INSTITUTO DE CULTURA ECLESIAL (ICE)

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Transcrição:

1 INSTITUTO DE CULTURA ECLESIAL (ICE) FREI PEDRO CESÁRIO PALMA (Elaboração) DENILSON APARECIDO ROSSI (Correção e Organização) CRISTOLOGIA CURITIBA / PR 2008

2 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 1 O MISTÉRIO PASCAL: PONTO DE PARTIDA DA CRISTOLOGIA 2 O ACESSO AO JESUS DA HISTÓRIA 3 ELEMENTOS CENTRAIS DO NÚCLEO HISTÓRICO DE JESUS 4 A FÉ CRISTOLÓGICA DA IGREJA REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS INTRODUÇÃO Há três maneiras de pensar e falar sobre Jesus Cristo. Duas delas são incompatíveis com a fé cristã: Jesus Cristo visto como um ser humano qualquer, destituindo-o de sua divindade, e Jesus concebido como Deus, esquecendo-se de sua humanidade. A fé cristã afirma ao mesmo tempo a divindade e a humanidade de Jesus, vê-o como Deus que se fez homem, como homem que é Deus, com o crucificado que é ressuscitado. Jesus, um homem qualquer A maioria dos historiadores, jornalistas, repórteres, estudiosos da religião, romancistas, religiosos gnósticos, tratam Jesus como um homem qualquer. Vêem Jesus como o fundador de uma nova religião, o reformador da religião judaica, um profeta de Israel, um místico, um conhecedor dos mistérios religiosos, um contestador social, um líder político, um homem bom e simples, um amigo do povo, um homem santo, um homem possuído por Deus... Não falam nem escrevem como cristãos, como pessoas de fé. Por isso, não pressupõem a divindade de Jesus de Nazaré. Às vezes até a negam. Por negarem ou menosprezarem a divindade de Jesus, não aceitam as verdades de fé cristã. Todas elas se relacionam com a pessoa divina de Jesus Cristo: a preexistência de Jesus na eternidade, a existência de um só Deus em três Pessoas, a encarnação de Deus e a concepção virginal de Maria, a virgindade perpétua de Maria, a consciência divina e messiânica de Jesus, a morte redentora, a ressurreição, a oferta divina da salvação em Cristo, a centralidade e unicidade de Jesus Cristo para a salvação de toda a humanidade, a origem divina e a santidade da Igreja, a santidade dos meios de salvação, da Palavra e dos sacramentos, a santidade dos mandamentos e da moral cristã, a predestinação de todos à comunhão com Deus, etc. Como se percebe, a rejeição da divindade de Jesus leva ao desmoronamento de todo o arcabouço do credo cristão. Esta maneira de pensar e de falar sobre Jesus está muito presente nas produções da mídia, da religião, da política e da ciência de hoje. Reportagens nas revistas e na televisão, filmes, romances, histórias de Jesus, entre outras produções culturais, pretendem ocupar espaço no mercado, satisfazer curiosidades e futilidades descomprometidas com o engajamento religioso e com a dimensão social

3 da prática religiosa. Não estão interessadas na dimensão divina de Jesus, nem na confissão da fé cristã. Muitas expressões religiosas atuais como o espiritismo, a maçonaria, os movimentos gnósticos e esotéricos, a Nova Era, entre tantos outros, embora apreciem os ensinamentos de Jesus de Nazaré como mestre espiritual, não reconhecem sua divindade. Alguns movimentos sociais e políticos, com fortes motivações para a transformação da realidade, recorrem à crítica profética de Jesus à sociedade, vendo-o apenas como um mestre na contestação política e na instauração de uma nova ordem social e não como o único divino salvador. Do mesmo modo, muitos escritos científicos nas áreas da história, psicologia, da sociologia, das ciências da religião, entre outras, por causa dos pressupostos do método científico, não se interessam pela divindade de Jesus. Essas produções literárias, científicas, políticas, religiosas, artísticas ou jornalísticas, despojam a pessoa de Jesus de toda interpretação que sobre ele foi dada pela Igreja no decorrer dos dois milênios do cristianismo. Segundo os autores dessa tendência, a interpretação da Igreja está marcada por muita mitologia, jogos simbólicos, fantasias, crendices, lendas. Despojando Jesus de todo esse arcabouço interpretativo, chegaríamos a Jesus de Nazaré tal e qual, pura e simplesmente homem. Ainda que dotado de qualidades espirituais peculiares. É preciso reconhecer que há valores nesse modo de pensar e de falar sobre Jesus. Há, aí, uma preocupação em resgatar a realidade concreta, histórica, social, política, em uma palavra, humana, da pessoa de Jesus Cristo. Como veremos adiante, a fé cristã também afirma a humanidade de Jesus. O credo cristão tem como base a existência histórica do homem de Nazaré, com suas opções e causas, seus conflitos e posicionamentos, com sua vida e morte. Mas, a negação da divindade de Jesus Cristo, como foi dito acima, põe abaixo todo o conteúdo e o sentido da fé cristã. Se Jesus não é Deus, ele não pode ser o nosso salvador. Se Jesus não é Deus, a Igreja por ele fundada é apenas uma instituição humana, uma entidade filantrópica, uma agência de serviços religiosos. Se Jesus não é Deus, todas as mediações religiosas do cristianismo (sacramentos, ritos, celebrações, orações, mandamentos, virtudes, etc.) são apenas invenções humanas. Se Jesus não é Deus, então não vale à pena segui-lo, dar a vida por ele, acreditar na sua Palavra, orar a ele, dedicar-se ao anúncio e à prática do seu Evangelho. Jesus Cristo: um Deus nas alturas Embora seja mais difícil conceber Jesus de Nazaré apenas como Deus, por causa da evidência de sua humanidade (seu corpo, sua inserção na geografia e na história humanas, e, mais concretamente, seus sofrimentos e sua morte), há pessoas e grupos, no interior do cristianismo que insistem demasiadamente na divindade de Jesus, a ponto de esquecerem sua humanidade. Este é o modo de tratar Jesus próprio de um grande número de movimentos de igrejas cristãs, notadamente as de caráter fundamentalista, que teimam em realçar as palavras e os fatos extraordinários de Jesus. Insistem no miraculoso e, às vezes, no fantástico. Não se dão conta de que agindo assim, tratam da história de Jesus de Nazaré como se fosse uma peça de teatro, escrita desde toda a eternidade por Deus, dirigida pelo Pai, protagonizada por um homem que faz o papel de Deus na história humana. Jesus seria visto como o ator de uma tragédia, uma encenação terrena que reflete a luta sobrenatural entre Deus e o diabo. Jesus seria uma

