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Transcrição:

SUJEITO E SENTIDO: UMA REFLEXÃO TEÓRICA Felipe Barbosa Dezerto 1 Resumo A Análise do Discurso se constitui como uma disciplina que promove uma releitura de conceitos advindos de outros lugares teóricos para a elaboração de seu quadro epistemológico. Trabalhando os conceitos basilares da Análise do Discurso Francesa, especialmente o nome de Michel Pêcheux, proponho, neste trabalho, uma reflexão teórica sobre a forma como na modernidade se constitui uma noção de subjetividade baseada na centralidade. É, então, trabalhando no descentramento do sujeito enquanto origem e fonte do dizer que me volto para os conceitos da Análise do Discurso para entender como se dá o processo de interpelação. As noções de sujeito, sentido, formação discursiva, formação ideológica, discurso, interdiscurso, historicidade são trazidas à discussão para que possamos refletir sobre como se dá o processo de constituição da subjetividade e o efeito ilusório que produz sujeito como centro. Tem-se o objetivo de, a partir da reflexão sobre esses conceitos, entender como se dá o processo discursivo e seus efeitos na produção de subjetividade para afirmar que o sujeito não é fonte do seu dizer. Palavras-chave: sujeito, sentido, discurso e centralidade Abstract The discourse analysis is constituted as a discipline that promotes a reinterpretation of concepts coming from other theoretical places in order to develop his epistemological framework. Working with the basic concepts of the French discourse analysis, especially with the name of Michel Pêcheux, this paper proposes a theoretical reflection on how a notion of subjectivity based on the centrality is constituted in the 1 Doutorando em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal Fluminense 1

modernity. By focusing on the decentralization of the subject as origin and source of the speech, I turn to the concepts of discourse analysis with the aim of understanding how the process of interpellation takes place. The notions of subject, meaning, discursive formation, ideological formation, discourse, interdiscourse, historicity are brought up here for discussion so that we can reflect on how the process of the constitution of subjectivity occurs and the illusory effect that produces the subject as the center. Starting from the reflection on these concepts, the main goal is to understand how the discursive process takes place and its effects on production of subjectivity so as to affirm that the subject is not the source of his own speech. Keywords: subject, sense, discourse and centrality. Introdução Tendo como base a Análise do Discurso Francesa, especialmente o nome de Michel Pêcheux, procuro, aqui, entender como é concebida a noção de subjetividade em um quadro teórico que postula o não-controle total do dizer por parte do sujeito. Este trabalho pretende pensar teoricamente sobre as categorias de sujeito e sentido enquanto conceitos teóricos basilares de uma disciplina de entremeio que reterritorializa noções externas na elaboração de seus princípios norteadores. A Análise do Discurso busca seus fundamentos em outras áreas de conhecimento, para a construção de seu quadro epistemológico, promovendo uma releitura de conceitos trazidos: 1 da linguística, no que diz respeito à análise dos mecanismos de enunciação; 2 de uma teoria materialista histórico-dialética das formações sociais e suas transformações, com base nos trabalhos de Marx; 2

3 de uma teoria do discurso, que pode ser entendida como uma semântica de base materialista. Não ocultando o atravessamento dessas três áreas por uma teoria da subjetividade de base lacaniana. É, então, dentro desse quadro teórico que me volto para a noção de sujeito com o objetivo de refletir sobre esse conceito sob a luz da análise do discurso. Para fundamentar esse lugar de entremeio que ocupa a Análise do Discurso, enquanto disciplina que visa ao entendimento do funcionamento dos processos de significação, é preciso redimensionar o que era colocado como extralingüístico, quando nos referimos à linguística moderna. Dessa maneira, devemos tomar o linguístico e o histórico não como dois campos distintos que, quando relacionados, se mostram numa relação de complementaridade, mas como campos das ciências humanas que estabelecem uma relação constitutiva nos processos de produção de sentido. Por isso, falamos em deslocamentos no que se refere ao estudo e à concepção de língua(gem). Essa disciplina se propõe a questionar a concepção de língua como um sistema que possui um exterior no qual sujeitos ideais a põem em funcionamento. Sujeitos estes que trabalhariam em um processo comunicativo uniforme no qual sentidos seriam codificados e decodificados por emissores e receptores, como se ela (a língua) fosse um código que não possuísse história e como se ela não se constituísse juntamente com a sociedade. O trabalho da Análise do Discurso se situa, então, não na descrição do funcionamento interno da língua enquanto estrutura, mas na relação entre o linguístico, enquanto materialidade linguística, e o histórico, enquanto processo ininterrupto de produção de sentidos, que estabelece filiações e redes semânticas. Estabelece-se, então, 3

