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Transcrição:

O que a escrita de Marguerite Duras ensina sobre o inominável Raquel Shirlei Ferreira de Souza 1 A escrita vem como o vento, nua, é de tinta, A escrita, e passa como nada mais passa na vida, nada, exceto ela, a vida. DURAS Marguerite Duras, como ficou conhecida a escritora francesa Marguerite Donnadieu, nasceu em 1914 em Gia-dinh, Indochina, filha de professores franceses emigrados, os quais além dela tiveram dois filhos: seu irmão mais velho, oportunista e cruel, e o irmão mais novo, frágil e a quem ela era ligada profundamente. Duras iniciou a sua obra aos 29 anos e até a sua morte, em 1996, escreveu cerca de cem livros, entre narrativas, roteiros para filmes, romances e teatro. Viu a desestruturação familiar, com a morte do pai, o vício das drogas em seu irmão mais velho e a loucura da mãe, revelados no livro O amante, cuja narrativa apresenta a sua primeira experiência sexual aos 15 anos e meio de idade, com o amante chinês. Marcada pela morte de seu irmão mais novo na guerra do Japão - morreu sem nenhuma sepultura... e continua:...atirado na fossa dos mortos, sem uma palavra, sem uma frase... (Duras, 1994, p.55); marcada pela pobreza; pela obsessão da mãe em se tornar rica - Tive essa sorte de ter uma mãe desesperada de um desespero tão puro que nem mesmo a felicidade da vida, por mais intensa que fosse, chegava a distraí-la totalmente dele. ; por sua partida para Paris para não mais regressar à Ásia; por seus muitos amantes; pela solidão e a escrita para não enlouquecer. Duras engajou-se politicamente no cenário público, destacou-se no teatro e no cinema, dirigiu filmes, amou. Entre alguns casamentos, muitos amantes, o alcoolismo, o horror a Paris, a paixão pela casa de Nêauphle, pode, neste local de solidão, escrever seu último livro publicado por ela, Escrever (1994). Todas essas marcas nos livros, no teatro, no cinema, através de seus relatos autobiográficos, testemunhos e a ficção, nos denunciam como a escritora trata da escrita, da palavra buraco, com seus vazios e incompletudes. O encontro com Duras é sedutor, sua escrita nos fisga, o caminho é praticamente sem volta, justamente porque marca o leitor que a escolhe. Aqui faremos um corte e seguiremos uma trilha cujo o ponto de partida é o impossível, o inacessível - significantes insistentes na obra de Duras e também na psicanálise. O ponto de chegada é a escrita, e o caminho é a sua última obra publicada em vida, o livro Escrever. 1 Psicanalista praticante. Mestre em Letras na linha de pesquisa Linguística e Psicanálise (UFPB). Colaboradora da Delegação Paraíba da Escola Brasileira de Psicanálise (DPB/EBP).