espécie de marionete, um fantoche, um robô. Desarticulado e desconectado de inserções históricas e sociais, Jesus é tratado como uma idéia, um ideal, um mito, uma representação, um simples conceito abstrato. Embora não neguem teoricamente a humanidade de Jesus, acabam por negá-la na prática. Por menosprezarem as conseqüências práticas da humanidade de Jesus, não sabem articular importantes temas da cristologia e da vida cristã. Têm dificuldades para entender e trabalhar realidades concretas de Jesus: as tentações, as crises, as angústias e aflições, o desenvolvimento de sua consciência humana, as mudanças de percurso, o crescimento na fé, o despertar para sua consciência divina e para sua missão messiânica, os condicionamentos históricos e culturais de sua mensagem e de sua prática, os conflitos com os donos da política e da religião da época, a tomada de posição ao lado dos pequenos e pobres, as mediações concretas de sua obra evangelizadora, a ignorância sobre a vinda definitiva do Reino, as dores e o sofrimento, o grito de abandono e a morte de cruz. Essas realidades tão humanas da vida de Jesus são vistas apenas como práticas pedagógicas: Jesus fez de conta que... para nos ensinar como.... A humanidade de Jesus seria uma peça teatral, uma paródia, uma farsa. Como se pode constatar, a rejeição prática da humanidade de Jesus, além de contradizer dados concretos e evidentes dos evangelhos, torna sua pessoa distante e desligada da realidade humana cotidiana e, portanto, leva ao desmoronamento de todo arcabouço da moral e da espiritualidade cristãs. Essa maneira de pensar e de falar sobre Jesus está muito presente em determinados movimentos e comunidades cristãs da atualidade que insistem no elemento miraculoso da salvação oferecida por Jesus Cristo. Apresentam, a religião cristã, como caminho de solução para todos os problemas: doenças, desemprego, crises conjugais, problemas afetivos, desordens morais, vícios, etc. Na linha da magia, Jesus é salvador na medida em que expulsa os demônios que estariam impedindo a felicidade dos fiéis. A teologia da prosperidade vê Jesus como salvador na medida em que compensa com bênçãos e soluções de problemas, às pessoas que, abnegadamente, fazem doações à sua igreja-empresa. Segundo uma recorrente escatologia da retribuição, Jesus está para voltar, em sua segunda vinda, de modo apoteótico e triunfante, para intervir na realidade e arrebatar aos céus os seus eleitos, condenando os perversos ao fogo dos infernos. Para uma veemente teologia do sacrifício, Jesus salva os que renunciam aos prazeres do mundo, com jejuns e penitências merecedores das boas graças do céu. Para os que propõem a fuga do mundo, Jesus salva os que se refugiam nas sacristias em uma espiritualidade intimista e interiorista. Segundo o fundamentalismo religioso cristão ou um perigoso integrismo católico, Jesus salva somente os que se inscrevem na única Igreja verdadeira. Essas expressões cristãs despojam a pessoa de Jesus de toda inserção na história, de todo engajamento no mundo. Desencarnam Jesus. Desligam Deus das realidades mundanas. Despojando Jesus de sua encarnação histórica e social, pretendem chegar ao Deus único, espírito perfeitíssimo, senhor absoluto, ser supremo. Ainda que estranha e paradoxalmente marcado por vicissitudes humanas e históricas. Há valores, também, nesse modo de pensar e de falar sobre Jesus. Há, aí, uma preocupação em retomar e relançar o fato inédito e inaudito da presença e da ação de Deus na história humana. Como veremos adiante, a fé cristã também afirma a divindade de Jesus. Mas a negação da humanidade de Jesus Cristo põe abaixo o conteúdo e o sentido da fé cristã, naquilo que implica a prática de uma moral e de 4

5 uma espiritualidade específicas, ou seja, de um modo novo e diferente de ser humano. Se Jesus não é verdadeiramente humano em tudo, nas tentações e fraquezas, nos limites e condicionamentos, nos sofrimentos, crises e cruzes, próprios do ser humano, ele não pode ser o nosso salvador. Se Jesus não assume nossa real e concreta humanidade, então não somos real e totalmente redimidos. Se Jesus não assume a história humana com seus conflitos e suas exigências de posicionamentos e opções, suas mediações culturais e sociais, seus processos de desenvolvimento e de amadurecimento, então, nossa humanidade não é verdadeiramente transformada e libertada daquilo que ela tem de pecaminoso. Se Jesus não é um ser humano, então, não é possível segui-lo, dar a vida como ele, praticar a sua Palavra, dedicar-se à transformação das estruturas e à conversão das pessoas na linha de seu Evangelho Jesus, o Homem Deus Jesus de Nazaré é a presença e a ação de Deus em nossa história. É desse modo que os cristãos concebem e anunciam Jesus Cristo. Trata-se de um paradoxo, de uma aparente contradição. Ou, como disse São Paulo, um escândalo para os pagãos, uma loucura para os judeus. Afirmar que Jesus de Nazaré, o crucificado, é o Senhor ressuscitado, o Cristo de nossa fé, é, para nós, cristãos, a sabedoria de Deus (cf. 1Cor 1,20-25). Este é o núcleo central e específico da fé cristã. É nisso que os cristãos se diferenciam de todas as outras religiões. Nós cristãos cremos num homem que é Deus, num crucificado que ressuscitou. Está claro que se ele é Deus, é porque ele já era Deus, desde sempre, desde toda a eternidade. Cremos, portanto, num Deus que se fez homem. Nós cristãos cremos num homem que amou até o fim (Jo 13,1), que pagou com a morte a promoção e a defesa da vida dos marginalizados, que morreu por amor de seus irmãos, que foi vítima inocente na mão de gente ímpia (At 2,23). Essa nossa fé é confirmada pela ressurreição. Aquele que tinha tanto amor para dar (Jo 15,13), que era o Senhor da vida (Jo 10,18), que veio trazer vida em abundância (Jo 10,10) não podia permanecer na morte. Tão humano assim, só pode ser Deus. A morte não tinha poder sobre ele (Rm 6,9). Ao assumir a morte, ele a derrotou. O crucificado ressuscitou. Ao assumir os pecados de seus assassinos e de todos os seres humanos, ele os perdoou e os queimou no fogo de sua misericórdia. Tão humano assim, só Deus pode ser. Quem ressuscitou foi aquele que se predispôs à morte. O ressuscitado não caiu do céu, não é um mito, um ator de uma peça de teatro, mas é alguém que morreu por uma causa, na fidelidade a um projeto, por causa do Reino que anunciou e iniciou. A fé cristã se baseia neste escândalo: este homem é Deus, este Deus fez-se homem. Crucificado-ressuscitado, homem-deus. Trata-se de uma identidade na contradição. Jesus de Nazaré é o Cristo de nossa fé. O Senhor da história, o Cristo de nossa fé, nosso único Salvador, o Deus de nossas vidas, é Jesus de Nazaré. Trata-se de uma identidade: o morto está vivo, o crucificado é o ressuscitado, este homem é verdadeiramente Deus. Mas na contradição: como pode um homem ser Deus? Como pode um morto ressuscitar? É precisamente este escândalo, este paradoxo, esta tensão, o centro de nossa fé. É o que desenvolveremos a seguir.