um outro objeto de estudo, que não é a língua, mas o discurso, que conjuga aspectos linguísticos com aspectos histórico-ideológicos. A proposta de Pêcheux, a partir do qual surge a análise do discurso, é a de articulação de três regiões do saber: o materialismo histórico, para um entendimento de como se efetivam os processos sociais e as transformações das formações sociais; a linguística, enquanto lugar de reflexão sobre a língua e a linguagem; e a teoria do discurso, para uma compreensão histórico-processual dos sentidos. Essas três regiões são atravessadas por uma teoria da subjetividade de base psicanalítica que visa entender o sujeito que se insere (e ao mesmo tempo é produzido por) nesse processo. Situando-se no entremeio das teorias supracitadas, a análise do discurso trabalha com seus conceitos promovendo uma reterritorialização (MARIANI, 1998:24) dos mesmos para a elaboração de seu quadro epistemológico. Nessa perspectiva de deslocamentos, vai-se trabalhar, então, numa direção que concebe que: a) a linguagem não funciona como um código que se presta à transmissão de informações entre locutores ou ainda à comunicação entre locutores ideais em situações também ideais; b) o sujeito não representa o ponto de partida do que diz, sendo o ponto de partida dos sentidos, ou seja, o dizer não se inaugura no sujeito; c) a ideologia não pode ser descartada dos processos discursivos (ela é constitutiva destes); d) não há, nos processos de linguagem, a possibilidade de haver o/um sentido, como se a literalidade fosse o ponto de partida para o trabalho semântico. No lugar da ideia de que língua funciona como código de transmissão de informações ou sistema de signos, a análise do discurso propõe que esta se configura como um lugar de inscrição do discurso, ou seja, a cadeia material na qual se inscreve o que é da ordem do discurso. Este, por sua vez, se materializa na língua, se inscreve nela 4

determinando seu funcionamento. Dessa forma, a língua constitui um campo material que só funciona porque é afetado por algo que não é tão somente da ordem da língua, mas como cadeia material que significa porque nela se inscrevem sentidos de práticas sociais que se processam historicamente, discursivamente. Os sentidos não estariam, dessa forma, no sistema linguístico, como propôs Saussure com a noção de valor e significado (cf. SAUSSURE, 2006), mas no processo de produção simbólica ininterrupta, isto é, nas práticas sociais que realizam um trabalho de simbolização deslizando no tempo e no social, construindo, reconstruindo, interditando e reativando sentidos. O objeto da análise do discurso é, como dissemos, não a língua, mas o discurso, que aparece em Orlandi (2005) como objeto sócio-histórico em que o linguístico intervém como pressuposto. O discurso, por sua vez, não é entendido como mensagem, nem fala. Trabalha-se com a noção de um objeto teórico constituído por sentidos produzidos historicamente 2 nas práticas sociais. Ele configura o lugar onde se pode observar a relação entre língua (cadeia material na qual se inscrevem os sentidos) e ideologia (aquilo que dissimula o caráter opaco da linguagem). O discurso funciona como um lugar de mediação, uma vez que é nele que são produzidos sentidos. O sujeito, por sua vez, não pode ser visto como o controlador do dizer como se os sentidos do que ele diz se inaugurassem nele. Pôr a língua em funcionamento pressupõe um processo complexo no qual sujeito e sentido se constituem mutuamente. Não há, portanto, um entendimento de sujeito como indivíduo singularizado a priori, o que ocorre são processos de subjetivação que se dão na esfera do discursivo. 2 Também não se entende história como sequência de fatos. Não se trata de uma noção cronológica dos acontecimentos, mas de processos semânticos ao longo do tempo; fala-se de processo, em que o inacabado e o complexo se fazem constitutivos. São filiações, produção de mecanismos de distribuição de sentidos. (ORLANDI, 2003b). 5

