ACIDENTES POR ARANHAS, INSETOS E CENTOPÉIAS REGISTRADOS NO CENTRO DE ASSISTÊNCIA TOXICOLÓGICA DE PERNAMBUCO (1993 A 2003)

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Transcrição:

ARTIGO ORIGINAL ACIDENTES POR ARANHAS, INSETOS E CENTOPÉIAS REGISTRADOS NO CENTRO DE ASSISTÊNCIA TOXICOLÓGICA DE PERNAMBUCO (1993 A 2003) Gilson Carlos Conceição Freitas, 1 Américo Ernesto de Oliveira Jr., 2 José Eraldo Belarmino Farias 1 e Simão Dias Vasconcelos 1 RESUMO O conhecimento limitado e a benignidade clínica de acidentes envolvendo artrópodos contribuem para a subnotificação. Este estudo buscou inventariar os acidentes causados por artrópodos, excetuando-se os escorpiões, ocorridos em Pernambuco e registrados no Centro de Assistência Toxicológica (CEATOX-PE) entre 1993 e 2003. Foram analisados os seguintes aspectos: local do acidente, agente causal e distribuição sazonal. Dos 233 acidentes, 48,5% ocorreram na Região Metropolitana do Recife, excluindo-se a cidade do Recife. As notificações envolvendo abelhas foram as mais freqüentes, com 37,4% dos casos, seguidas de centopéias, com 18,9%. Percebe-se uma tendência de aumento no registro de casos ao longo dos anos. Não foram verificadas diferenças no índice de ocorrências entre a estação seca e a chuvosa. A ocupação desordenada de ambientes associada à sinantropia favorece o aumento dos acidentes em áreas urbanas. Os acidentados raramente levam o artrópodo para identificação e a subnotificação é marcante nos acidentes envolvendo os artrópodos estudados. DESCRITORES: Animais peçonhentos. Toxicologia. Venenos. Abelhas. INTRODUÇÃO Os artrópodos de importância médica destacam-se por sua diversidade e abundância. Provocam acidentes que resultam em irritações, queimaduras locais e, em casos extremos, no óbito da vítima. Por sua maior periculosidade, os escorpiões, especialmente os do gênero Tityus, têm sido alvo de inúmeros estudos epidemiológicos. Comparativamente, são bastante escassos os estudos integrados 1 Departamento de Zoologia, Centro de Ciências Biológicas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife-PE. 2 Centro de Assistência Toxicológica de Pernambuco, Hospital da Restauração, Recife-PE. Endereço para correspondência: Dr. Simão Dias Vasconcelos. Departamento de Zoologia, Centro de Ciências Biológicas, Universidade Federal de Pernambuco, Avenida Prof. Moraes Rego, s/n. CEP: 50670-420, Recife, Pernambuco. Fone/Fax: (81) 2126-8353. E-mail: simaovasconcelos@yahoo.com.br Recebido para publicação em 9/12/2005. Revisto em 15/8/2006. Aceito em 20/8/2006. 148 REVISTA DE PATOLOGIA TROPICAL