6 1 O MISTÉRIO PASCAL: PONTO DE PARTIDA DA CRISTOLOGIA Morte e ressurreição, eis aí o centro da fé cristã. Nós cristãos afirmamos que Jesus de Nazaré morreu. Mas também afirmamos que ele ressuscitou. A passagem de Jesus de Nazaré da morte para a vida é o mistério central de nossa fé. É o mistério pascal, ponto de partida da fé explícita em Jesus Cristo e da reflexão cristológica, a começar com as cristologias do Novo Testamento. Embora se fale de cristologia, no singular, há, com efeito, diversas cristologias, porque cada uma delas faz uma abordagem do mesmo Jesus de Nazaré a partir de óticas e preocupações diferentes. Essa diversidade de cristologias, que já se faz presente no Novo Testamento, se revela uma riqueza para a fé cristã. 1.1 Morte e ressurreição, centro da fé cristã Se Cristo não tivesse ressuscitado seria vã a nossa fé (1Cor 15,15), ou, nem sequer haveria fé cristã, não haveria reflexão cristológica. Cristo ressuscitou! Este é o anúncio básico de todo o cristianismo (At 2,32;3,15). Como podemos constatar pela leitura dos textos do Novo Testamento, principalmente no final dos quatro evangelhos e nos Atos dos Apóstolos, esta notícia causou espanto e alegria nos primeiros seguidores de Jesus, bem como preocupação e reação nos poderosos da religião e da política da época. Com esta notícia, estranha e escandalosa, os discípulos e discípulas do Senhor correram o mundo, angariando adeptos, formando comunidades, suscitando esperanças e expectativas no meio de pessoas e povos oprimidos, instaurando novos projetos de vida, transformando sociedades. Se tudo tivesse terminado na cruz, o crucificado teria sido mais um entre tantos crucificados do seu tempo, não teria havido nenhuma mudança na história, seríamos ainda pessoas sem fé e, portanto, sem esperança. Cruz sem ressurreição é sinal de morte, de fim, de desespero, de caminho fechado. O cristianismo não é uma religião da morte, da dor, do absurdo desta vida, da renúncia aos valores deste mundo. O cristianismo anuncia a transformação desta vida e deste mundo. Professamos em nosso Credo cristão: Jesus de Nazaré padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado. Mas ressuscitou. A vida venceu a morte; a morte foi tragada pelo poder da vida (1Cor 15,54). O crucificado está vivo! Mas quem ressuscitou não foi um homem qualquer. Foi uma vítima do poder religioso e do poder político. Foi um mártir das causas sociais, alguém que havia se colocado ao lado dos pobres, das mulheres, dos doentes, das multidões. Alguém que se havia colocado contra os donos da religião e do poder, contra as autoridades opressoras e dominadoras do povo. Ele era um homem credenciado por Deus, havia feito sinais e prodígios em nome de Deus (At 2,22). Ele havia anunciado um Reino diferente, o Reino de um Deus diferente. Falava de Deus como de um Pai amoroso, próximo dos pecadores arrependidos, um Pai que queria vida em abundância para todos. Quem ressuscitou não foi uma idéia, um mito, um ideal, uma causa. Foi uma pessoa que ressuscitou. Uma pessoa que havia sido morta, rejeitada, excluída. Aquele que foi morto pela mão dos homens, Deus o ressuscitou! (At 2,23-24). Ressurreição sem morte é teatro, representação apoteótica. O cristianismo não é uma religião que põe panos quentes sobre os conflitos do mundo, não é uma religião do espetáculo, um show. A fé cristã se fundamenta em uma morte, no fim trágico de alguém que lutou pela vida. O ressuscitado é o crucificado!

O mistério da páscoa passagem da morte para a vida- é centro de nossa fé. O que aconteceu com Jesus deve acontecer também conosco. A vida cristã é passagem: do egoísmo para a solidariedade, da indiferença para a participação, do ódio para o perdão, da divisão para a comunhão. A Páscoa de Jesus foi, por isso, ponto de partida para a Páscoa de seus discípulos e discípulas. Antes da Páscoa, eles tinham em Jesus uma fé embrionária, bem pouco amadurecida. Eles o seguiam, apreciavam suas palavras, punham-se do lado dele nas discussões contra os fariseus e sacerdotes, reconheciam-no como alguém diferente. Percebiam nele alguém que valia a pena seguir, alguém que tinha palavras de vida eterna (Jo 6,68), que saciava a sede de vida eterna (Jo 4,14) que matava não somente a fome de pão material (Jo 6,1-13), mas também do pão espiritual ( (Jo 6,51). As multidões viam nele um represente de Deus, um profeta, um messias (Lc 7,16; Jo 6,14); queriam fazê-lo rei (Jo 6,15), corriam a ele pedindo socorro nas necessidades (Mc 5,6.22-23.27-28; 7,25-26), traziam-lhe os doentes e endemonhiados para serem curados (Mc 1,31), e as crianças para serem abençoadas (Mt 19,13). Acreditavam em Jesus, mas não havia ainda uma fé explícita, clara, firme. Tanto é que quando Jesus foi preso, quase todos o abandonaram, Pedro o negou, os discípulos de Emaús voltaram para seus afazeres normais. Uma fé explícita só se desenvolveu após a experiência pascal, com a vinda do Espírito Santo, com a percepção de que Jesus continuava vivo no meio deles. A partir de então, eles vão compreendendo o sentido das atitudes, das opções, do comportamento, da mensagem e da morte de Jesus de Nazaré. Começam, então, a anunciar e, depois, a colocar por escrito sua mensagem de salvação. Fazem também a sua Páscoa: de uma fé implícita para uma fé explícita, do escondimento e do medo para a coragem pública e o anúncio do Cristo crucificado-ressuscitado. Na experiência da Páscoa, encontra-se o fundamento do que será uma fé explícita e amadurecida em Jesus Cristo. Na Páscoa, inicia todo o trabalho de interpretação da vida, da paixão, da morte e da ressurreição de Jesus. Na Páscoa tem início a cristologia. A existência terrena de Jesus de Nazaré, vivida na obscuridade e na fraqueza, passa a ter um sentido profundamente libertador, quando os cristãos a iluminam com a luz da experiência pascal. Em Jesus Cristo, morto e ressuscitado, os primeiros cristãos percebem e confessam dois modos de existir, que caracterizam duas etapas distintas da vida do Mestre: a etapa de fraqueza, o modo humano e carnal de existir, a vida terrena, o Jesus de Nazaré prépascal; e a etapa da plenitude, o modo celestial e espiritual de existência, o Cristo da fé, o Jesus pós-pascal (Rm 1,3-4; 1Tm 3,16; 1Pd 3,18; At 5,31). Essas duas etapas ou modos distintos de existência de Jesus explicam as duas orientações básicas da cristologia das comunidades cristãs do século I. Alguns como João e Paulo, insistem no Verbo pré-existente, no mediador de toda a criação (Jo 1,1-14; Fil 2,6-11; Col 1,15-20) ou no Cristo ressuscitado e glorificado (Rm 6,4-11; 1Cor 15,20). Trata-se de uma cristologia descendente, que desce do mistério para a história, da divindade para a humanidade. Outros, como os evangelistas sinóticos, olham preferencialmente para o Jesus terrestre e, a partir daí, desenvolvem sua reflexão sobre o Cristo, Filho de Deus. Uma cristologia ascendente, que sobe da história para o mistério, da humanidade para a divindade. Todavia, todos partem da fé na ressurreição daquele Jesus que foi morto na cruz. O mistério pascal, a passagem da morte para a ressurreição, une inseparavelmente as duas orientações cristológicas. Na fé do Novo Testamento não existe ruptura entre o Jesus histórico (terrestre) e o Cristo da fé (glorificado). Nas 7