A noção de ideologia com a qual a Análise do Discurso trabalha também é consequência de deslocamentos da noção de ideologia de Althusser, em sua releitura de Marx. Estamos falando, em Análise do Discurso, de um mecanismo imaginário que provoca o efeito do óbvio. Segundo Pêcheux, É a ideologia que fornece as evidências pelas quais todo mundo sabe o que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve, etc., evidências que fazem com que uma palavra ou enunciado queiram dizer o que realmente dizem e que mascarem, assim, sob a transparência da linguagem, aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das palavras e dos enunciados. (PÊCHEUX, 1988:160). O funcionamento ideológico se dá, então, num efeito de transparência da linguagem e do sentido. É a ideologia que provoca o efeito do óbvio, do evidente, e retira da linguagem seu caráter opaco, apagando a materialidade do sentido. Este, pelo mecanismo ideológico, funciona como se já estivessem desde-sempre-lá, como se não fosse fruto de um processo discursivo que o sustenta. Sobre a questão, também nos diz Mariani : A ideologia, então, é um mecanismo imaginário através do qual coloca-se para o sujeito, conforme as posições sociais que ocupa, um dizer já dado, um sentido que lhe aparece como evidente, ie, natural para ele enunciar daquele lugar. (MARIANI, 1998: 25) Vemos, dessa forma, como há um processo de naturalização dos sentidos para o sujeito que enuncia. Esse estado perpétuo de transparência dos sentidos provoca no sujeito a ilusão de centralidade e originalidade enquanto formulador de enunciados. Cabe, aqui, um questionamento: de onde, então, brotam os sentidos que emergem no sujeito como se fossem algo que emana dele? A resposta para essa pergunta passa por questões que incluem também as noções de historicidade e interdiscurso. Estamos falando de uma memória discursiva na qual se inscrevem todos os sentidos já produzidos, tudo o que já foi historicamente simbolizado, toda a produção simbólica das práticas sociais. O interdiscurso, então, funciona como base de fornecimento e sustentação dos sentidos que parecem brotar do sujeito. É ele que disponibiliza (ou 6

interdita ou projeta para possíveis formulações) sentidos para o sujeito que se julga uno e fonte do que enuncia. Não podemos deixar de salientar que a tomada de palavra pelo sujeito ganha sentido porque o que é dito se insere numa formação discursiva. Esta última se constitui como um espaço (não empírico, mas discursivo) 3 onde os enunciados ganham sentido. A formação discursiva, como lugar da interpelação ideológica do sujeito, configura uma matriz de sentido. Falar em mudança de matriz semântica significa também mudança de formação discursiva. É por essa concepção de sentido e sujeito que a análise do discurso desloca a noção de sentido único e propõe a de efeitos de sentido. Não pode haver, dessa forma, uma uniformidade semântica, uma vez que sujeitos ocupam diferentes posições, em diferentes conjunturas sócio-históricas imersas em relações de forças que promovem uma hierarquia discursiva que faz do político um fator determinante no jogo de posições-sujeito inseridas em formações discursivas imbricadas em formações ideológicas. Assim, não poderia haver a possibilidade de apreensão de um sentido unívoco e primeiro, o que temos é um jogo complexo de efeitos semânticos que se dá entre os sujeitos. A discursividade funciona como um fio histórico ao longo do qual os processos de significação se efetuam. O mesmo e o novo estão em constante tensão trabalhando nas (re)formulações dos sentidos. Nessa medida, a análise do discurso se define como teoria da determinação histórica dos processos semânticos (PÊCHEUX & FUCHS, 1990:164, apud, MARIANI, 1998: 27). Os sentidos se filiam a outros construindo redes 3 Neste trabalho, tomo empírico como aquilo que se refere ao material (do mundo), mas que só tem sentido porque é simbolizado discursivamente, ou seja, nas práticas histórico-sociais. Não se está dizendo que há o mundo e o discurso como ordens distintas, o que se afirma é que a própria realidade é construção discursiva, i.e., as coisas só ganham sentido para e no discurso. 7

