Censo IBGE 2010 e Religião IBGE Census 2010 and Religion

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Transcrição:

Dossiê: Religião e o Censo IBGE 2010 Editorial DOI 10.5752/P.2175-5841.2012v10n28p1122 Censo IBGE 2010 e Religião IBGE Census 2010 and Religion Walter Altmann O Brasil tem incluído rotineiramente em seus recenseamentos a coleta de dados referentes à adesão religiosa da população. Esse fato deve ser saudado como muito positivo, tanto mais por não ser uma obviedade. Há outros países, não poucos, que não o fazem, seja por sua complexidade, seja por razões ideológicas a religião pertenceria à área privada dos cidadãos e não caberia ao Estado, laico, fazer seu recenseamento. Aliás, observe-se que nesse sentido a acepção de Estado laico é bastante duvidosa e poderíamos classificá-la até mesmo de discriminatória. Ora, a separação de Igreja e Estado, conquista da modernidade, tem sua razão de ser na rejeição a estados teocráticos ou de uma ordem social e política que conceda ou garanta privilégios para uma ou mais religiões ou igrejas, em detrimento das demais e da população que não adere a qualquer delas. Ou seja, o Estado deve garantir direitos iguais a todos os cidadãos, independentemente de sua eventual afiliação religiosa, e não pode privilegiar segmentos específicos. Nesse sentido, o conceito de Estado laico deve ser defendido e preservado. Doutor em Teologia (Hamburgo),Pastor e teólogo, professor de Teologia Sistemática na Faculdade EST (São Leopoldo/RS), ex-pastor presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e atual moderador do Conselho Mundial de Igrejas (CMI). País de origem: Brasil. E-mail: walteraltmann@msn.com Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 28, p. 1122-1129, out./dez. 2012 ISSN 2175-5841 1122

Walter Altmann Contudo, o conceito se torna ele próprio discriminatório e autoritário, quando é usado para excluir o religioso do espaço público, confinando-o à esfera privada ou ao âmbito dos templos. Ora, a religião é notoriamente uma das manifestações mais públicas. E seria um absurdo prescindir de seu estudo e dos dados que o possam sustentar consistentemente, quando se pretende conhecer a realidade de um país. Em suma, a captação de dados referentes à adesão religiosa da população brasileira só seria condenável se fosse servir para privilegiar determinada(s) religião(ões), em detrimento das demais ou das pessoas sem religião, mas é louvável e, mais, imprescindível como instrumento de conhecimento do cenário religioso da população. Os censos no Brasil têm servido para a segunda hipótese e, portanto, a captação de dados da adesão religiosa da população no censo deve ser saudada como positiva e essencial para a melhor compreensão da realidade brasileira. À base deles, podem-se efetivar estudos como os constantes na presente revista. O Censo IBGE 2010 se mostra como particularmente útil quando também cruza os dados referentes à adesão religiosa com os dados referentes, entre outros, a rendimento, profissão, nível de instrução, faixa etária, gênero e etnia. Entretanto, coletar adequadamente dados acerca da adesão religiosa da população não é tarefa fácil e requer uma complexa engenharia de classificação dos grupos religiosos, num cenário sabidamente de grande fragmentação. No seu preparo, é indispensável o concurso do maior e mais representativo grupo de especialistas na área da Teologia e das Ciências da Religião (incluindo Sociologia e Antropologia), a fim de evitar ao máximo que a própria coleta de dados provoque distorções. Esse cuidado, infelizmente, não houve, pelo menos não na medida do necessário. Nesse particular, portanto, o Censo 2010, conduzido pelo IBGE, merece não apenas elogios, mas também reparos. Uma análise dos dados nos leva a dizer, sinteticamente, que no tocante aos dados referentes às religiões no Censo 2010, o IBGE acertou no atacado e errou no varejo. Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 28, p.1122-1129, out./dez. 2012 ISSN 2175-5841 1123

