O CEMITÉRIO DOS INGLESES DA CIDADE DE SANTOS - SP. Lincoln Etchebéhère Júnior Doutor em História pela USP e professor da Universidade São Marcos



Documentos relacionados
OITAVO ANO ESINO FUNDAMENTAL II PROFESSORA: ROSE LIMA

Colégio Senhora de Fátima

XIII Encontro de Iniciação Científica IX Mostra de Pós-graduação 06 a 11 de outubro de 2008 BIODIVERSIDADE TECNOLOGIA DESENVOLVIMENTO

Nele também são averbados atos como o reconhecimento de paternidade, a separação, o divórcio, entre outros, além de serem expedidas certidões.

SEDUC SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÃO DE MATO GROSSO ESCOLA ESTADUAL DOMINGOS BRIANTE TÂNIA REGINA CAMPOS DA CONCEIÇÃO

O que são Direitos Humanos?

RELACIONAMENTO JURÍDICO DO ESTADO BRASILEIRO COM INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS, NO QUE CONCERNE À EDUCAÇÃO

Salão Nobre da Associação. Salão das Sessões

A vinda da família real e o governo joanino no Brasil

Ensino Religioso no Brasil

Igreja!de! Nossa!Senhora!do!Carmo! Da!Antiga!Sé!

Movimentos de Pré- Independência e Vinda da Família Real. História C Aula 08 Prof. Thiago

Capítulo. Organização político- -administrativa na América portuguesa

Proposta para a apresentação ao aluno. Apresentação Comunidade 1

3.3 O Largo do Carmo e seu entorno

PROJETO LEI Nº Autoria do Projeto: Senador José Sarney

VISITA PASTORAL NA ARQUIDIOCESE DE MARIANA

HISTÓRIA ª FASE 2009

100 anos do Arquivo Histórico Municipal: Painel 11 / 15 um olhar sobre um precioso acervo

Iniciar o processo de casamento

Shopping Iguatemi Campinas Reciclagem

MATRICULA CASOS ESPECIAIS

Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre Brasil University of New South Wales Sydney Austrália Universidade do Povo Macau - China

INSTRUMENTO NORMATIVO 004 IN004

PROCESSO DE INDEPENDÊNCIA DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

CAPÍTULO XIII RELAÇÕES INTERNACIONAIS

RELATÓRIO 203 ASSUNTO: 79ª REUNIÃO DO COPISS COORDENADOR. 1. Participantes da 79ª reunião do COPISS; 2. Leitura e aprovação da ata 78ª reunião;

COMO É O SISTEMA DE ENSINO PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO CANADÁ

Estudo Dirigido - RECUPERAÇÃO FINAL

O Presidente da República Portuguesa, S. Ex.ª o Sr. Prof. Francisco de Paula Leite Pinto, presidente da Junta de Energia Nuclear; e

EDUCAÇÃO E PROGRESSO: A EVOLUÇÃO DO ESPAÇO FÍSICO DA ESCOLA ESTADUAL ELOY PEREIRA NAS COMEMORAÇÕES DO SEU JUBILEU

Convenção n.º 87 CONVENÇÃO SOBRE A LIBERDADE SINDICAL E A PROTECÇÃO DO DIREITO SINDICAL

Segundo Acordo Complementar à Convenção entre Portugal e o Luxemburgo sobre Segurança Social, assinada em 12 de Fevereiro de 1965

1.1. Segurado (Plano Individual): é a pessoa física, que está mantida no seguro de vida em Grupo contratado pela empresa;

São Paulo ganha dos companheiros. São atribuías a S.Paulo 14 cartas. Umas são dele mesmo: Romanos, 1 e 2 aos Corintios, a Filemom, aos Gálatas, aos

Mineração e a Crise do Sistema Colonial. Prof. Osvaldo

Usos e Costumes. Nos Dias Atuais TIAGO SANTOS

REGULAMENTO DA PROMOÇÃO COMERCIAL MODALIDADE INCENTIVO

TODAS AS INFORMAÇÕES SÃO EXTREMAMENTE IMPORTANTES!!! CASAMENTO CIVIL (Brasileiros)

Cap. 12- Independência dos EUA

RELAÇÃO DE DOCUMENTOS PESSOA JURÍDICA

MEMÓRIA URBANA DE PALMAS-TO: LEVANTAMENTO DE INFORMAÇÕES E MATERIAL SOBRE O PLANO DE PALMAS E SEUS ANTECEDENTES

CONVENÇÃO (111) SOBRE A DISCRIMINAÇÃO EM MATÉRIA DE EMPREGO E PROFISSÃO* A Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho,