sobre aspectos fisiopatológicos, epidemiológicos e ambientais de outros grupos de artrópodos, como aranhas, insetos e centopéias em regiões tropicais. As aranhas de maior interesse médico no Brasil pertencem aos gêneros Loxosceles (aranha-marrom), Phoneutria (aranha armadeira) e Latrodectus (viúva negra) (Lucas, 2003). A dor é o sintoma mais freqüente, podendo ocorrer edema, sudorese, hiperemia, parestesia e fasciculação muscular, ou em casos mais graves, taquicardia, hipertensão, sudorese, vômitos e priapismo (Bucharetchi, 1992). As manifestações clínicas resultantes de contatos com himenópteros (abelhas, vespas e formigas) são de natureza alérgica reações de hipersensibilidade que podem ser desencadeadas por uma única picada e tóxicas, que podem incluir hipotensão, taquicardia, náuseas, sudorese e hipotermia (Medeiros & França, 2003). A importação de linhagens de abelhas mais produtivas e mais agressivas e a crescente ocupação urbana têm contribuído para aumentar o número de ocorrências (Mello et al., 2002). Lepidópteros podem provocar acidentes em sua fase de larva o que é mais comum e denominado erucismo ou de adulto, quando liberam escamas que podem desencadear lesões e irritações em humanos. As manifestações clínicas resultantes da liberação de toxinas dos pêlos urticantes podem incluir dor intensa, edema, dermatite urticante, periartrite falangeana e ainda síndrome hemorrágica (Fraiha Neto et al., 1992). Acidentes causados por larvas do gênero Lonomia têm aumentado de importância em virtude da gravidade e expansão dos casos, principalmente no Sul (BRASIL, 2001). No Brasil, acidentes causados por besouros (Coleoptera) são atribuídos principalmente aos gêneros Paederus (Família Staphylinidae) e Epicauta a (Família Meloidae) (Cardoso & Haddad Jr., 2003). Há registro de acidentes por Paederus ( potós ) nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e por Epicauta a em São Paulo (BRASIL, 2001). De maneira geral, a lesão é produzida quando o inseto é esfregado acidentalmente sobre a pele, liberando a substância irritante que produz ardor, eritema e posterior vesiculação (Alva-Dávalos et al., 2002). A classe Chilopoda é outro grupo subestimado em razão de sua benignidade clínica. Neste grupo estão incluídas as centopéias ou lacraias, que possuem um par de garras inoculadoras de veneno. Distribuídas principalmente em três gêneros Cryptops, Otostigmus s e Scolopendra, cerca de dez espécies de centopéias são temidas no Brasil, pois tendem a causar ocorrências dentro de domicílios, picando com mais freqüência os pés e as mãos das vítimas (Barroso et al., 2001). A picada causa dor intensa, acompanhada de hiperemia e discreto edema local (Barroso et al., 2001). A desorganizada ocupação urbana e a conseqüente modificação do habitat podem ampliar o contato entre humanos e artrópodos peçonhentos, aumentando sua importância como problema de saúde pública. Neste contexto, este trabalho buscou caracterizar os acidentes envolvendo artrópodos, excetuando-se os escorpiões, registrados no Centro de Assistência Toxicológica de Pernambuco, avaliando sua distribuição espacial e sazonal e os principais agentes envolvidos. Vol. 35 (2): 148-156. maio-ago. 2006 149

MATERIAL E MÉTODOS O trabalho foi realizado com base nos registros e prontuários médicos do Centro de Assistência Toxicológica (CEATOX), localizado no Hospital da Restauração, em Recife (PE), que é o maior hospital público de atendimento emergencial do Nordeste. Este centro registra, acompanha e trata os mais diversos acidentes envolvendo intoxicações, de envenenamentos por produtos domissanitários a picadas de serpentes. Neste estudo, foram considerados exclusivamente acidentes causados pelos seguintes invertebrados: insetos, aranhas e centopéias. A identificação do agente agressor baseou-se na descrição da vítima, uma vez que raramente o artrópodo peçonhento é levado para identificação no hospital. Avaliou-se o perfil dos acidentes ocorridos no período de 1993 a 2003, considerando-se as seguintes variáveis: agente causador, data e região fisiogeográfica onde ocorreu o acidente, com ênfase no município de Recife. O local dos acidentes foi agrupado em três categorias: 1) Recife; 2) outras cidades da Região Metropolitana; 3) demais cidades de Pernambuco. Para detalhar a distribuição dos acidentes em Recife, utilizou-se sua divisão fisiogeográfica oficial em seis distritos: Distrito sanitário I (envolve 11 bairros concentrados na zona leste, com população aproximada de 77 mil pessoas; inclui o centro histórico da cidade); Distrito sanitário II (engloba 18 bairros, localizados principalmente na zona norte, com população aproximada de 210 mil habitantes); Distrito sanitário III (inclui 29 bairros ao norte e oeste da cidade, totalizando cerca de 270 mil habitantes); Distrito sanitário IV (inclui 12 bairros, principalmente na zona oeste, com cerca de 225 mil habitantes); Distrito sanitário V (formado por 16 bairros localizados na região oeste, concentra cerca de 237 mil habitantes); Distrito sanitário VI (formado por 8 bairros das zonas sul e leste da cidade, incluindo as praias; possui população estimada de 368 mil pessoas) (RECIFE, 2005). As ocorrências foram agrupadas em seis categorias, de acordo com o agente agressor: 1) abelhas; 2) aranhas; 3) lepidópteros; 4) centopéias; 5) vespas e marimbondos ; 6) outros (coleópteros, hemípteros e formigas). Para investigar a distribuição sazonal dos acidentes na Região Metropolitana de Recife, comparou-se o número de registros na estação seca (de setembro a fevereiro) e na estação chuvosa (de março a agosto). Todas as informações sobre os pacientes tiveram caráter sigiloso e o estudo obteve a aprovação dos comitês de ética das instituições envolvidas. RESULTADOS E DISCUSSÃO No período de 1993 a 2003, foram registrados no CEATOX 15.900 acidentes das mais variadas modalidades de intoxicação, dos quais 233 corresponderam a acidentes com os animais analisados neste estudo, o que 150 REVISTA DE PATOLOGIA TROPICAL