Editorial Censo IBGE 2010 e Religião - Dossiê: Religião e o Censo IBGE 2010 Comecemos pelo atacado. Segundo os dados divulgados pelo IBGE, houve desde o censo anterior nova redução acentuada no percentual de católicos na população brasileira, pela primeira vez também em termos absolutos. A redução foi de 73,6% em 2000 para 64,6% em 2010 (no primeiro censo em 1872 eram nada menos do que 99,7%, e ainda em 1970 eram 91,8%), em termos absolutos de 125 milhões em 2000 para 123 milhões em 2010. Mesmo que uma parcela dos católicos apostólicos brasileiros (560 mil) possa ser, em verdade, constituída de católicos apostólicos romanos, um equívoco fácil de acontecer, não haverá alteração significativa nos números globais. De outra parte, houve novo crescimento acentuado no número de evangélicos, em especial pentecostais (de 15,4% em 2000 para 22,2% em 2010, em termos absolutos de 26,2 milhões para 42,3 milhões). Em 1991, o percentual ainda era de um dígito, 9,0%, e em 1980, de apenas 6,6%. Essa tendência decrescente no número de católicos e ascendente no número de evangélicos, verificável nos últimos três censos, haverá de continuar nos anos vindouros, com altíssima probabilidade, quase ao grau de certeza absoluta. Alguns dados da pesquisa corroboram essa observação. A percentagem de católicos é mais elevada nas áreas rurais do que nas urbanas. Ora, o processo de urbanização é um fato irreversível. A percentagem de católicos é também maior nas faixas etárias mais elevadas em que a incidência de óbitos obviamente é maior. Finalmente, predominam entre os católicos as pessoas de sexo masculino, embora não acentuadamente, porém entre os evangélicos predominam nitidamente as mulheres. E há também entre os filhos uma propensão maior a seguir a religião da mãe do que a do pai, já que ela assume o ensino religioso com maior frequência e intensidade. Ao que tudo indica, mais um par de décadas e não mais do que a metade da população brasileira se considerará católica. (Aliás, no estado do Rio de Janeiro apenas 45,8% se declararam católicos já neste censo.) Houve também aumento no número de pessoas que se consideram sem religião, particularmente em áreas urbanas e nos estratos sociais inferiores. Em Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 28, p. 1122-1129, out./dez. 2012 ISSN 2175-5841 1124

Walter Altmann 2000 eram quase 12,5 milhões (7,3%), ultrapassando os 15 milhões em 2010 (8,0%). A rigor, trata-se de um aumento apenas moderado. Observe-se, também, que não se trata necessariamente de pessoas arreligiosas, contudo elas não mantêm vínculos de adesão a nenhuma religião instituída. Mesmo que em números absolutos ainda baixos, também essa tendência de aumento, já registrada no censo de 2000, provavelmente seguirá, considerado o processo de urbanização e de secularização da vida moderna. Ainda assim, muito poucas pessoas se declararam ateias (apenas 615 mil). O país continua, portanto, um país profundamente religioso e, em ampla maioria, cristão. O que está em curso é uma crescente fragmentação e um processo de forte reorganização da cristianismo no país, em favor, sobretudo, das igrejas pentecostais. Nem de todas, porém. Enquanto uma igreja pentecostal mais histórica, como a Assembleia de Deus, cresceu entre 2000 e 2010 de 8,4 milhões para impressionantes 12,3 milhões de adeptos, uma igreja neopentecostal de grande impacto midiático, como a Universal do Reino de Deus, decresceu de 2,1 a 1,8 milhões de adeptos. É uma observação digna de reflexão. Ao que parece, a médio e longo prazo a dedicação à constituição de comunidades em que todas as pessoas participam ativamente de alguma forma é mais eficaz do que o protagonismo de shows da fé! Passemos, porém, ao varejo. Observemos, em primeiro lugar, que o censo não é o instrumento mais adequado para captar a dupla (ou mesmo múltipla) adesão religiosa. Apenas 15 mil pessoas foram assim registradas, por certo uma fração diminuta da realidade. Isso explica também o número muito baixo de adeptos do espiritismo e da religiosidade afro (em particular a umbanda e o candomblé), embora o censo tenha registrado um aumento em relação ao censo de 2000, o que estaria a sinalizar uma crescente liberdade interior de seus adeptos de assim se declararem. Mas outras tantas, provavelmente mais, ainda preferiram declarar apenas sua outra adesão, a saber, a uma das religiões hegemônicas, em especial a católica. Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 28, p.1122-1129, out./dez. 2012 ISSN 2175-5841 1125

Editorial Censo IBGE 2010 e Religião - Dossiê: Religião e o Censo IBGE 2010 Se nesse exemplo há razões subjetivas de parte das pessoas recenseadas para a distorção dos dados, precisamos registrar também, em segundo lugar, algumas falhas graves de cunho objetivo do censo. Há que fazer fortes reparos à metodologia adotada pelo IBGE na classificação das religiões que tornam os dados não plenamente confiáveis. A nomenclatura e a classificação empregadas carecem de rigor científico. Foi adotada, por exemplo, a categoria católica ortodoxa. Ora, quem conhece minimamente o cenário religioso global, sabe que a ortodoxia é um dos grandes ramos do cristianismo mundial, embora não muito presente em nosso país, e não pode ser entendida como confessionalmente católica. O IBGE também optou por evitar a categoria de igrejas protestantes, o que é, no mínimo, discutível. Optou, ao invés, pelo termo igrejas evangélicas. Até aí, uma opção que ainda pode ser aceitável. A decisão, porém, torna-se extremamente discutível quando o IBGE as subqualificou como de missão e de origem pentecostal. Ora, o termo de missão não apenas poderia caracterizar igualmente as igrejas de origem pentecostal de grande ímpeto missionário, e várias delas oriundas da ação missionária a partir do exterior, como também é absolutamente inadequado, por exemplo, para o luteranismo brasileiro que se caracteriza antes como igreja de transplante, oriunda que é do fluxo imigratório de luteranos europeus, em especial alemães, em particular no século XIX. Tendo optado pela designação de igrejas evangélicas, o complemento deveria ter sido históricas (ou, até mesmo, tradicionais ), em vez de de missão. Aliás, os aparelhos de coleta de dados usados pelos recenseadores continham pré-programado grande número de designações possíveis e apresentadas para seleção por parte das pessoas recenseadas. No caso do luteranismo havia nada menos do que 48 versões pré-programadas, várias totalmente esdrúxulas, por exemplo Luterana Gota Casque, uma corruptela risível do alemão Gotteskasten, designação de uma sociedade missionária que atuou no Brasil em tempos idos... De outra parte, a lista de 48 nomes não continha a designação da maior igreja do luteranismo brasileiro, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 28, p. 1122-1129, out./dez. 2012 ISSN 2175-5841 1126