REGULAMENTO VALE-VIAGEM CVC

Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre Brasil University of New South Wales Sydney Austrália Universidade do Povo Macau - China

A CONTABILIDADE NO BRASIL GUARDA-LIVROS???? Primeiro curso técnico Primeiro curso superior 1946

PERÍODO DA ENFERMAGEM NO BRASIL. PROFª Mestre Maria da Conceição Muniz Ribeiro

Noções de Direito Civil Personalidade, Capacidade, Pessoa Natural e Pessoa Jurídica Profª: Tatiane Bittencourt

DECRETO nº de

Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio

Resumo das Interpretações Oficiais do TC 176 / ISO

27. Convenção da Haia sobre a Lei Aplicável aos Contratos de Mediação e à Representação

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 62 da Constituição, adota a seguinte Medida Provisória, com força de lei:

CADERNO DE EXERCÍCIOS 1G

INSTRUÇÃO NORMATIVA DREI Nº 7, DE 5 DE DEZEMBRO DE 2013

Separação entre Estado e Igreja (20 de Abril de 1911) Cota CMPV/0015 Diários do Governo

MANUAL DE INSTRUÇÃO PARA DIVULGAÇÃO DE ATOS OU FATOS RELEVANTES

Proposta de Lei da Imigração Inovações que mudam a vida das pessoas

Restituição de cauções aos consumidores de electricidade e de gás natural Outubro de 2007

NOSSOS BENEFÍCIOS FUNERAL (INDIVIDUAL, FAMILIAR E MULTI-FAMILIAR)

A Preservação do Patrimônio Cultural na Esfera Municipal

CONTEXTO HISTORICO E GEOPOLITICO ATUAL. Ciências Humanas e suas tecnologias R O C H A

MINAS GERAIS 12/04/2008. Diário do Judiciário. Portaria 2.176/2008

Departamento de Água e Esgoto Sanitário de Juína

DOCUMENTOS DO VENDEDOR PESSOA FÍSICA. Cópia da Carteira de Identidade com o nome correto, conforme comprovante de estado civil atualizado;

CAPÍTULO I DISPOSIÇÕES PRELIMINARES

ROTEIRO DE RECUPERAÇÃO DE HISTÓRIA

ATA Nº. 018/2015 Aos 09 dias do mês de junho do ano de dois mil e quinze, nesta cidade de Riqueza, Estado de Santa Catarina, no Plenário da Câmara de

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1891

De que jeito se governava a Colônia

ASSUNTO: Formação de Professores para o Ensino Religioso nas Escolas Públicas de Ensino Fundamental

O Cemitério Municipal São Jose: espacialidade, religiosidade e seus vários enfoques culturais

Alegre. Câmara Municipal. de Porto PROC. N. 5555/05 P.L.L. N. 261/05 EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS

A CRÍTICA AO ATO DE SUPERIOR E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO

A Literatura no Brasil está dividida em duas grandes eras: Que parâmetros foram utilizados para estabelecer tais era?

ISSN ÁREA TEMÁTICA: (marque uma das opções)

MUNICIPIO DE REDONDO NORMAS DE ALIENAÇÃO DE LOTES DA ZONA INDUSTRIAL DE REDONDO - 2ª FASE CAPÍTULO I DISPOSIÇÕES GERAIS

Âmbito Territorial: designa a abrangência territorial em que os serviços, em suas várias modalidades, serão prestados.

CÂMARA MUNICIPAL DE SABOEIRO-CE

FEVEREIRO 2015 BRASÍLIA 1ª EDIÇÃO

Relatório de Atividades do Trabalho Social Residencial Recanto dos Pássaros Limeira/SP

Deferimento de Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) pela Junta Comercial

Para extinção das dívidas e/ou saldos devedores do contrato com fundamento no art. 7º da MP nº 496/2010:

TUDO COMEÇOU... Após alguns meses...

Certificado Digital - Pessoa Jurídica. DOCUMENTOS NECESSÁRIOS DA PESSOA JURÍDICA (CNPJ A1 ou CNPJ A3)

Diferença entre a Bíblia Católica e a Protestante

Lei Municipal N.º 2.956

Exerc ícios de Revisão Aluno(a): Nº:

Ref.: Procedimentos de alteração dos Fundos de Investimento cadastrados na Base de Dados da ANBIMA.