representou 1,5% de todos os atendimentos no período. O acompanhamento dos registros de acidentes por ano mostra que houve um aumento considerável a partir de 2000, atingindo um máximo de 56 registros em 2002 (Tabela 1). Em relação ao sexo da vítima, observou-se que 62,7% dos acidentados eram do sexo masculino e 37,3% do feminino (P < 0,0001). Os artrópodos envolvidos em maior número de casos, excetuando-se os escorpiões, foram as abelhas (37,4% dos registros), o que se explica em razão da abundância e facilidade de locomoção destes animais, que rapidamente colonizam novas áreas quando há escassez de alimento, condições climáticas desfavoráveis e situações de perigo. A freqüente instalação de colônias em construções humanas revela alto grau de sinantropia (Mello et al., 2002), o que aumenta o risco de exposição humana. O contato normalmente ocorre quando, inadvertidamente, pessoas se encontram em locais que contêm abrigos e atiram objetos e produtos químicos na colônia, ou tentam remover ou destruir os abrigos sem proteção adequada (Mello et al., 2002). As considerações sobre os acidentes envolvendo abelhas aplicam-se também às vespas, uma vez que possuem características comuns. A composição do veneno de vespas é pouco conhecida e seus principais alérgenos apresentam reações cruzadas com os das abelhas e também produzem fenômenos de hipersensibilidade (BRASIL, 2001). Notificações envolvendo aranhas representaram 18,9% dos acidentes observados. Embora no Sul do país tenha ocorrido aumento de casos envolvendo Loxosceles, em Pernambuco a real gravidade de ataques por aranhas é ignorada. O loxoscelismo, que é uma síndrome hemolítica-necrosante, cutânea ou cutâneovisceral, é uma das mais severas formas de envenenamento por aranha na América do Sul (Málaque et al., 2002), e seu registro no estado de Pernambuco ainda precisa ser confirmado. No CEATOX-PE foram registradas seis notificações de acidentes causados por aranhas caranguejeiras (Sub-Ordem Mygalomorphae). Trata-se de um grupo de menor interesse médico (comparado a Loxosxeles e Phoneutria, por exemplo) por apresentar como principal sintoma irritação mecânica da pele e mucosas em virtude da liberação de pêlos como modo de defesa (Lucas, 2003). Centopéias responderam por 18,9% dos registros, representando 0,27% do número total de notificações no período de 1993 a 2003. Tal número (44) é bastante inferior ao obtido em levantamento realizado no Pará 76 acidentes em dois anos (Barroso et al., 2001) e em São Paulo 216 acidentes em dez anos - (Knysak et al., 1998). É provável que o baixo número de ocorrências deva-se ao pouco conhecimento médico acerca do envenenamento humano causado por centopéias e ao fato de os pacientes não trazerem o animal para identificação, além do caráter benigno deste tipo de acidente. Relatos de complicações mais sérias decorrentes de picadas de centopéias são escassos e, geralmente, os sintomas sistêmicos tendem a desaparecer em poucas horas (Cardoso & Haddad Jr., 2003). Todas as ocorrências relacionadas com lepidópteros, registradas no CEATOX, referiam-se à fase larval do inseto. Este tipo de acidente foi notificado Vol. 35 (2): 148-156. maio-ago. 2006 151

apenas 20 vezes (1,81/ano) em 11 anos. No Sul do país, entre 1989 e 1991 mais de 60 acidentes por larvas do gênero Lonomia foram registrados, sendo quatro fatais (Fraiha Neto et al., 1992). Mais recentemente, L. obliqua causou 199 casos no Paraná, com cinco óbitos até 2000 (Rubio, 2001). No CEATOX, o número de notificações de acidentes causados por coleópteros foi bastante reduzido (Tabela 1), o que já era esperado, uma vez que os sintomas se confundem com outras formas de irritação e até mesmo herpes (Alva-Dávalos et al., 2002). Registros envolvendo formigas também foram pouco significativos, embora sejam insetos ubíquos dotados de aguilhão terminal ligado a glândulas de veneno, cuja picada pode ser bastante dolorosa. Notificações só tendem a ser registradas quando há complicações, como anafilaxia, necrose e infecção secundária (BRASIL, 2001). Ao se comparar o total de acidentes nos 11 anos de estudo, observa-se que não houve diferença significativa entre o número de casos ocorridos na estação seca e na chuvosa (P > 0,20) (Figura 1). Ao se comparar cada agente causal isoladamente, percebe-se que também não houve diferença significativa entre as estações para abelhas (P > 0,20), aranhas (P > 0,20), centopéias (P > 0,20) e vespas (P > 0,10). A única diferença ocorreu entre lepidópteros, que tiveram maior número de registros no período chuvoso (P < 0,05). Figura 1. Padrão de ocorrência de acidentes por aranhas, insetos e centopéias notificados no CEATOX-PE, de acordo com a estação do ano, seca (set-fev) ou chuvosa (mar-ago), no período de 1993 a 2003. A ausência de um padrão definido de ocorrência entre a estação seca e a chuvosa não surpreende, já que a Região Metropolitana de Recife apresenta pequena variação de temperatura e umidade relativa ao longo do ano. Há, entretanto, um aumento 152 REVISTA DE PATOLOGIA TROPICAL