histórico-semânticas que permitem não só a repetição, mas também a reformulação. Estamos falando de condições materiais de produção que atualizam sentidos e dizem respeito, de forma geral, ao contexto imediato da produção simbólica, mas também às mudanças sociais operadas no nível das relações de poder e força. Os sentidos, nesse complexo com dominante das relações de força, se dão sempre em relação a, como sustenta Canguilhem (1994, apud MARIANI, 1998). Eles se configuram porque se filiam a outros sentidos (sustentação interdiscursiva), mas não estão engessados e fadados sempre ao mesmo devido ao movimento discursivo de atualização em diferentes condições de produção. Estamos falando, então, de uma teoria semântica que entende sentido e sujeito como resultantes (mas constitutivamente inacabados) do processo histórico e social. Ambos imersos num jogo no qual não há relações diretas. É, dessa maneira, esse processo histórico-social que determina as constituições e contradições tanto do sujeito quanto do sentido. É no processo discursivo que eles, sentido e sujeito, se constituem. Partindo dessas considerações, pretendo pensar o lugar de entremeio que ocupa a análise do discurso e as noções de sujeito e linguagem nessa disciplina. 1 Subjetividade e Centralidade É valido mencionar que a análise do discurso toma como pressuposto, para a elaboração do seu quadro epistemológico, um sujeito de linguagem afetado pelo inconsciente, sendo este último entendido tal como definido por Lacan. É, então, norteado por esse pressuposto de que o sujeito que põe a língua em funcionamento é afetado pelo inconsciente que continuamos estas considerações sobre subjetividade. 8

Falar em subjetividade em análise do discurso traz à discussão noções importantes que necessitam ser não só compreendidas, mas também entendidas dentro de um quadro teórico, como já dito, que as reterritorializa. Estamos numa teoria que toma a noção de sujeito como algo dividido, descentrado pelo inconsciente e constitutivamente heterogêneo, contrariamente à imagem de um sujeito pleno, autônomo, homogêneo. Contra a noção do sujeito da razão, do sujeito que existe porque pensa, postula-se, aqui, uma concepção de sujeito que não controla seu dizer e pretendese mostrar como o que é dito ganha sentido uma vez que não é no sujeito que esses sentidos se sustentam. Para entendermos o que implica dizer que o sujeito é descentrado de sua posição de controle, recorro ao conceito de interdiscurso, que de acordo com Orlandi (2005) como o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determina o que dizemos. O interdiscurso é a memória discursiva do dizer, ou seja, o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma de pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra (idem). Dentro dessa perspectiva em que o sujeito enuncia a partir de uma memória discursiva, o que é dito se filia a essa memória na medida em que, para que algo tenha sentido, é preciso que isso se sustente na historicidade do discurso, é preciso que isso já fale antes e em outro lugar, é preciso que haja um já-dito na sustentação do que é dito. Dessa maneira, a enunciação atualiza uma rede de sentidos, filiação interdiscursiva, no interior do interdiscurso. Isso implica afirmar que mesmo o que o sujeito não julga dizer significa em suas palavras devido a essa rede histórico-semântica posta em funcionamento por cada tomada de palavra, por cada ato enunciativo. 9

Mas precisamos entender também como se opera no e para o sujeito essa construção de sentidos em rede, resultando no próprio efeito-sujeito. Para tanto, é necessário perceber que o interdiscurso tem caráter de lembrança, mas também de apagamento. Parte da rede de sentidos que sustenta o dizer fica esquecida ou apagada no interdiscurso memória afetada pelo esquecimento (Orlandi 2005) - sem que o sujeito tenha acesso a ela; uma ausência necessária para que se dê espaço ao que está presente como proveniente do próprio sujeito. Esse processo se opera num desconhecimento (referente aos processos que determinam e constituem o próprio sujeito) que se funda num reconhecimento dele mesmo enquanto sujeito e também dos outros indivíduos em sujeito. Uma vez promovido esse reconhecimento, o processo de apagamento do lugar em que o sujeito é colocado se instaura e fica recalcado para o sujeito que ele ocupa um lugar, e que esse lugar é que o constitui como sujeito, restando a ele a ilusão do jásempre-lá, emergindo como sempre-sujeito e sempre-lá, apagam-se as determinações que levam o sujeito a ocupar o lugar que ocupa, assujeitando-se discursivamente. Para Lacan (1998), a linguagem antecede o sujeito e é o que subsidia sua emergência como tal. Esses apagamentos da anterioridade dos sentidos e da determinação interdiscursiva na constituição dos dizeres são chamados por Pêcheux de esquecimento. O autor divide e classifica os esquecimentos em duas ordens distintas, mas dependentes uma da outra: esquecimento nº 2 e esquecimento nº 1 4. Sobre o segundo esquecimento, Pêcheux afirma: Concordamos em chamar esquecimento nº 2 ao esquecimento pelo qual todo sujeito-falante seleciona no interior da formação discursiva que o domina, no sistema de enunciados, formas e seqüências que nela se encontram em relação de paráfrase um 4 Coloco o esquecimento 1 após o 2 para manter a ordem como aparecem no texto de Pêcheux. 10