Capital- Montevidéu. Língua oficial: Espanhol. Governo: República presidencialista. Presidente: José Mujica. Vice-presidente: Danilo Astori

Ata n. 25 da Sessão Ordinária da Câmara Municipal de Medeiros Neto BA.

DIREITO EMPRESARIAL PROFESSORA ELISABETE VIDO

Edital n.º 3. Informa-se que o mesmo entrará em vigor 15 dias após a publicação deste edital no Diário da República.

O Dever de Consulta Prévia do Estado Brasileiro aos Povos Indígenas.

ANEXO 5 TERMO DE CONSTITUIÇÃO DE CONSÓRCIO

DA EMISSÃO DAS DEBÊNTURES. Artigo com redação dada pela Instrução CVM nº 307, de 7 de maio de 1999

CASA PRONTA. Perguntas & Respostas

Reavaliação: a adoção do valor de mercado ou de consenso entre as partes para bens do ativo, quando esse for superior ao valor líquido contábil.

PROJETO DE LEI N.º 320/XII/2.ª. Reorganização Administrativa do Território das Freguesias. Exposição de Motivos

Transcrição:

Lincoln Etchebéhère Júnior Doutor em História pela USP e professor da Universidade São Marcos Marcelo Tette Lopes Mestre em Educação. Administração e Comunicação pela Universidade São Marcos

Resumo A presença de protestantes no período colonial brasileiro foi escassa até iniciar o século XIX, quando da transferência da corte portuguesa para o Brasil. Os Tratados de Abertura dos Portos às Nações Amigas assinados entre os reinos de Portugal e Inglaterra em 1810, possibilitou na presença de imigrantes protestantes de origem inglesa em Santos e no Brasil. Em virtude do predomínio do catolicismo no país e do fato da Igreja Católica ser a religião oficial do Estado, os protestantes enfrentaram várias dificuldades ao longo do século XIX. Entre elas, a falta de cemitérios seculares fora dos adros das igrejas, para sepultamento de protestantes. Deste fato surgiu a necessidade de construir cemitérios particulares próprios para os colonos protestantes residentes no Brasil. Palavras-chave: cemitérios; protestantes; Santos. Abstract The presence of Protestants during the colonial period was low to start the nineteenth century, when the transfer of the Portuguese court to Brazil. The Opening of Treaty Ports to Friendly Nations signed between the kingdoms of Portugal and England in 1810, allowed the presence of immigrants of English Protestants in Santos and Brazil. Because of the predominance of Catholicism in the country and the fact that the Catholic Church is the official state religion, the Protestants have faced several difficulties during the nineteenth century. Among them, the lack of secular cemeteries outside the churchyards of the churches for burial of Protestants. From this fact arose the need to build their own private cemetery for the Protestant settlers living in Brazil. Keywords: cemetery; protestants; Santos. 2

Introdução Os ingleses começaram a chegar ao Brasil muito antes da abertura dos portos às nações amigas, decretada pelo príncipe regente D. João, em janeiro de 1808, após sua chegada à cidade de Salvador. Nesse contexto, sua presença em terras brasileiras não era como imigrantes, mas sob a forma de piratas, aventureiros e negociantes 1 que desembarcavam nas praias descobertas por portugueses. Mas foi o decreto promulgado pelo príncipe português na Colônia, que marcou o início da imigração e fundação de colônias inglesas no Brasil, que acabou influenciando não só a economia, como também a vida social e cultural do povo local 2. Assim, por intermédio dos Tratados de Aliança e Amizade, de Comércio e Navegação e de regulamentação das relações postais entre os reinos de Portugal e Inglaterra, assinado em 1810, que houve a possibilidade de imposição de vantagens aos novos colonos, como: o direito da extraterritorialidade, que permitia aos súditos ingleses radicados em domínios portugueses serem julgados aqui por juízes ingleses, segundo a lei inglesa; o direito de construir cemitérios e templos protestantes 3, desde que sem a aparência externa de templo; a garantia de que a Inquisição não seria instalada no Brasil, com o que a Igreja Católica perderia o controle das almas. Essas exigências favoreceram no aumento da influência econômica dos ingleses no comércio e depois no processo industrial brasileiro, possibilitando a criação das primeiras fundições modernas, primeiras estradas de ferro, primeiros telégrafos, 1 FREIRE, Gilberto. Ingleses no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1948, p. 34. 2 A influência britânica sobre a vida, a paisagem e a cultura do Brasil foi largamente estudada por Gilberto Freire, que define as relações entre a Grã-Bretanha e o Brasil ainda semi-colonial como "mais ou menos imperiais". 3 Praticamente desconhecida até a vinda da Família Real, começaram a ser permitidas, de maneira crescente, até a liberdade plena do fim do Império, mas sempre em relação a comunidades estrangeiras. Dos ingleses do tempo de D. João VI, aos alemães do início da imigração estrangeira em massa, os primeiros pastores vieram, sempre, como capelães de comunidades alienígenas. Embora sempre houvesse algum tipo de catequese, foi no século XX que, por influência americana, batistas e metodistas se difundiram de maneira mais ou menos intensa, constituindo ilhas protestantes em áreas tradicionalmente católicas. TÔRRES, João Camilo de Oliveira. História das idéias religiosas no Brasil: São Paulo: Grijalbo, 1968, p. 86. 3