As relações entre a literatura e a psicanálise são contemporâneas ao surgimento desta última. Tanto Freud como Lacan consideram os escritores como aliados da psicanálise. E os escritores criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas, entre o céu e a terra, com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar. Estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente, já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência (Freud, 1976, p.18). Em 1965, Jacques Lacan escreve sua Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento do próprio psicanalista ao se deparar com uma escritora que o antecipa. Ele qualifica a interpretação das obras de arte como pretensão e idiotice. Ele adverte para não cairmos na tentação de uma psicanálise selvagem aplicada ao texto literário, e afirma com Freud, que em sua matéria, ao artista sempre precede o psicanalista e, portanto, este não tem que bancar o psicólogo quando é o artista que lhe desbrava o caminho. De um lado a psicanálise com a sua experiência de fala, e do outro, a escrita. Qual seria a articulação possível? Dominique Fingermann nos traz que a fala se torna escrita quando pode ser lida. A fala do analisando tem um leitor em seus ditos, em que ela cita Lacan em o Atordito - o que se diz em que se ouve, quanto do dizer, o Que se diga esquecido por trás dos ditos (Fingermann, 2011). A análise é uma experiência que se presta à leitura, à ficção da narrativa e à sua letra. Junto à ficção está a estrutura do significante com a metáfora e a metonímia, a extração da letra diz da sua materialidade. Cito Lúcia Castello Branco, Letra é filho do homem. Ou será o homem filho da letra? De qualquer forma, sabemos, com Lacan, que a letra é ainda mais elementar que o significante, uma vez que ela se reporta ao escrito e ao que há de mais fundamental no escrito, em sua redução ao puro traço, à pura inscrição, à sulcagem da superfície/corpo sobre a qual se escreve e se inscreve um sujeito. Além disso, é a letra que faz a borda, o litoral, como nos ensina Lacan em lituraterra (Castello Branco, 2000, p.23). O caminho da análise é extrair a letra da ficção. Escrita, significante comum a esses dois campos distintos, onde fazer litoral é possível. A letra borda o furo, o buraco que suporta toda e qualquer construção simbólica, todo e qualquer signo. Marguerite Duras narra no livro Escrever, sobre o seu processo singular com a escrita. O livro é composto de cinco textos, mas passearemos pelo primeiro deles que dá nome à obra, além de relatar o seu encontro com Lacan: E mesmo aquilo que Lacan disse a respeito do livro, eu nunca cheguei a entender direito. Lacan me deixava atordoada. E aquela sua frase: Ela não deve saber que escreve, nem aquilo que escreve. Porque ela se perderia. E isso seria uma catástrofe. Esta frase tornou-se para mim, uma espécie de identidade de princípio, um direito de dizer totalmente ignorado pelas mulheres (Duras, 1994, p.19). Falar sobre este não saber em Duras convoca o pensar na relação da escrita com a letra. Uma escrita feminina, não pelo fato de ser do gênero feminino, mas de sua

estrutura, obscura, enigmática, esburacada. Parece ser isso que Lacan aponta e que faz enigma para ela. Duras traz a solidão como essencial para o processo da escrita, algo que aponte para a materialidade da língua, que fará eco no escrito. Ela diz: A solidão da escrita é uma solidão sem a qual o texto não se produz, ou então a gente se acaba, exangue, de tanto procurar o que escrever (Duras, 1994, p. 14). Na página seguinte ela prossegue: Escrever, essa foi a única coisa que habitou a minha vida e que a encantou. Eu o fiz. A escrita não me abandonou nunca (Idem, p.15). A escrita é da ordem de um investimento libidinal, ela busca seu trilhamento, Nunca fiz um livro que não fosse minha razão de ser na hora que está sendo escrito, e isso vale para qualquer livro (Idem, p.18). Uma autora destemida para circunscrever esse impossível da escrita. Ela segue à risca com a escrita, mesmo sem saber, da demanda que faz um analista ao seu analisando: Fale tudo o que lhe vier à cabeça. Palavras sem pudor, que dão notícias de seu corpo, da solidão, do amor, do alcoolismo, do infanticídio. Uma vez foi a um analista que lhe deu o veredito, Não faça mais nada a não ser isso, escrever (Idem, p.15). Duras vai apontar para a impossibilidade de escrever, e isso é fascinante em seu texto: Escrever. Não posso. Ninguém pode. É preciso dizer: não se pode. E se escreve (Idem, p.47) E continua: É o desconhecido que trazemos conosco: escrever, é isto o que se alcança. Isto ou nada (Idem, p.47). A ficção, pensando nesta como verdade mentirosa. A ficção fará uso da associação livre e da estrutura do significante, da metáfora e da metonímia, do simbólico. A experiência da psicanálise dá acesso à outra borda do significante, algo que escapa sua esfera simbólica, algo do gozo, a sua letra. O que escapa a esse simbólico e a essa significação se constitui em um resto, o real, esse impossível de averiguar, algo que não responde, que diz da solidão, do Um, da posição do inconsciente. Duras escreve sobre algo que escrever é não dar conta disso, escrever ao lado daquilo que precede o escrito é sempre estraga-lo (Idem, p.27). Marguerite faz escrita do silêncio, do grito, da infância, da mãe, do álcool e também escrita da própria escrita. É uma coisa curiosa o escritor. Uma contradição e também um absurdo. Escrever é também não falar. É se calar. É berrar sem fazer barulho. É muitas vezes o repouso de um escritor, e ele tem muito a ouvir. Não fala muito porque é impossível falar com alguém de um livro que se escreveu e sobretudo de um livro que se está escrevendo. É impossível. É o contrário do cinema, o contrário do teatro, de outros