8 duas orientações básicas do Novo Testamento, está sempre presente o mesmo sujeito, embora apresentado em duas distintas etapas de sua existência. 1.2 Uma cristologia, muitas cristologias Assim sendo, temos diversas cristologias no Novo Testamento. Cada um dos evangelistas tem um modo próprio de falar de Jesus Cristo. Poderíamos assim resumir: a) Marcos acentua o Jesus humano, rejeitado, pobre. Para ele, Jesus é Messias justamente no sofrer e dar a vida, é Filho de Deus oculto nas condições humanas do sofrimento. Seu Jesus é áspero com os discípulos, severo com os fariseus e cauteloso com as multidões. Em seu Evangelho, Jesus faz segredo de sua messianidade, para evitar que seu messianismo fosse interpretado político-nacionalmente, no estilo dos zelotas ou de outros movimentos revolucionários de época. b) Mateus vê em Jesus o Mestre, o Messias esperado de Israel, o cumpridor das promessas e profecias da Primeira Aliança, o verdadeiro intérprete da lei mosaica, o novo Moisés, que proclama no monte a lei das bem-aventuranças e re-interpreta a antiga lei, o novo Davi, o anunciador do Reino, indicador de um novo movimento religioso, que é a semente do novo povo de Israel, a Igreja. c) Para Lucas Jesus é amigo do povo, um homem das multidões, que revela, em palavras e atos, a face misericordiosa do Pai. É um homem de relações: com os pobres, os pecadores, as mulheres, os marginalizados. Um homem de oração, ungido pelo Espírito Santo, em profunda relação com o Pai. É o senhor de toda a história e salvador de toda a humanidade. d) João apresenta um Jesus místico, consciente de sua condição e missão divinas. É o revelador de Deus na forma de sinais: luz, pão, água, pastor, videira. O Jesus de João, ciente de sua filiação divina, afirma-se como aquele que é, aplica a si o eu sou divino. Vive, por isso, em permanente conflito com os chefes dos Judeus, que não o reconhecem como Filho de Deus. e) Nos Atos dos Apóstolos Jesus é mostrado como o Senhor ressuscitado, vivo e presente no meio das comunidades, pela força de seu Espírito. É o Caminho a seguir, a Palavra a ouvir, a praticar e a anunciar. É o modelo a seguir nas provações da fé. f) O próprio Paulo, em seus escritos, produz diversas cristologias. Em breve tempo de seu ministério releu o mesmo e único evento pascal de diversos modos. Em seus primeiros escritos, as duas cartas aos Tessalonicenses, Paulo está voltado para o futuro das comunidades. Apresenta-lhes o Cristo do futuro, o juiz escatológico, o Senhor que vem. Nas Cartas maiores (Rm 1 e 2Cor, Gal), voltado para a vida presente da Igreja, com suas dificuldades e desafios, Paulo mostra o Cristo do presente da vida cristã, o crucificadoressuscitado, o Senhor que vence a morte, que dá seu Espírito aos fiéis, o Senhor presente no coração e na comunidade dos fiéis, que faz passar da lei para a liberdade, do pecado para a graça. Nas Últimas cartas, nas cartas da prisão (Ef, Col, Fil), voltado para as origens do plano da salvação, Paulo apresenta o Cristo das origens o pré-existente, que sendo Deus se fez homem, o mediador de toda a criação, o Primogênito de toda criatura, o centro de todo ministério salvífico. Nas Cartas pastorais, atribuídas a Paulo (1 e 2 Tim, Tt, Fm), temos o Cristo mediador da salvação de toda a humanidade,

9 o Cristo que deve ser servido e seguido na organização da comunidade, no pastoreio dos fiéis. É o único que possui a imortalidade e habita em luz inacessível, o que apareceu entre nós para revelar os planos eternos do Pai, para nos justificar por sua graça e nos fazer todos irmãos e irmãs uns dos outros. g) O autor da Carta aos Hebreus apresenta Jesus como irmão misericordioso dos pecadores, disposto a morrer por todos. Aquele que aprendeu na humilhação e no sofrimento a ter fé em Deus-Pai. Por isso é o único e verdadeiro sacerdote, mediador entre Deus e os seres humanos. Tendo ofertado sua vida em sacrifício, tornou-se o único mediador entre Deus e os seres humanos. h) Na Carta de Tiago, Jesus é o Senhor da glória que não admite favoritismos pessoais e acepção de pessoas. i) Nas duas Cartas de Pedro Jesus é o protótipo dos filhos e filhas de Deus, é o Filho Unigênito enviado pelo Pai ao mundo, é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Na união com ele, podemos viver, desde já, a vida eterna. j) No Apocalipse temos o Cristo vencedor da morte, a testemunha fiel, o primogênito dentre os mortos, o príncipe dos reis da terra, o primeiro e o último, Aquele que é, que era e que vem. 1.3 Os títulos de Jesus Os títulos de Jesus revelam também as várias cristologias existentes no cristianismo primitivo: a) Filho do Homem: É o título que Jesus mais usava para si e que nós usamos menos para ele. A expressão "Filho do Homem" ocorre 77 vezes nos evangelhos, uma só vez nos Atos (At 7,56), e nenhuma vez nos outros escritos do Novo testamento. Este título vem do Antigo Testamento, onde ocorre com dois sentidos aparentemente opostos: um em Ezequiel e outro em Daniel. Em Daniel, ele ocorre numa das visões apocalípticas, quando o profeta descreve os impérios dos babilônios, medos, persas e gregos. Estes quatro impérios têm aí a aparência de "animais monstruosos" (Dn 7,3-8). São impérios animalescos, brutais, que perseguem e matam (Dn 7,21.25). Depois destes reinos desumanos, aparece o Reino de Deus que tem a aparência não de um animal, mas sim de "um Filho de Homem". Ou seja, é um reino com aparência de gente, reino humano, que promove a vida (Dn 7,13-14). Aqui em Daniel a figura do Filho do Homem indica o Povo de Deus, "o Povo dos Santos do Altíssimo" (Dn 7,18.27). A missão que o Filho do Homem recebe é a missão de todo o Povo de Deus. Ela consiste em realizar o Reino de Deus que é um reino humano, reino que não persegue a vida, antes a promove. Usando o título Filho do Homem, Jesus assume esta missão, e ele a assume não sozinho. Apresentando-se como Filho do Homem, ele está dizendo aos discípulos e a todos nós: "Venham comigo! Vamos realizar a missão que Deus nos entregou! Vamos realizar o Reino que ele sonhou! Esta missão não é só minha. Ela é de todos nós!" Em Ezequiel, o título Filho do homem ocorre mais de 90 vezes! É Deus que, sem parar, chama o profeta de "Filho do homem!" Aqui a expressão indica o aspecto humano do projeta. A Bíblia Pastoral a traduz acertadamente por