primeiras moendas de engenho moderno de açúcar, primeira iluminação a gás, e também os primeiros cemitérios extramuros da sociedade brasileira. O primeiro cemitério extramuros de Santos Santos, por ser uma vila portuária, também teve piratas, comerciantes, aventureiros e viajantes escritores ingleses, que gravaram em seus livros a descrição sobre a região. Mas somente em meados de século XIX a colônia inglesa começou a formar-se na cidade, com a instalação de empresas de transporte, iluminação, telégrafo e agências de bancos. A formação da nova colônia, e consequentemente a inclusão de grande número de ingleses na sociedade santista, vieram a causar grande divergência político-religiosa em torno dos sepultamentos dos membros não-católicos da colônia estrangeira 4. Em virtude do predomínio do catolicismo no País e pelo fato de a Igreja Católica ser a religião oficial do Estado brasileiro, seria necessário um local apropriado para o sepultamento desses colonos protestantes, que não mais poderiam ser enterrados no cemitério situado nos fundos da Igreja do Valongo, único local disponível para sepulturas de escravos e pobres não associados em algumas das irmandades. Acredita-se que, durante algum tempo, todos os não católicos tiveram como destino certo o cemitério do Valongo, e, assim, teriam obtido um sepultamento parecido com todos os outros excluídos enterrados no mesmo campo santo, já que poderiam se misturar em um mesmo espaço os pobres, indigentes, escravos e praticantes de outras religiões. Como já acontecia na cidade do Rio de Janeiro, os mortos estrangeiros necessitavam de um local próprio para seu sepultamento, conforme comenta Reis: Nem todo mundo era sepultado nas igrejas. Os protestantes europeus e norte-americanos, por exemplo, tinha seus próprios cemitérios, em geral fora do perímetro urbano, no estilo dos 4 Assim como os católicos, os protestantes precisavam ter um lugar digno para ser sepultados, e com isto, preservar sua cultura e crendices. 4