enunciado, forma ou seqüência, e não um outro, que, no entanto, está no campo daquilo que poderia formulá-lo na formação discursiva considerada. (PÊCHEUX, 1988: 173- aspas e itálico do autor) Isso que é chamado seleção por Pêcheux configura um ato que se dá na forma de escolha de certos enunciados e apagamento do que não é selecionado, mas que não deixam de estabelecer relação com o que figura no enunciado. Porém, apaga-se para o sujeito a relação dos enunciados com outros enunciados também formuláveis em dada formação discursiva. Relação essa que constitui uma rede parafrástica da qual o sujeito se esquece. Como efeito do esquecimento 2, temos a produção da ilusão da realidade do pensamento. Tem-se a ilusão de uma correspondência direta entre palavra e mundo uma vez que se produz esse efeito ilusório de que o que é dito surge no momento do dizer, e de que esse dizer traduz o pensamento do sujeito quando este fala, apagando as filiações de sentido que sustentam o que se diz. Uma vez apagada a rede parafrástica que sustenta o dizer, apagam-se também as outras possibilidades de formulação dentro das formações discursivas. Esse apagamento é o que cria o efeito de unicidade na formulação do dizer, como se não se pudesse dizer outra coisa e de outra maneira. Esse efeito é que cria para o sujeito a ilusão de uma relação unívoca entre os sentidos, que parecem ser do mundo, e o dizer, como se as palavras traduzissem os sentidos que repousam nas coisas. Sobre o primeiro esquecimento, Pêcheux afirma: Por outro lado, apelamos para a noção sistema inconsciente para caracterizar um outro esquecimento, o esquecimento nº 1, que dá conta do fato de que o sujeito-falante não pode, por definição, se encontrar no exterior da formação discursiva que o domina. Nesse sentido, o esquecimento n º 1 remetia, por uma analogia com o recalque inconsciente, a esse exterior, na medida em que (...) esse exterior determina a formação discursiva em questão. (PÊCHEUX, 1988: 173 aspas do autor) 11

Esse esquecimento remete aos processos identificatórios do sujeito na(s) formação(ões) discursiva(s) que o domina(m). A formação discursiva se apresenta como o lugar de constituição dos sentidos e, consequentemente, dos sujeitos, que são interpelados em sujeitos-falantes uma vez que se identificam nessas formações discursivas. Estas são definidas por Pêcheux (1998:160) como aquilo que numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada, numa conjuntura dada, determinada pelo estado de luta de classes, determina o que pode e deve ser dito. O sujeito ganha sentido para si próprio e se constitui nesse processo identificatório com a formação discursiva. Mas, falar em identificação do sujeito em uma dada formação discursiva implica dizer que ao mesmo tempo em que o indivíduo 5 é interpelado em sujeito são apagadas para ele as outras formações discursivas que figuram em relação umas às outras no todo complexo das formações ideológicas; o emergir do sujeito numa dada formação discursiva promove o apagamento das outras formações discursivas provocando para ele o efeito de unicidade. Nesse momento, podemos entender em que consiste postular que a identidade não é algo definitivo. Esse processo de identificação é inacabado e acompanhado ininterruptamente de outros processos de identificação, ou seja, o sujeito se desidentifica de formações discursivas se identificando a outras e se contraidentificando a outras ainda. O não-assujeitamento total do sujeito nos permite apontar para o papel da resistência e da contradição como algo constitutivo do próprio processo de assujeitamento. Conforme Mariani, 5 O termo indivíduo é o que o próprio Althusser utiliza para explicar o processo de interpelação. Apesar de estar atento ao fato de que essa redação pode provocar, erroneamente, um entendimento de que há indivíduo mesmo antes de haver sujeito, opto por mantê-la. Neste trabalho, indivíduo é tomado como produto de algo que se consolida na modernidade e perdura na pós-modernidade. A não-utilização de termos como homem ou ser humanos se justifica pelo fato de que esses termos poderiam fazer remissão a uma concepção humanista de sujeito, o que seria inadequado nesse quadro teórico, uma vez que, como venho desenvolvendo, o sujeito cartesiano não é a forma como se entende, aqui, subjetividade. 12