espetáculos. É o contrário de todas as leituras. É o mais difícil de tudo. É o pior. Porque um livro é o desconhecido, é a noite, é fechado, é assim (Idem, p. 26) O texto fisga Marguerite pela sua declaração insistente, ela afirma escrever apesar do desespero. Não: com desespero. Que desespero, eu não sei, não sei o nome disso (Idem, p.26). Ela não cessa de escrever. Suporta os equívocos, e os escreve no texto, os buracos, um inconsciente que dá notícias. Freud em uma de suas cartas a Fliess, em 7/7/1998, traz um relato precioso sobre a função da causa da produção na escrita. Causa que tem como motor, que não parte de uma tese, mas de um não-sabido. Ele diz: Eis alguns resíduos de minha última investida. Eu só consigo compor os detalhes, no processo de escrever. Esse processo segue completamente os ditames do inconsciente, segundo o bem conhecido princípio de Itzig, o cavaleiro de domingo: -Itzig, aonde você vai? -E eu sei? Pergunte ao cavalo. Eu nunca comecei um parágrafo sabendo de antemão onde terminaria. Algo comum da escrita de Duras e dos escritores criativos com a escrita dos analistas, pois este escreve não a partir de algo sabido, mas de um não-sabido que, pelo ato de escrever, engendra um saber. Duras nos diz Acho que a pessoa que escreve não tem a ideia de um livro, tem as mãos vazias, a mente vazia, e dessa aventura do livro ela conhece apenas a escrita seca e nua, sem futuro, sem eco, distante, com suas regras de ouro, elementares: a ortografia, o sentido (Duras, 1994, p.19). Ela chama a atenção para um texto com tropeço, do que lê o analista sobre o analisando, algo que Lacan traz como conceito de mot/erialisme: Não é por acaso que n alíngua, qualquer que seja ela, na qual alguém recebeu uma primeira marca, uma palavra é equívoca. É absolutamente certo que é pelo modo como alíngua foi falada e também ouvida por tal ou qual em sua particularidade, que alguma coisa em seguida reaparecerá nos sonhos, em todo o tipo de tropeços, em toda a espécie de modos de dizer. É, se me permitem empregar pela primeira vez esse termo, nesse mot/erialisme onde reside a tomada do inconsciente quero dizer que é o que faz com que cada um não tenha encontrado outros modos de sustentar a não ser o que há pouco chamei de sintoma (Lacan, 1975, p.5). A escrita tem esse lugar que não se apreende toda pelo simbólico, ela é não toda. Duras fala que muitas vezes encontramos relatos e muito raramente se encontra a escrita (Duras, 1994, p.70). Algo da perda de sentido, não há palavra para estabilizar essa incompletude, há um furo, há a não compreensão. O seu texto faz surgir no leitor a angústia, que segundo Lacan é a única tradução subjetiva do objeto a, como partícula do real, este que não se simboliza, só se lê pelas bordas. O texto de Duras é um texto de borda. Isso ela nos ensina sem saber.

Referências CASTELLO Branco, Lúcia. Os absolutamente sós. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. DURAS, Marguerite. Escrever. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. FINGERMANN, Dominique. Marguerite Duras: repetição e acontecimento. Disponível em:http://www.valas.fr/dominique-fingermann-marguerite-duras- REPETICAO-E-ACONTECIMENTO,205 Acesso em: 30 de Agosto de 2016. FREUD. Sigmund. Escritores criativos e devaneio (1908) in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro : Imago, 1974. LACAN, J. (1975). Conferência em Genebra sobre o sintoma, in: Opção Lacaniana, n. 23. São Paulo: Eólia, dezembro, 1998. LACAN, Jacques. Homenagem a Marguerite Duras (1965) in Outros Escritos : Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2001, p.198-205. MASSON, J. M. A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess 1887-1904. Rio de Janeiro: Imago, 1986.