cemitérios rurais norte-americanos, modelo que sucedeu aos graveyards dos templos protestantes. 5 Essas divergências deram início à construção do primeiro cemitério nãocatólico e fora dos adros das igrejas da cidade de Santos. Em ata de 15 de julho de 1844, o Sr Frederico Fomm apresentou um requerimento dos súditos protestantes existentes na cidade santista, solicitando permissão para construir, com recursos próprios, um cemitério para os sepultamentos dos membros da comunidade protestante. A Câmara de Santos nomeou em ata de 13 de agosto de 1844 6, uma comissão para julgar o requerimento do Sr Fomm, que aprovou a construção do referido cemitério com a condição de ser construído fora dos limites urbanos, obedecendo a partes, da lei imposta pelo imperador D. Pedro I, em 1º de outubro de 1828. A grande necessidade dos súditos protestantes de em construir seu cemitério particular, resolvendo a questão dos enterros de seus assemelhados, foi caracterizada pela rapidez na compra e no registro do terreno. Assim, em 21 de agosto de 1844, apenas oito dias após a autorização da Câmara Municipal da cidade de Santos, foi realizada a compra do terreno pela quantia de cinqüenta mil réis, para nele se fazer um cemitério. A compra foi em nome de todos os interessados, figurando entre eles o Sr. Gustavo Backheusen, como um simples procurador de todos os súditos protestantes da cidade. 7 5 REIS, João José. A Morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 129. 6 A Ata de 13 de agosto de 1844, foi lido o requerimento de Frederico Foom pedindo a permissão de estabelecer um cemitério para o enterramento dos protestantes e concedido o alvará de licença, assinado pelos vereadores Montes Carmo Silva, Xavier Martins Sá Júnior, Presidente Nébias Ferreira Vergueiro e Carvalhares, porém a Câmara aceitou a condição que fosse construído fora dos limites urbanos. SANTOS, Francisco Martins dos. História de Santos. São Vicente, SP: Caudex, 1986, p. 47. 7 Segundo a escritura de venda e compra, do 1º Cartório de Notas de Santos, começaram no dia 21 de agosto de 1844, tendo Frederico Fomm, na qualidade de administrador liquidador da Casa Fallida de Aguiar, Viúva, filhos e Cia., como vendedor e Gustavo Backhensen, como comprador, de um terreno situado ao pé da Vila Nova, subúrbio de Santos, às margens do mar Salgado e rio dos Soldados com vinte braças de largura, e dezoito de fundos, pela quantia de cinqüenta mil réis, para nele se fazer um cemitério declarando que a dita compra do terreno é em nome de todos os interessados para o estabelecimento, do dito cemitério. Idem. 5

A escritura de compra e venda do terreno foi registrada em 11 de junho de 1901, no Primeiro Cartório de Imóveis de Santos, constando no livro 3-C de transcrição número 6.100, folhas 193. 8 O terreno localizava-se nos arrabaldes da cidade, 9 junto às margens do mar Salgado e rio do Soldado, na parte extrema do Paquetá, próximo ao canal da baía de Santos, onde atualmente localiza-se o Mercado Municipal, atual Praça Iguatemi Martins, próximo ao Cemitério do Paquetá. Dessa maneira foi criado o primeiro cemitério para protestantes 10 da Província de São Paulo, como ressalta Francisco Martins dos Santos: (...) fundava a colônia inglesa de Santos o chamado cemitério dos Protestantes nascido de uma divergência religiosa local, em torno do sepultamento de um membro da mesma colônia, autorização dada pela Câmara com a condição de ser criado fora dos limites urbanos; daí a sua localização junto aos lados do rio do Soldado, extremos do Paquetá (Mercado atual). 11 A construção do cemitério dos estrangeiros estava adaptado à concepção de uma necrópole longe da cidade, integrado a um cenário rural que estava em moda na Europa e sobretudo nos Estados Unidos. 12 Esse cemitério, construído longe das áreas urbanas, caracterizou-se por ser bem dimensionado para as necessidades da comunidade estrangeira, possuindo em sua volta muros de alvenaria de pedra e estava localizado em uma área de difícil acesso, próximo ao canal da cidade, local que constantemente permanecia alagado, contrariando as orientações dos médicos e da lei criada em 1º de outubro de 1828 pelo imperador D. Pedro I. 8 A escritura de compra e venda do terreno do cemitério dos protestantes só foi registrada em 11 de junho de 1901, pois no período imperial brasileiro não existia cartório, ficando a paróquia local responsável pelos registros. Assim, somente com o advento da República é que foram criados cartórios em todo o território nacional. Idem. 9 BARBOSA, Gino Caldatto. Santos e seus arrabaldes. São Paulo: Magma, 2004, p. 46. 10 Criado para enterrar os mortos de origem protestante, recebeu o nome de Cemitério dos Protestantes, Cemitério dos Estrangeiros ou ainda Cemitério dos Ingleses. 11 SANTOS, op. cit., p. 378. 12 REIS, op. cit., p. 130. 6

No início da década de 1850, a Srª Bárbara Fomm doou, à Fundação ou Instituição do Cemitério dos Protestantes de Santos, dez braças de terras, um terreno próximo ao antigo, já pertencente a eles. No total, o terreno ficou com forma de retângulo, com a área superficial de 738m², mais ou menos, medindo 38,65m na frente e nos fundos; e em cada lado, 19,10m. Assim, o terreno ficou de frente para a Rua Henrique Dias, do outro lado para a Praça Iguatemy Martins, e nos fundos com a própria Cia. Docas de Santos. Com a Proclamação da República em 1889, houve a separação entre Igreja e Estado e a plena secularização dos cemitérios, e a partir de então a administração dos cemitérios passou a ser de caráter laico, de responsabilidade do município. Nesse contexto, a manutenção de um cemitério próprio para os protestantes perdeu a finalidade, pois protestantes e católicos passaram a utilizar o mesmo espaço físico. Figura 1. Foto do Cemitério dos Estrangeiros em 1865 Foto do Cemitério dos Protestantes em 1865. 13 13 BARBOSA, op. cit., p. 119. 7