nenhum processo de assujeitamento pode ser completo ou imutável até porque o sujeito, no todo social, não ocupa apenas uma (1) posição. Os mecanismos de resistência, ruptura (revolta) e transformação (revolução) são, assim, igualmente constitutivos dos rituais ideológicos de assujeitamento. (MARIANI, 1998: 25) Dessa maneira, há sempre algo que falha na cadeia significante, que resiste aos rituais ideológico que deveriam promover a uniformidade do semântico. Essa resistência possibilita que o sentido inesperado possa insurgir, que o non sense possa significar ou mesmo que o silêncio possa fazer sentido ou ainda que um outro sentido possa surgir. Ainda sobre essas falhas nos rituais ideológicos que constituem o próprio sujeito, Pêcheux afirma: O lapso e o ato falho (falhas do ritual, bloqueio da ordem ideológica) bem que poderiam ter alguma coisa de preciso a ver com esse ponto sempre-já aí, essa origem nãodetectável da resistência e da revolta: formas de aparição fugidias de alguma coisa de uma outra ordem, vitórias ínfimas que, no tempo de um relâmpago, colocam em xeque a ideologia dominante tirando partido de seu desequilíbrio. (PÊCHEUX, 1998: 301) É dessa forma, então, que entendemos o assujeitamento como algo inacabado (o que condiz com a noção de processo discursivo); como passível de lapsos e falhas; como algo que resiste e perpetua seu movimento. O esquecimento nº 1 também produz seus efeitos ilusórios. Tem-se a ilusão de ser centro do dizer (uma vez que sujeito e sentido se constituem numa dada formação discursiva apagando-se as outras). Dessa forma, o sujeito esquece não somente as redes parafrásticas do dito, mas também se produz como fonte do dizer. Esse esquecimento também é chamado de esquecimento ideológico, pois se dá na instância do inconsciente e é fruto de um efeito ideológico. Sobre a questão Orlandi nos diz que o esquecimento ideológico (...) é da instância do inconsciente e resulta do modo pelo qual somos afetados pela ideologia. Por esse esquecimento temos a ilusão de sermos origem do que dizemos, quando, na realidade, retomamos sentidos préexistentes.(orlandi, 2005:35) Até este momento do trabalho, venho defendendo uma posição que considera que os sujeitos somente os são porque passam pelo processo de interpelação. Tentemos 13

entender, então, que mecanismo é esse, ou seja, por que o sujeito toma a si e aos outros sujeitos como evidência; que processo é esse que permite que o sujeito diga eu ou é evidente que (evidência universal) como se existissem naturalmente e desde sempre. 2 Sujeito Ideológico A Análise do Discurso, enquanto teoria que toma os processos discursivos para entender as formações sociais, se constitui como uma teoria não-subjetiva da subjetividade que busca entender a constituição dos sujeitos nesses processos discursivos. Mas a constituição desses sujeitos também não se desvincula dos processos discursivos, o que acaba por gerar uma inserção deles no sistema de atribuição de sentido de caráter histórico das formações social. Passemos, então, ao desenvolvimento do conceito de interpelação para refletir sobre a entrada no simbólico e, consequentemente, a constituição do indivíduo em sujeito. Processos discursivos, aqui, são entendidos como o dinâmico das atribuições de sentido que constroem o simbólico; são os sentidos em circulação considerando não somente um momento dado, mas toda a história da circulação dos sentidos no social e no interdiscurso. Esses processos se sustentam num continuum que faz projeções tanto para o passado quanto para o futuro e se elaboram na incompletude, no dinamismo, nos movimentos intermináveis de retomada e atualização de sentidos; apontam para um caminho que não permite fechamento. Mas como entender o lugar que ocupa o sujeito nesse processo de discurso que se autodinamiza e se autorreformula? A inscrição do indivíduo no social pressupõe uma entrada em algo que já está em curso, em processo. Quando vimos ao mundo, os sentidos já estão em circulação; já 14