considerável da pluviosidade nos meses de março a agosto, o que pode afetar a atividade e a disponibilidade de alimento para artrópodos peçonhentos. Em outros estados, acidentes por aranhas (Sezerino et al., 1998, Málaque et al., 2002;) e centopéias (Knysak et al., 1998) ocorrem em maior quantidade nos meses mais quentes e chuvosos. No caso de larvas de lepidópteros, que são herbívoras, o maior número de registros na estação chuvosa pode estar associado à maior exuberância da vegetação folhosa nesta estação. A maioria dos registros referia-se a acidentes ocorridos nos municípios que compõem a Região Metropolitana do Recife, excluindo a capital (48,5%) (Tabela 2). Estes municípios são: Abreu e Lima, Araçoiaba, Cabo de Santo Agostinho, Camaragibe, Igarassu, Ipojuca, Itamaracá, Itapissuma, Jaboatão dos Guararapes, Moreno, Olinda, Paulista, São Lourenço da Mata. Foram registrados 82 acidentes no município de Recife. A área do Distrito Sanitário VI foi onde ocorreu a maior proporção dos acidentes registrados (9,4%). O fato não surpreende, pois se trata da região de maior densidade habitacional, concentrando 26% de toda a população do município. O maior registro de acidentes em áreas urbanas em relação a municípios da zona rural reflete um certo grau de sinantropia, pois diversos artrópodos de importância médica têm se adaptado facilmente às modificações produzidas pela ocupação humana. Por exemplo, em habitações humanas, os forros de parede estão entre os locais em que mais freqüentemente ocorre a instalação de colônias de abelhas (Mello et al., 2002). Aranhas, centopéias, escorpiões e besouros encontram abrigo e alimentação em entulhos, lixo, obras em andamento, bueiros e outras construções urbanas, de modo que a cidade oferece uma profusão de habitat para estes artrópodos. O desmatamento no entorno de cidades também estimula a migração e o contato destes animais com seres humanos. Ocorrências em cidades mais distantes do CEATOX (no sertão, por exemplo) são ainda, naturalmente, mais sub-representadas pela dificuldade de acesso e pelo fato de os pacientes procurarem assistência em hospitais locais, quando o fazem. Na cidade do Recife, os distritos sanitários VI e IV, principais locais de registros, compreendem bairros com construções antigas e alta taxa de edificação, aspecto favorável ao estabelecimento de artrópodos. Nestas áreas, a escassez de inimigos naturais, como aves, anfíbios e répteis, resultante da intensa urbanização pode explicar parcialmente estes resultados. Como ponto positivo, percebe-se que, no estado de Pernambuco, já há uma certa interação entre as diversas instâncias envolvidas no registro e tratamento de acidentes, com o objetivo de oferecer atenção integral às vítimas, ao mesmo tempo em que um mapeamento geral destes acidentes começa a ser realizado, incluindo acidentes por escorpiões. Embora representem uma diminuta parcela das notificações do CEATOX- PE, acidentes por artrópodos vêm sendo notificados com crescente freqüência na Região Metropolitana de Recife. A falta de informação sobre a importância de levar o agente agressor ao centro especializado e a subnotificação dos casos, resultante da benignidade clínica dos acidentes, dificultam a percepção real da gravidade do problema e ainda o seu diagnóstico, tratamento e prevenção. Vol. 35 (2): 148-156. maio-ago. 2006 153