Figura 2 Foto do Cemitério dos Estrangeiros, ao lado do rio do Soldado Cemitério dos Protestantes ao lado do rio do Soldado 14 A transferência do Cemitério dos Ingleses para o Paquetá Logo após a Proclamação da República em 1889, o governo provisório do marechal Deodoro da Fonseca assinou o decreto de separação entre Igreja e Estado, pondo fim ao sistema do Real Padroado 15, reconhecendo o caráter leigo do Estado e garantindo a liberdade religiosa em todo o território nacional. A promulgação da primeira Constituição Republicana do Brasil, em 24 de fevereiro de 1891, deu a legalidade necessária aos atos do novo governo. Assim, a Constituição em seu parágrafo 5º do art. 72 assegurava aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito de liberdade religiosa, e reafirmava a 14 Pertencente ao arquivo do Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Santos (CONDEPASA). 15 O Estado português teve, com relação à Igreja Católica, uma posição de certa dinâmica, uma espécie de entendimento entre a Coroa portuguesa e a Igreja, pelo qual a Igreja tinha poderes espirituais, mas o Estado tinha o controle na nomeação de eclesiásticos e também responsabilidade pelo pagamento do clero que vinha para o Brasil. Sobre o assunto ler: TÔRRES, op. cit., pp. 29 34. 8

secularização dos cemitérios brasileiros, possibilitando a união entre católicos e protestantes após a morte: Art. 72 A Constituição assegura a brasileiros e estrangeiros residentes do país a inviolabilidade dos direitos à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: 5º - Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as leis. 16 Esses fatores foram de grande importância na aceitação, por parte da população, de cemitérios seculares sem distinção de credo religioso, possibilitando, dessa forma, na ocupação do espaço cemiterial por diferentes entidades religiosas. No início da década de 30 a cidade de Santos que também possuía um cemitério privativo dos estrangeiros protestantes e por sua localização ser de grande valor econômico para o desenvolvimento da área portuária, foi possível a venda do terreno do Cemitério dos Protestantes. A Fundação ou Instituição do Cemitério dos Estrangeiros em Santos, interessada em vender a área do cemitério, realizou uma assembléia-geral em 24 de dezembro de 1931, cuja ata 17 foi registrada sob nº 46, no livro C, nº 1, na página 431, no Cartório de Registro Especial de Títulos e Documentos da Comarca de Santos. Na assembléia ficou decidido que o administrador estava autorizado a aceitar a oferta de 35.000 contos de réis, feita pela Companhia Docas de Santos. Para possibilitar a venda do terreno, o administrador da Fundação do Cemitério dos Protestantes tratou de obter da Prefeitura Municipal de Santos a permissão para que fossem levantados os cadáveres desse cemitério e transportados para o Cemitério do Paquetá. Assim, a Prefeitura de Santos despachou, em 19 de janeiro de 1933, a ordem para transferir os restos mortais dos cadáveres enterrados no Cemitério dos Estrangeiros para o Cemitério do Paquetá. Em 25 de março de 1934, a Associação do Cemitério dos 16 Disponível em: <http://pt.wikisource.org/wiki/constitui%c3%a7%c3%a3o_de_1891_dos_estados_unidos_do_ Brasil/IV>. Acessado em 17-9-2009. 17 Ver Anexo D, p.193. 9