há um simbólico construído e riscando os desenhos das práticas sociais e das subjetividades. Ao nascer, somos inseridos nesse mundo de linguagem de forma a ocupar um espaço que já se antepõe a nós, que nos precede. É no simbólico que se instauram lugares para o sujeito, é nesse espaço complexo e dinâmico de relações de poder que se constroem posições a serem ocupadas pelo sujeito. Nessa medida, estamos diante de uma teoria não-subjetiva da subjetividade que designa os processos de imposição/dissimulação que constituem o sujeito, situando-o (significando para ele o que ele é) e, ao mesmo tempo, dissimulando para ele essa situação (esse assujeitamento) pela ilusão constitutiva da autonomia do sujeito, de modo que o sujeito funcione por si mesmo. (PÊCHEUX 1988: 133 aspas do autor) Falar, então, de uma teoria não-subjetiva do sujeito está em consonância com a destituição da posição de centralizador e controlador de si mesmo. Busca-se entendê-lo, o sujeito, como um elemento que se integra ao processo de forma assujeitada sem desconsiderar sua determinante importância e relevância. O sujeito só é sujeito porque se inscreve no simbólico, na linguagem e é essa inserção que lhe garante seu lugar de sujeito e sujeito do seu discurso. O que se defende aqui é que só há lugar para o sujeito dentro do processo discursivo, ele só se constitui se for no e para o discurso, ocupando posições inseridas e construídas nesse simbólico. Comecemos então a entender o que vem a ser a interpelação que convoca indivíduos a ocuparem posições de sujeito nos referindo à afirmação de que a ideologia interpela os indivíduos em sujeitos (Althusser, 1985). Como já vimos sustentando, os sujeitos tomam-se sujeitos, como uma evidência primeira, ou seja, não há espaço de dúvida para ele que possibilite que ele se veja de outra forma (não esquecendo que a falha faz parte de todo ritual), pois a própria interpelação faz com que essa emersão do indivíduo em sujeito não suponha o mecanismo de interpelação. O sujeito, ao se produzir como tal, já se formula como uma 15

evidência natural, como um desde-sempre-dessa-forma. (...) tanto para vocês quanto para mim, a categoria de sujeito é uma evidência primeira (as evidências são sempre primeiras): está claro que vocês, como eu, somos sujeitos (livres, morais, etc.).(althusser, apud PÊCHEUX, 1988: 153) O mecanismo ideológico, então, funciona nesse processo de promoção do apagamento para o sujeito da sua própria forma de se constituir enquanto sujeito. Ele surge como evidência para si devido ao efeito imaginário da ideologia sobre ele. A ideologia, dessa forma, se apresenta como o processo imaginário que provoca o efeito de naturalidade, de óbvio, de evidência, funcionando na relação da transparência tanto dos sujeitos quanto do sentido. É como se sujeito e sentido fossem dessa forma desde sempre e sem história. Esse apagamento, promovido pela interpelação, no qual o sujeito resulta de um processo, e não é uma evidência natural, constitui uma necessidade para que o processo possa se efetuar. Dessa maneira, a autonomia conferida ao sujeito enquanto potencialmente autossustentável só se opera no campo da ilusão que a interpelação ideológica produz para os próprios sujeitos. Ser sujeito significa, na sociedade pós-moderna, ser individualizado e particularizado em seu modo de existência. O sujeito de direito pós-moderno configura, nesse jogo discursivo, a possibilidade apresentada ao indivíduo para se tornar sujeito. Mas o que se procura levar em conta nesse trabalho é a historicidade na construção de como se tornar sujeito em determinada conjuntura sócio-histórica. É importante ressaltar o resultado do processo de interpelação ideológica que produz, concomitantemente, sujeito e sentido como evidências, um não existe sem o outro. Essa constituição se dá pelo processo chamado de identificação do sujeito em 16

