinhas produzissem, demonstrou a boa vontade das mesmas. E ainda mais. A cada momento ouvia uma bem ensaiada orquestra, composta de numerosas e belas mocinhas da nossa elite. Também lá compareceu a banda do 1º Batalhão da Força Publica. Terminada que foi a encantadora festa, verificam-se os lucros fabulosos que eram destinados à construção da Matriz de Boa Viagem (BEIJA-FLOR, 1914: 02). A Matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem utilizava recorrentemente do artifício de festas para a arrecadação de verbas para a sua reforma que, por sua vez, perdurou por várias décadas, sendo finalizada em 1936. Entretanto, as constantes reformas não tiraram a importância da Matriz. Desde o início do século XVIII, ainda como Arraial do Curral D El Rey, a edificação ocupa o mesmo local onde está até os dias de hoje: o quarteirão próximo à Avenida Afonso Pena, uma das principais da cidade 1. A construção religiosa seguia o estilo arquitetônico setecentista e foi responsável pela formação do povoado local, sendo o prédio de maior importância do arraial: o templo era o lugar do culto, da oração, local privilegiado da manifestação da fé e também ponto de encontro do arraial, pois em torno dele é que as pessoas se reuniam e se confraternizavam nos dias de festa (ALMEIDA, 1996: 242). 4. Considerações finais 1 Não obstante a importância da Matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem, como dito, se compará-la com a localização das edificações civis do poder público, a matriz se coloca em um espaço geograficamente abaixo.

10 Não obstante as diversas cenas festivas católicas de Belo Horizonte, a cidade também apresentava em seus primeiros anos festas cívicas indo ao encontro da perspectiva republicana da cidade e inúmeras festas particulares. Todas estas se transformaram em ricas cenas que aguçam a curiosidade de pesquisadores. Entretanto, optei em trabalhar neste momento apenas parte das cenas festivas da religiosidade católica. Destas destaco a reminiscência barroca das festas na modernidade. A assertiva de vários autores como, Montes e Perez, encontra mais um exemplo na cidade de Belo Horizonte. Ao perceber que os valores da tradição se matem em espaços de modernidade leva-me a afirmar que a cidade de Belo Horizonte está na esfera da liminaridade. A cidade, construída em prol dos valores laicos da modernidade, não abandona os tradicionais valores religiosos. Tal posicionamento da cidade epifanizado nas festas reforça a ideia que, como todo rito, a festa não é finita em seus objetivos primeiros nem a sua finalidade é argumento suficiente para compreendê-la. Por isso, não obstante as possibilidades de interligar a festas à teorias acadêmicas, é relevante ressaltar que a festa em si é um momento possui uma dimensão onírica, ela trabalha com emoções. Por mais que o pesquisador tente, ele nunca vai conseguir apreendê-la sobre seu aspecto de sonho, nem vai conseguir fazer com que o leitor experimente a efervescência daquele momento (CHANON, 2002: 16 e 17). As questões que levanto em torno das festas católicas apenas encontram respostas provisórias e frágeis. O momento vivido da festa é um momento de vacuidade, que tem inúmeras possibilidades. Aliando a este, o momento posterior da escrita seja pelos periódicos e/ou de análise seja pelos pesquisadores apresentam outras inúmeras possibilidades de cenas festivas. Assim sendo, as indagações dirigidas às cenas festivas de um tempo outro encontram soluções tão, ou mais, ensombreadas que as conduzidas à festa em si. Apesar de uma tentativa de responder questões sobre festas belo-horizontinas, encontro ainda mais

11 sombras que me leva a corroborar com a Professora Lea Perez: que a festa não é somente boa para dela se participar, é também boa para pensar (PEREZ, 2002: 18). 5. Referencias ALMEIDA, Marcelina Catedral da Boa Viagem de Belo Horizonte: fé, modernidade e tradição DUTRA, E. (Org.) BH: Horizontes Históricos. Belo Horizonte: C/Arte. 1996. BARRETO, Abílio Belo Horizonte: memória histórica e descritiva Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1995. BAUDRILLARD, Jean Modernidade. Biennale de Paris. La modernité ou l esprit du temps. (Tradução Léa Perez e Francisco Coelho dos Santos) Paris, Editions L Equerre, 1982. CHANON Carla Simone. Festejos Imperiais: festas cívicas em Minas Gerais 1815-1845 Bragança Paulista: EDUSF, 2002. CRAPANZANO, Vincent. A cena: lançando sombra sobre o real. Mana, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, Outubro de 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s010493132005000200002&l ng=en&nrm=iso>. Acesso em: 12 de Dezembro de 2008. CURY, C. Políticas Culturais no Brasil: subsídios para a construção de brasilidade Tese de doutorado. Universidade Estadual de Campinas / Faculdade de Educação. 2002. GIUMBELLI, Emerson. Para além do trabalho de campo: reflexões supostamente malinowskianas Revista Brasileira de Ciências Sociais v.17, n.48, 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v17n48/13951.pdf. Acesso dia 02 de junho de 2009. JULIÃO, Letícia. Belo Horizonte: itinerários da cidade moderna. DUTRA, E. (Org.) BH: Horizontes Históricos. Belo Horizonte: C/Arte. 1996. MONTE-MÓR, R. L. Belo Horizonte: a cidade planejada e a metrópole em construção. Belo Horizonte Espaços e tempos em construção. Belo Horizonte: CEDEPLAR/PBH. 1994. PEREZ, Lea Freitas Antropologia das efervescências coletivas PASSOS, Mauro (org) A festa na vida. Petrópolis: Vozes, 2002.

12 SALGEIRO, H. O ecletismo em Minas Gerais: Belo Horizonte 1894-1930. FABRIS, A. (org). Ecletismo na Arquitetura Brasileira. São Paulo: Nobel/Edusp. 1982. SANCHIS, Pierre. Desencanto e formas contemporâneas do religioso. Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 3, n. 3, outubro 2001. Disponível em http://www.seer.ufrgs.br/index.php/cienciassociaisereligiao/article/viewfile/2168/889 5.1 Periódicos 2 ACTUALIDADE, 9 de Março de 1906 AURORA, 1 de Junho de 1897 BEIJA-FLOR, 19 de Abril de 1914 BELLO HORIZONTE, 26 de Junho de 1898 DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 28 de Março de 1907 FLAMMULA, 16 de Maio de 1902 FLORESTA-JORNAL, 13 de Agosto de 1922 O ARAUTO, 24 de Fevereiro de 1992 2 Todos os periódicos compõem a Coleção Linhares Digital: COLEÇÃO LINHARES DIGITAL Belo Horizonte: Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais; Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Minas Gerais, 2005. Disponível em: http://linhares.eci.ufmg.br/index.php?status=3. Vários acessos.