Estrangeiros em Santos publicou uma nota no jornal A Tribuna de Santos, com os seguintes dizeres: Associação do Cemitério dos Estrangeiros em Santos São convidadas todas as pessoas que tenham parentes inhumados neste cemitério, e queiram retirar seus despojos, a fazerem-no prazo de 10 dias, findo o qual esta Associação fará o recolhimento dos mesmos a uma urna especial, que será construída na necrópole do Paquetá. Os interessados poderão dirigir-se ao zelador, à Praça Marquês de Monte Alegre n. 4. Santos, 25 de março de 1934. 18 Após o tempo informado no anúncio, os despojos do Cemitério dos Estrangeiros foram colocados na campa nº 358 19 do Cemitério do Paquetá, possibilitando a venda da área do antigo cemitério, e em 23 de setembro de 1936 era lavrada a escritura de compra e venda do terreno do Cemitério dos Protestantes pela Companhia Docas de Santos. Segundo a escritura de compra e venda, compareceram no dia 23 de setembro de 1936, no 6º Cartório de Notas, como outorgante vendedora a Fundação ou Instituição do Cemitério dos Estrangeiros em Santos, representada pelo seu administrador Sr R. A. Sandall, e como outorgada compradora a Companhia Docas de Santos, com sede no Rio de Janeiro, representada por seu inspetor geral, Dr. Ismael Coelho de Souza. O contrato informa ainda que a Fundação do Cemitério havia obtido o alvará de licença em 13 de agosto de 1844 para o funcionamento do cemitério, e que havia comprado o terreno em 21 de agosto de 1844, e que ainda recebera como doação da Srª Bárbara Fomm, em 1º de novembro de 1850, mais dez braças de terreno contíguo ao existente, passando o terreno a fazer parte do referido cemitério, que não era utilizado havia muitos anos. Assim, o terreno com área superficial de 738m², localizado no perímetro urbano, foi vendido à Companhia Docas de Santos pelo valor de 35.000 contos de réis. Assinaram o contrato o Sr. Luiz Jorge París, ajudante; o Sr Álvaro Pinto 18 Anúncio publicado em 27 de março de 1934 no jornal A Tribuna de Santos. 19 Ver Figuras 3 e 4, pp. 8 e 9. 10

da Silva Novaes, tabelião interino, e os Srs. R. A. Sandall, Ismael Coelho de Souza, Máximo Ribeiro dos Santos Júnior e Amilcare Rienzi. Com a venda do terreno, o jazigo de número 358 do Cemitério do Paquetá passou a representar a comunidade protestante da cidade de Santos, mantendo na lembrança da sociedade santista o referencial direto da história dos imigrantes estrangeiros, homens e mulheres que foram de grande importância para a evangelização do povo santista. A venda do terreno onde se localizava o Cemitério dos Protestantes não o excluiu da história e da sociedade santista, pois sua representação no Cemitério do Paquetá movimenta o interesse da comunidade de preservar sua lápide. No intuito de preservação da memória dos imigrantes estrangeiros da cidade de Santos, o Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Santos (CONDEPASA) tombou, em 6 de maio de 1998, por intermédio da Sra. Wilma Therezinha Fernandes de Andrade, então secretária de Educação de Santos, pela Resolução nº SC 01/98, como bem cultural de interesse histórico e artístico o Cemitério do Paquetá, abrangendo o jazigo do Cemitério dos Estrangeiros de Santos. O Cemitério dos Protestantes da cidade de Santos foi um dos primeiros cemitérios na Província de São Paulo construídos dentro dos princípios da lei de higienização, de 1º de outubro de 1828, que serviu de base para a construção do Cemitério do Paquetá. 11

Figura 3. Campa do Cemitério dos Estrangeiros Fonte: acervo do autor. 12

Figura 4. Placa da campa do Cemitério dos Estrangeiros Fonte: acervo do autor. Conclusão O Cemitério dos Estrangeiros da cidade de Santos, SP, criado em 1844, devido a divergências políticas e religiosas local, foi um dos primeiros cemitérios brasileiros a ser construído nos padrões da Lei de 28 de outubro de 1828, período de grande preocupação com a higiene e a saúde pública. Este cemitério, também foi um dos primeiros a contemplar a população protestante que se firmava em território santista, e que serviu de base para a construção do Cemitério do Paquetá. Sua extinção foi uma perda irreparável para a historiografia religiosa brasileira, mas sua campa representativa criada no Cemitério do Paquetá preserva a memória dos primeiros estrangeiros a residirem em Santos. Bibliografia 13

ALMEIDA, Fernando H. Mendes. Legislação Brasileira. São Paulo: Itatiaia; 1963. BARBOSA, Gino Caudato. Santos e seus arrabaldes: São Paulo: Magma, 2004. FREIRE, Gilberto. Ingleses no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1948. REIS, João José. A Morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. SANTOS, Francisco Martins dos. História de Santos: Poliantéia Santista: São Vicente, SP: Caudex, 1986; vol. 1, 2 e 3. 14