Tabela 1. Acidentes envolvendo aranhas, insetos e centopéias registrados no CEATOX (Recife-PE) no período de 1993 a 2003, por agente causal e ano. Agente Ano 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 Total Abelhas 7 6 0 3 2 5 4 10 21 18 11 87 Aranhas 3 0 1 0 2 3 3 7 6 10 9 44 Lepidópteros 1 0 0 0 1 0 2 3 0 8 5 20 Centopéias 6 3 0 1 2 1 5 12 4 8 2 44 Vespas 1 1 0 0 0 0 0 4 6 10 3 25 Outros 0 1 0 1 0 0 3 1 3 2 2 13 Total de acidentes 18 11 1 5 7 9 17 37 40 56 32 233 Total de registros no CEATOX 1.174 1.050 379 384 721 1.080 1.458 2.141 2.543 2.615 2.355 15.900 % de casos envolvendo artrópodos-alvo 1,53 1,05 0,26 1,30 0,97 0,83 1,16 1,73 1,57 2,14 1,36 1,5 Tabela 2. Região fisiogeográfica dos registros de acidentes envolvendo aranhas, insetos e centopéias. DS = Distrito Sanitário; RMR = Região Metropolitana do Recife (excluindo a capital); O = demais municípios de Pernambuco. Agente Região DS I DS II DS III DS IV DS V DS VI RMR O Total Abelhas 6 2 7 7 4 9 32 20 87 Aranhas 1 2 2 2 3 3 23 8 44 Lepidópteros 0 1 2 2 0 1 11 3 20 Centopéias 4 2 0 2 3 6 23 4 44 Vespas 1 0 1 1 1 1 19 1 25 Outros 2 0 1 1 0 2 5 2 13 Total 14 (6,0%) 7 (3,0%) 13 (5,6%) 15 (6,4%) 11 (4,7%) 22 (9,4%) 113 (48,5%) 38 (16,4%) 233 (100%) 154 REVISTA DE PATOLOGIA TROPICAL

AGRADECIMENTOS Os autores agradecem a Luciano Mello pelo auxílio na coleta de dados e aos funcionários do CEATOX- PE que viabilizaram a coleta e organização dos dados. ABSTRACT Accidents by spiders, insects and centipedes notified by the Centro de Assistência Toxicológica de Pernambuco (1993 to 2003) The limited knowledge and the benignity of accidents caused by venomous arthropods contribute to the underestimation of cases and the lack of adequate treatment. This study aimed to describe the occurrences involving arthropods, excluding scorpions, in Pernambuco State, Brazil, registered at the Centro de Assistência Toxicológica (CEATOX-PE) between 1993 and 2003. We analyzed the following parameters: place, date, causal agent and seasonal distribution of the cases. From the 233 accidents registered, 48,5% occurred at Greater Recife, excluding Recife city. The most common accident records involved bees (37,4% of the cases), followed by centipedes (18,9%). There is a trend for increase in the annual number of registers. There was no evident difference in the number of cases between wet and dry seasons. The disorganized occupation of environments, associated with arthropods synanthropy, favors an increase in the number of accidents in urban areas. Patients rarely take the arthropod for identification and the under notification is a evident facet of accidents involving arthropods. KEYWORDS: Poisonous animals Toxicology. Venoms. Bees. REFERÊNCIAS 1. Alva-Dávalos V, Laguna-Torres VA, Huamán A, Olivos R, Chávez M, García C, Mendoza N. Dermatite epidêmica por Paederus irritans em Piura, Perú, 1999, relacionada ao fenômeno El Niño. Rev Soc Bras Med Trop 35: 23-28, 2002. 2. Barroso E, Hidaka ASV, Santos AX, França JDM, Sousa AMB, Valente JR, Magalhães AFA, Parda PPO. Acidentes por centopéia notificados pelo Centro de Informações Toxicológicas de Belém, num período de dois anos. Rev Soc Bras Med Trop 34: 527-530, 2001. 3. BRASIL. Ministério da Saú de. Fundação Nacional da Saú de - Manual de diagnóstico e tratamento de acidentes por animais peçonhentos. 2º ed, Brasília, 2001. 4. Bucharetchi F. Acidentes por Phoneutria (Foneutrismo). In: Schvartsman S (ed.) Plantas venenosas e animais peçonhentos. Sarvier, São Paulo, 1992. p. 196-201. 5. Cardoso JLC, Haddad Jr. V. Acidentes por coleópteros vesicantes. In: Cardoso JLC, França FOS, Wen FH, Málaque CMS, Haddad Jr. V (eds.) Animais Peçonhentos no Brasil. Ed. Sarvier, São Paulo, pp.258-264, 2003. 6. Fraiha Neto H, Costa Jr. D, Leão RNQ, Ballarini AJ. Acidentes Hemorrágicos por larvas de Lonomia. In: Schvartsman S (ed.) Plantas venenosas e animais peçonhentos. Sarvier, São Paulo, 1992. p. 241-244. Vol. 35 (2): 148-156. maio-ago. 2006 155

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