Criatura humana. Usando este título, Jesus acentua a sua condição humana, igual a nós em tudo, menos no pecado (Hb 4,15; FI 2,7). b) Servo: Desde o exílio, este título estava associado à figura do Servo de Javé, que aparece nos quatro cânticos de Isaías (Is 42,1-9; 49,1-6; 50,49; 52,13-53,12). Nele se manifesta a nova consciência de conceber a missão do povo de Deus como um serviço à humanidade. O contexto dos capítulos 40-55 do livro de Isaías deixa bem claro que o Servo é o povo (Is 41,8-9; 42,18-20; 43,10; 44,1-2; 44,21; 45,4; 48,20; 54,17). A figura do servo era um espelho em que o povo descobria a sua missão. Jesus olhou neste espelho e por ele se orientou na execução da sua missão. Instruído pelo Pai e pelos pobres, percorreu os quatro passos dos quatro cânticos e realizou o ideal do Servo (Mt 20,28). Deste modo, ele se tornou a chave definitiva da interpretação dos quatro cânticos de Isaías. Foi assim que os primeiros cristãos os entendiam e reliam. Para eles, Jesus era o Servo (At 3,13.26; 4,27.30; Mc 10,34). Usando textos dos mesmos cânticos, procuravam explicar o significado de Jesus para as suas vidas e para a sua missão (Mt 12,18; Mc 9,35; Lc 1,38.48). c) Cristo: Cristo é uma palavra grega que traduz a palavra hebraica Messias. Ambas significam Ungido. Ao contrário de Filho do Homem, é o título menos usado pelo próprio Jesus e mais usado pelos cristãos. É tão freqüente que chegou a ser nome próprio. O nome de Jesus de Nazaré passou a ser Jesus Cristo. No tempo de Jesus, todos esperavam a chegada do Reino, a vinda do Ungido, do Messias (Mc 8,29). Mas nem todos o esperavam do mesmo jeito. Uns esperavam um messias rei, filho de Davi (Mc 10,48; 12,35), que viria combater os romanos (Mc 13,22; Mt 4,9). Outros, um messias sacerdote, o "Santo de Deus" (Mc 1,24), ou um messias doutor da lei, que viria ensinar o que faltava saber sobre a lei (Jo 4,25). Outros um messias juiz, para exercer o julgamento (Lc 3,7-9), ou um messias profeta para guiar o povo como um novo Moisés (Jo 6,14 e Dt 18,15)! Ninguém esperava um messias servo! Por isso o título Cristo, Messias ou Ungido, era carregado de ambivalência. Manipulado pela ideologia dominante, era associado ao messianismo régio e nacionalisla. Jesus sempre evitou usá-lo para não ser mal interpretado. Mesmo na bora do julgamento, interrogado explicitamente pelos seus acusadores, não se pronunciou claramente (Mt 26,64). Depois da ressurreição, porém, este passou a ser o título mais usado, sobretudo por Paulo. Ocorre mais de 500 vezes nos escritos do Novo Testamento! Ele indica que Jesus recebeu a unção para ser aquele no qual Deus realizou todas as suas promessas. Em Cristo e por'cristo foi dado ao povo o grande dom do Espírito Santo. O título Cristo indica o mistério da presença de Jesus na vivência da fé. Nas cartas mais tardias, ele assume dimensões cósmicas: tudo foi criado nele, por ele e pnra ele (CI 1,16). d) Senhor: o título Senhor, junto com o título Cristo, é o primeiro nome dado a Jesus depois da ressurreição, No dia de Pentecostes, Pedro o declara solenemente: "Que todo o povo de Israel fique sabendo com toda a clareza: a este Jesus que vocês crucificaram Deus o fez Senhor e Cristo" (At 2,36). Ocorre mais de 140 vezes só no Novo Testamento. Tornou-se o nome mais comum de Jesus, que passou a ser chamado de Nosso Senhor. Senhor traduz o nome Adonai. Na Bíblia Hebraica, Adonai é o nome mais freqüente de Deus. Depois do exílio, por causa de uma interpretação demasiadamente rígida do segundo mandamento, que proíbe usar o nome de 10

11 Deus em vão (Ex 20,7; Dt 5,11), e por um respeito exagerado, inspirado nas leis da pureza legal, os judeus passaram a substituir o nome Yahweh por Adonai, que significa Senhor. O nome Yahweh ocorre mais de 6.000 vezes no Antigo Testamento! O seu sentido é explicado por ocasião da vocação de Moisés (Ex 3,11-15). Ele é o coração da Revelação. Sugere, evoca e afirma a presença amiga e libertadora de Deus no meio do seu povo e com cada um dos seus membros: "Vai, estou com você!" (Ex 3,12). Com outras palavras, aplicando este nome a Jesus, os primeiros cristãos expressavam a fé de que Jesus ressuscitado é a prova de que Deus continua sendo Yahweh, isto é, presença libertadora no meio do seu povo! Mas não era só isto. Naquele tempo, Senhor era um título imperial! A sua aplicação a Jesus trazia consigo certos riscos, pois o único Senhor do mundo era o Imperador de Roma. Sobretudo depois do ano 70, na medida em que progride a hostilidade do Império contra os cristãos, cresce também o risco de perseguição para todos os que pretendem que Jesus seja o Senhor. O uso deste nome assume uma dimensão mais política ainda no livro do Apocalipse, que insiste em dizer que Jesus é o "Rei dos reis e o Senhor dos senhores" (Ap 19,16; 17,14). e) Filho de Deus: Este título, tão importante para nós, é muito pouco usado no Novo Testamento. Menos de 5 vezes! Inicialmente era um título comum. Todos somos filhos de Deus! É só depois do ano 100 que os cristãos vão aprofundar todo o seu significado e alcance e vão descobrir de que maneira Jesus é Filho de Deus. 1.4 Diversidade de Cristologias: a riqueza da fé cristã Diante dessa diversidade de cristologias presentes no Novo Testamento, poderiam surgir, entre tantas outras, as seguintes perguntas: qual delas é mais fiel aos fatos? Qual delas é mais ortodoxa? Qual delas é mais útil para a evangelização hoje? O que fazer com tantas concepções diferentes de Jesus Cristo? Antes de responder brevemente a cada uma delas, é preciso considerar o seguinte: a) Os Escritos do Novo Testamento, além de conterem diversas cristologias, contêm também diversas pneumatologias, eclesiologias, antropologias, mariologias, escatologias, etc. Encontramos aí a reflexão cristã fundamental sobre Deus, Jesus Cristo, o Espírito Santo, Maria, a Igreja, o ser humano, a vida futura, etc. Isso quer dizer que são fonte para toda a teologia cristã. No Novo Testamento temos uma teologia originária, isto é, a primeira reflexão feita sobre os dados da revelação e da fé. Tanto a palavra de Deus como a nossa resposta à revelação divina só podem ser transmitidas por palavras e conceitos humanos. Não há outro jeito de Deus se comunicar conosco e nós nos correspondermos com ele. Por isso, os escritos do Novo Testamento já são teologia, isto é, reflexão sobre essa Palavra e essa fé. Mas não são uma teologia qualquer. São a teologia originante e, por isso, teologia normativa para toda e qualquer reflexão. b) Se os escritos do Novo Testamento contém diversas cristologias, é preciso buscar e encontrar uma unidade de fundo entre elas. É preciso discernimento, baseado na fé e no estudo, para encontrar o fio da verdade sobre Jesus Cristo que costura todas as cristologias. Esse fio se encontra,