uma formação discursiva como o espaço de determinação do sentido. Entender formação discursiva nos exige uma reflexão sobre linguagem e sentido. Nessa perspectiva, não haveria um sentido que fosse eternamente atrelado a uma unidade da língua. Já propusemos o desfazer do conceito saussuriano de indissolubilidade do signo linguístico. Não há nada que cole o significado ao significante de modo indissociável, o que temos são sentidos à deriva, passíveis de se acoplarem a significantes. O que Saussure chama de signo não pode, de forma alguma, ser entendido aqui como uma unidade definitiva e pronta. O signo não é, ele está signo, passível de se tornar outro a qualquer momento. Essa destituição do signo de sua posição de unidade primeira para a constituição dos sentidos faz vir à tona o significante como cadeia material que toma sentidos diferentes em espaços diferentes. Retomando Lacan e conjugando-o à análise do discurso, a mesma sequência material pode ganhar sentidos, não somente pelo deslizar incessante da cadeia, mas também dependendo de quem a sustenta e onde ela é sustentada. O sentido, então, fica dependente de uma formação discursiva, já definida neste trabalho. Dessa maneira, é na formação discursiva que uma sequência linguística ganha sentido. Não há sentido nas palavras ou expressões, ele repousa na sustentação da linguagem dentro de uma formação discursiva. Portanto, mais uma vez, falar do processo de identificação dos sujeitos com as formações discursivas que os dominam significa entender como os indivíduos são interpelados em sujeitos do seu próprio dizer. Sujeito e sentido se constituem ao mesmo tempo nas formações discursivas como se nascessem a partir daquele momento, havendo um apagamento do complexo dessas formações discursivas imbricadas no 17

interior das formações ideológicas, ou seja, apaga-se para o sujeito que há outras formações discursivas em relação umas com as outras e, portanto, outros sentidos em disputa. Apaga-se para o sujeito o exterior da formação discursiva em que ele se constitui como se não houvesse outra possibilidade de sentido que constitua a subjetividade. Lembro que esse processo não é estático e nem o assujeitamento é total. O sujeito não está fadado ao engessamento, uma vez que a falha no ritual ideológico promove o efeito de movência, que põe a própria subjetividade no processo discursivo. Ainda sobre esse apagamento Pêcheux (1998) nos diz que, no espaço de reformulaçãoparáfrase de uma formação discursiva - espaço no qual, como dissemos, se constitui o sentido -, efetua-se o acobertamento do impensado (exterior) que o determina. Essa determinação do sentido pelo exterior, da qual nos fala o Pêcheux, remete ao todo complexo das formações ideológicas com dominante que já havíamos mencionado anteriormente. As formações discursivas estão imbricadas de forma complexa nas formações ideológicas estabelecendo entre si um jogo de lutas que se define pela subordinação-contradição-domínio. Esse todo complexo das formações ideológicas que comportam as formações discursivas se define por promover um jogo de relação a em seu interior; uma formação discursiva significa num espaço de relação com as outras formações discursivas. Essa afirmação se estende ao entendimento da constituição do sentido, que também se define como aquilo que está em relação a um outro sentido. Por isso, fala-se em uma determinação externa do sentido que se constitui no interior de uma formação discursiva, pois ele só é sentido por estar imerso nesse jogo relacional com outros sentidos e outras formações discursivas. Mas pelo acobertamento do impensado todo o exterior se apaga fazendo com que o sujeito se produza dono do seu dizer, uma vez que esse dizer está atrelado a um sentido 18

que também se torna unívoco por se produzir em uma formação discursiva e não em outra. Como consequência desse acobertamento, que anteriormente foi explicado pela noção de esquecimento, sujeito e sentido se produzem como transparentes e evidentes. Evidências primeiras que produzem sujeitos no controle do dizer, na origem do pensamento, no centro da racionalidade. Esse efeito ilusório, e necessário, é o produto do processo ideológico na interpelação dos sujeitos, trabalhando em apagamentos que dão à subjetividade seu caráter de centralidade. CONCLUSÃO Nessas reflexões, pensamos sobre as bases teóricas que sustentas a noção de subjetividade em análise do discurso, para um entendimento da categoria sujeito destituída de seu posto de controle do dizer. Toma-se, então, o sujeito como algo produzido pela linguagem, pelo discurso, clivado pelo inconsciente; como efeito, e não causa de algo que o antecede e é exterior a ele e que marca os próprios limites da subjetividade. Assim como a cadeia significante ou o próprio discurso, o sujeito se apresenta como uma categoria que se sustenta num deslizar sem fim que faz dos processos identificatórios algo sempre porvir, algo que só tem fim onde recomeça o próprio sujeito. Recebido em setembro de 2010 Aprovado em outubro de 2010 19

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