12 certamente, na concreta existência histórica de Jesus de Nazaré, de sua pessoa e de sua práxis. c) Uma vez que os escritos do Novo Testamento contêm diversas cristologias, é preciso valorizá-las todas. Essa riqueza de perspectivas sobre o único mistério de Cristo mostra que é possível fazer, também hoje, diversas cristologias. Isso é feito a partir das interrogações, dos desafios e das necessidades de cada comunidade, de cada país, de cada época, levando em conta os sinais dos tempos. d) Essas diversas cristologias são feitas com um único objetivo; mostrar a intervenção salvífica de Deus em Cristo. Há, em todas elas, um interesse soteriológico: em Jesus revela-se definitivamente quem é Deus e o que ele quer. No evento Jesus Cristo se resume e se conclui, assim, toda a história da salvação: revela-se, uma vez por todas, o ser e o agir de Deus. e) Todas essas cristologias nascem da Páscoa. Centram-se na passagem de Jesus Cristo da morte para a vida. Foram escritas na luz da Páscoa. Devem, portanto, ser lidas à luz da Páscoa. Tudo o que dizem sobre Jesus de Nazaré o Cristo pré-existente, a encarnação do Verbo, o nascimento, a infância, o batismo, o ministério público, a paixão e a morte tudo foi escrito à luz da ressurreição e, portanto, nessa luz deve ser lido. f) Todas essas cristologias são pascais e, por isso, batismais; foram escritas em vista da vida cristã, do mergulho do fiel em Cristo, da passagem que cada cristão é chamado a fazer da incredulidade para a fé em Jesus Cristo como Filho de Deus. Voltemos agora, às perguntas com que iniciamos esta reflexão: Qual das cristologias do Novo Testamento é mais fiel aos fatos? Na verdade, não se pode exigir de nenhuma delas fidelidade aos fatos no sentido em que hoje entendemos a ciência histórica. Os evangelhos não são biografia. Os escritos do Novo Testamento narram a vida das comunidades, com suas interrogações, problemas, soluções, perseguições, conquistas. Falam de Jesus Cristo não com o olhar de historiadores, cientistas, pesquisadores. Falam com o olhar e o coração convertidos. Esses livros foram escritos entre os anos 45 e 100 do primeiro século. Portanto, a uma distância de 20 ou mais anos da morte de Jesus de Nazaré. Os escritos do Novo Testamento falam de Jesus a partir de uma janela, através da qual se direcionam três olhares. A janela oferece a luz do mistério pascal que ilumina o que se passou com Jesus de Nazaré, em seus últimos momentos, sua paixão e morte. Os três olhares são: o presente em que os autores e suas comunidades estão vivendo (o olhar da consciência do presente: a vida: a vida no Espírito, as virtudes cristãs e o seguimento de Jesus); o futuro que tem pela frente (o olhar da esperança no futuro: interrogações e desafios que motivam a fé no retorno de Jesus); e o passado de Jesus de Nazaré, na Galiléia e em Jerusalém (o olhar para a memória do passado: práticas e palavras de Jesus que fortalecem o presente e despertam para o futuro). As cristologias do Novo Testamento, bom como todas as que surgirão depois, estão mais preocupadas com a fidelidade de sua própria fé em Jesus Cristo, do que com a fidelidade aos fatos que aconteceram com Jesus de Nazaré.

13 Qual das cristologias do Novo Testamento é a mais ortodoxa? Todas elas são ortodoxas, na medida em que se referem ao mesmo Jesus de Nazaré. Embora cada uma delas aborde a pessoa de Jesus Cristo a partir de uma determinada perspectiva, conforme as necessidades e interrogações da comunidade em que nascem, todas apresentam a verdade da salvação, todas são caminho para o encontro com Jesus Cristo vivo e com seu Espírito vivificador. O mistério da salvação em Cristo é tão rico de graças, que uma só perspectiva não dá conta de abrangê-lo. Qual delas é mais útil para a Evangelização hoje? Todas elas. Embora seja possível acentuar uma ou outra, conforme as interrogações e desafios, as épocas e os lugares em que se vive a fé cristã nos dias de hoje, não se pode privilegiar uma delas em detrimento de outras. Seria fazer uma espécie de cânon dentro do cânon. É preciso estar atento a escolhas arbitrárias, sem critério nem controle, que geralmente produzem ideologizações e parcializações perigosas para a fé. O que fazer com tantas concepções diferentes de Jesus Cristo? Agradecer que haja, no interior mesmo do Novo Testamento, essa pluralidade de teologias, de cristologias. Aproveitar-se de todas elas. Ver, nessa pluralidade de visões sobre Jesus Cristo, a justificativa para a diversidade de abordagens teológicas e cristológicas que sempre houve e sempre haverá na Igreja. 2 O ACESSO AO JESUS DA HISTÓRIA A preocupação central da cristologia é o acesso ao Jesus da história. Se as cristologias do Novo Testamento não são biografias, mas recordações espirituais que servem mais à exortação religiosa que à confirmação histórica, que acesso temos, então, ao Jesus da história? Além dos escritos do Novo Testamento, há escritos não bíblicos que ajudam a chegar ao Jesus da história. Os próprios escritos do Novo Testamento são fundamentais, desde que sejam estudados de modo científico e se estabeleçam critérios que ajudem a definir o que realmente há de histórico no que neles foi relatado. 2.1 Escritos não bíblicos Além dos escritos do Novo Testamento, que veremos adiante, há outras fontes cristãs que se referem a Jesus Cristo. São fontes extra-canônicas, nãobíblicas, que são muito úteis para o acesso ao Jesus da história. Podem ser assim apresentadas. a) Apócrifos (do grego: apócrifos: oculto, secreto): escritos do cristianismo nascente que não foram aceitos no cânon, mas se referem pelo conteúdo ou pelo gênero ao Novo Testamento. Não entraram no cânon por diversos motivos: na sua maioria, foram escritos bem depois dos canônicos: não eram usados na liturgia; não têm confiabilidade histórica, pois são impregnados de lendas e narrativas em parte fantásticas; não garantem a tradição apostólica sendo, alguns deles, infiltrados por desenvolvimento errôneos da doutrina e até mesmo por heresias, como por exemplo, o gnosticismo. Mesmo não

14 pertencendo ao cânon, são úteis para o acesso ao Jesus histórico, contém referências sobre palavras e feitos de Jesus. Foram escritos na primeira metade do século II. É impossível enumerá-los todos. Citamos apenas alguns deles: Evangelho de Tomé, Apócrifo de Tiago, Diálogo do Redentor, Evangelho dos Egípcios, Evangelho de Pedro, Evangelho dos Nazarenos, Evangelho dos Ebionitas, Evangelho dos Hebreus. b) Padres Apostólicos: É um grupo de escritos do cristianismo nascente, diferenciado do conjunto dos apócrifos por conterem com maior confiabilidade histórica e ortodoxa. Foram escritos por discípulos dos apóstolos, no final do século I e na primeira metade do século II. Entre eles citamos: as cartas de Clemente de Roma, as cartas de Inácio de Antioquia, a Carta de Policarpo, a Didaqué, a Carta a Diogneto e o Pastor de Hermas. c) Ágrafos (do grego: agraphon: não escrito): são palavras de Jesus não incluídas nos Evangelhos Canônicos, transmitidas oralmente pelos Padres da Igreja, pelas liturgias do cristianismo primitivo. As palavras de Jesus que se encontram no Novo Testamento, mas fora dos Evangelhos também são chamados Ágrafos. Há ainda fontes não cristãs, que também se referem a Jesus Cristo: Flávio Josefo (38-100dC): Historiador judeu que, ao escrever a história dos judeus dessa época, faz um relato benevolente sobre Jesus, tão neutro e objetivo quanto o fez sobre João Batista ou sobre Tiago, o irmão do Senhor. Chama-o de Cristo. Mara Bar Sarapion: filósofo sírio, seguidor do estoicismo, que escreveu uma carta a seu filho Serapion, pelo ano de 73 dc, contendo numerosos conselhos e advertências em face de sua possível condenação. Nessa carta, fala simpaticamente de Jesus como o sábio rei dos judeus. Escritores romanos: Plínio Jovem, Tácito, Suetônio do período entre 110 a 120 dc: deixam três curtas menções a Cristo. A partir de ocupações e preocupações administrativas, acusam o cristianismo de superstição desprezível e perigosa para o Império romano. Falam de Jesus como fundador da seita dos cristãos, um quasedeus, que foi executado sob Tibério pelo procurador Pôncio Pilatos. Fontes rabínicas, anteriores ao ano 220 dc: nelas, Jesus é acusado de aliciador, justificando sua condenação pela prática de feitiçaria, por ter desencaminhado Israel e por ter levado o povo judeu à idolatria. É duplo o valor das fontes extra-cristãs sobre Jesus. Primeiro, deve-se notar que tanto oponentes como observadores neutros ou simpáticos ao cristianismo nascente pressupõem a historicidade de Jesus e não deixam espaço a dúvidas. Além disso, as referências não-cristãs permitem checar dados e fatos de Jesus: sua morte violenta é narrada por Josefo, pelos rabinos, por Mara e por Tácito; os milagres de Jesus são mencionados por Josefo e pelos rabinos; sua atuação como mestre é referida por Josefo e pelo filósofo Mara; o título de Cristo é trazido por Josefo e pelos historiadores romanos. São dados e fatos que confirmam as fontes cristãs, sobretudo os evangelhos. Tanto as fontes cristãs extra-canônicas como as fontes extra-cristãs são importantes para corroborar o acordo de fundo dos evangelhos sobre a historicidade de fatos e palavras de Jesus.

15 2.2 Os escritos do Novo Testamento Cada escritor do Novo Testamento acessou Jesus de Nazaré a partir de uma perspectiva própria, mais preocupado com a fé de seus leitores do que com a fidelidade aos fatos. Pergunta-se, então: que condições temos hoje de acessar, através dos escritos do Novo Testamento, o Jesus da história? Os Evangelhos são nossa principal fonte para o conhecimento do Jesus de Nazaré. Mas, se os próprios evangelistas não se preocuparam com isso, que possibilidades temos, de definir os fatos e palavras reais de Jesus de Nazaré? A principal fonte do nosso conhecimento sobre o Jesus da história é também o maior problema: os quatro Evangelhos Canônicos (Marcos, Mateus, Lucas e João) que os cristãos aceitam como parte do Novo Testamento. Os Evangelhos não são e nem pretendem ser uma biografia sobre Jesus. Seu objetivo é proclamar e reforçar a fé em Jesus como o Cristo ou Messias, Filho de Deus, Senhor e Salvador da humanidade. Não fazem uma narrativa completa, nem mesmo um sumário sobre a vida de Jesus. Marcos e João apresentam o Jesus adulto, há no início do seu ministério, que durou apenas alguns poucos anos. Mateus e Lucas introduzem o ministério público com as narrativas da infância de Jesus, cuja historicidade é muito discutida. Fica claro, portanto, que a partir dos evangelhos, é impossível escrever uma biografia, no sentido moderno, desse homem que viveu cerca de trinta anos e de quem conhecemos apenas alguns acontecimentos de três ou quatro anos do final de sua vida. Além disso, os evangelistas não tiveram a preocupação com uma verdadeira seqüência histórica dos acontecimentos da vida de Jesus. Servindo-se de tradições orais ou escritas, reunidas por formas e temas comuns ou palavras-chave, cada evangelista fez sua compilação própria, elaborou seu escrito com uma estrutura própria, que refletisse sua própria visão teológica. Podemos estar razoavelmente seguros de que o ministério de Jesus, segundo os Evangelhos Sinóticos, começou com seu batismo por João no rio Jordão e terminou com a ida, única, final e fatal, a Jerusalém para a comemoração da Páscoa judaica. A duração exata desse período e a exata ordem dos eventos de seu ministério não são conhecidas. Mas, de modo diverso, o Evangelho de João concentra a atividade de Jesus na Judéia e em Jerusalém, para onde teria ido pelo menos quatro vezes em sua vida adulta. Como nenhum dos evangelistas se preocupou em dar uma seqüência cronológica ordenada à vida de Jesus, é impossível que nós hoje a construamos. Como se pode constatar através de material tão importante para a vida cristã, como as palavras da instituição da Eucaristia (Mc 14,22-25; Mt 26,26-29; Lc 22,19-20; 1Cor 11,23-26), a oração do Pai Nosso (Mt 6,9-13; Lc 11,2-4) e as Bem- Aventuranças (Mt 5,3-12; Lc 6,20b-23), as comunidades primitivas não se preocuparam com a exatidão das palavras de Jesus, que são diferentes entre as diversas fontes. Estavam atentas apenas à substância do que ele disse. Se isso vale para palavras tão centrais de sua vida (última ceia, oração do Pai-Nosso e do sermão das bem-aventuranças), tanto mais vale para o conjunto de suas palavras. Os próprios evangelistas, que escreveram décadas depois da morte do Mestre, não nos dão detalhes. Detêm-se na forma mais original possível e disponível das palavras e fatos de Jesus. Há ainda a questão das fontes, bastante controversa entre os especialistas. A maioria deles está de acordo no seguinte:

16 a) Há a fonte dos Ditos (abreviada como Q, do alemão Quelle =fonte), dos anos 40-50 dc, que contém palavras de Jesus: palavras de sabedorias, palavras proféticas e apocalípticas, palavras sobre a Lei, regras comunitárias e parábolas. b) O Evangelho de Marcos, escrito pelo ano 70 dc, é uma coleção de materiais tradicionais, orais e escritos. c) Os Evangelhos de Mateus e Lucas, escritos entre os anos 80-90 dc, serviram-se, de Marcos, da fonte Q e, além disso, de fontes pessoais, chamadas fontes M e L respectivamente. d) O Evangelho de João, escrito entre os anos 90-100 dc, parece ter se servido dos Sinóticos, contudo, é mais provável, pelas muitas e grandes diferenças que tem em relação a eles (p. exemplo, o prólogo introdutório, as várias viagens a Jerusalém, a cronologia das festas judaicas, os grande complexos narrativos), que tenha se servido de uma fonte própria. Sobre o acesso ao Jesus da história, a partir dos Evangelhos, podemos concluir dizendo que esses escritos não são obra de história, no sentido moderno da palavra. Não fazem uma biografia sobre Jesus, não oferecem uma seqüência cronológica exata dos acontecimentos, não reportam com precisão os fatos, nem trazem as palavras exatas de Jesus, e, também, não se servem de uma única fonte. Tudo o que os evangelistas escrevem sobre Jesus passa pelo filtro da sua fé pessoal, do conhecimento que recebem sobre ditos e fatos de Jesus, do interesse em proclamar e reforçar a fé da comunidade a que servem, da interpretação teológica que elabora, da distância de algumas décadas em que vivem. Através desse filtro, pode-se, contudo, chegar a um núcleo histórico que forma a base concreta da vida do Jesus se Nazaré que hoje conhecemos. Além dos Evangelhos, Paulo também fala sobre o Jesus histórico. As carta paulinas, escritas entre os anos 45-65 dc, trazem referências a Jesus, que eram, provavelmente, comuns no âmbito das primeiras comunidades cristãs e das quais Paulo se serviu livremente em suas exortações apostólicas. Por exemplo, para resolver alguma questão polêmica junto aos coríntios, o apóstolo Paulo cita, de modo bastante livre, palavras e fatos de Jesus: o divórcio (1Cor 7,10-11); o sustento do apóstolo (1Cor 9,14); as ações e palavras da última ceia (1Cor 11,23-26); a morte e o sepultamento de Jesus (1Cor 15,3). Os outros escritos do Novo Testamento têm pouco a dizer sobre o Jesus histórico. 2.3 O núcleo histórico de Jesus de Nazaré Na busca do Jesus histórico a partir dos evangelhos e dos outros escritos do Novo Testamento, os exegetas já não contam com a possibilidade de refazer a história completa e exata de Jesus. Contentam-se com um núcleo histórico, uma plataforma histórica mínima sobre a qual devem ser interpretadas todas as referências evangélicas sobre Jesus. Para tanto, fundamentam-se em cinco critérios: a) Critério de constrangimento, que aponta o material dos evangelhos que dificilmente teria sido inventado pela Igreja primitiva, pois poderia criar constrangimentos ou dificuldades teológicas para a própria Igreja durante o período do Novo Testamento. Por esse critério, definem-se como certamente históricos as palavras e os fatos que, apesar de causarem constrangimentos aos primeiros cristãos, foram transmitidos por fidelidade à história. Por exemplo, como explicar o batismo de Jesus, considerado Senhor e Salvador,

17 por João Batista? Como explicar que mulheres sozinhas acompanhassem o celibatário Jesus e seus discípulos homens? b) Critério da descontinuidade: enfoca palavras ou fatos de Jesus que não podem ser originários nem do judaísmo do seu tempo, nem da Igreja primitiva. Por esse critério, definem-se como históricos as palavras e os fatos que encontram sua explicação somente em Jesus de Nazaré. Por exemplo: a rejeição do jejum voluntário; o recurso a Êxodo 3,6 ( eu sou o Deus de Abraão, Isaac e Jacó ) para explicar a ressurreição dos mortos. c) Critério da múltipla confirmação: focaliza as falas e ações de Jesus atestadas em mais de uma fonte literária independente (por exemplo: Marcos, Paulo, João, a fonte Q, as tradições especiais de Mateus e de Lucas). Por esse critério, têm-se como históricos as palavras e os fatos que, apesar da diferença de linguagem e de contexto, aparecem em todos os escritos. Por exemplo, a proibição do divórcio está atestada em Marcos, na fonte Q e em Paulo, a cura de cegos é atestada na fonte Q, em Marcos e em João; a existência de um discípulo chamado Simão Pedro Kefas é atestada em todas as fontes. d) Critério da coerência: dependente das anteriores e aponta para palavras e ações de Jesus que são coerentes com o contexto global da realidade, com o autoconceito e a pregação de Jesus. Por esse critério, têm-se como históricos as palavras e os fatos que se encaixam no jeito de Jesus pregar e agir, e de organizar o seu ministério. Por exemplo, a criação de um grupo de doze discípulos é coerente com o autoconceito de Jesus como profeta escatológico, enviado para reunir todo o povo de Israel. e) Critério da rejeição e da execução de Jesus: volta-se para o padrão mais amplo de seu ministério perguntando-se e explicando que palavras e efeitos se enquadram em seu julgamento e crucificação. Por esse critério, têm-se como históricos as palavras e os fatos que explicam as motivações que os chefes dos judeus tiveram para assassinar Jesus. Por exemplo, a habilidade em atrair multidões entusiastas, sobretudo quando em peregrinação até Jerusalém para as grandes frestas, ajuda a explicar porque Caifás e Pilatos teriam passado a considerá-lo perigoso. Um Jesus cujas palavras e ações não ameaçassem ou perturbassem os poderosos não poderia ser o Jesus histórico. Com base no conjunto desses critérios, a pesquisa histórico-exegética elenca os seguintes elementos como dotados de segura base histórica: - a existência de Jesus, na Palestina, nos primeiros anos de nossa era; - o batismo de Jesus, por João Batista, no rio Jordão; - a relação especial com Deus-Pai, invocando com a palavra Abbá; - o êxito inicial como pregador, seguido do enfrentamento de duros conflitos; - as tentações; - o anúncio da chegada do Reino de Deus; - a centralidade do Reino; ele viveu toda a sua vida a serviço do Reino; - os sinais da presença do Reino: curas, parábolas, banquetes...; - a realização de curas; - a utilização de parábolas em sua pregação; - o relacionamento peculiar com os pobres, os pecadores e os marginalizados em geral; - a escolha e o envio de um grupo de seguidores;