Walter Altmann Consultado pela IECLB, o IBGE informou que todas as designações constantes na programação eram oriundas de declarações de pessoas recenseadas em censos anteriores. Como o IBGE não se manifestou em relação à omissão da designação IECLB, a resposta parece sugerir que dos mais de 700.000 membros dessa igreja (aproximadamente ¾ de todo o luteranismo nacional) absolutamente ninguém teria informado a designação correta de sua igreja em censos anteriores... É algo, obviamente, de todo inverossímil. Ainda mais, a instrução aos recenseadores exortava-os a rejeitar a declaração protestante, o que era correto, por ser termo genérico, não identificador de uma igreja específica, mas ao mesmo tempo sugeria como possível uma designação de luterano pentecostal. Se alguém assim se declarou, é um mistério saber onde o IBGE o catalogou, se entre os luteranos de igreja de missão ou entre as igrejas de origem pentecostal?! Já os episcopais anglicanos não aparecem nas tabelas divulgadas pelo IBGE. Eles são no país em número maior do que os que estão listados genericamente sob outras evangélicas de missão (que, de resto, seria uma classificação totalmente inadequada para a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil). Quem se declarou episcopal teria sido computado junto aos católicos? Deve-se também levantar forte interrogação quanto à decisão de computar como pentecostais nada menos do que 180 mil adeptos de uma chamada Comunidade Evangélica. Se bem exista no Rio de Janeiro a Comunidade Evangélica Internacional da Zona Sul, com características pentecostais, sabe-se também que particularmente no sul do país muitos luteranos se declaram simplesmente como membros da comunidade evangélica local (por exemplo, da Comunidade Evangélica de Porto Alegre CEPA). Teria bastado a consulta do termo comunidade evangélica no Google para constatar que essa designação genérica é inapropriada para o fim censitário proposto. Além desses exemplos, há ainda um dado que escancara a incapacidade do IBGE de captar com exatidão o real cenário do mundo evangélico ou protestante brasileiro. Devido à grande proliferação de igrejas pentecostais e neopentecostais independentes, pode-se generosamente ainda aceitar que sejam listados um total de Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 28, p.1122-1129, out./dez. 2012 ISSN 2175-5841 1127

Editorial Censo IBGE 2010 e Religião - Dossiê: Religião e o Censo IBGE 2010 nada menos do que 5,2 milhões de adeptos de outras igrejas evangélicas de origem pentecostal. Mas que dizer dos impressionantes 9,2 milhões de adeptos de igreja evangélica não determinada que, segundo diz o IBGE, tanto poderiam ser pentecostais quanto de uma das igrejas de missão? Não teria sido possível determinar?... Ora, o número (quase 5% da população brasileira!) é bem maior do que o número total apresentado para adeptos de todas as igrejas evangélicas de missão (7,7 milhões). Dentre os evangélicos, 18,5% são das várias igrejas evangélicas ditas de missão e nada menos do que 21,8 % seriam evangélicos não determinados. Esse contingente adicional de adeptos já alteraria substancialmente os números referentes a igrejas de origem pentecostal, mas extraordinariamente os referentes às igrejas de missão que muito possivelmente ficaram subcontabilizados. Há nas tabelas do IBGE indícios para supor que um bom contingente desses não determinados devam ser computados entre os de missão. Pois o IBGE louvavelmente confeccionou para cada grupo religioso tabelas para a idade mediana, para a distribuição por cor ou raça, para o grau de instrução e para o nível de renda. Em todas essas tabelas os índices apurados para os adeptos de igreja evangélica não determinada situam-se entre os índices apurados para os adeptos de igreja de missão e os de igreja de origem pentecostal. Chama ademais a atenção que, na maioria dos casos, trata-se de um índice mais próximo ao referente aos adeptos de igreja de missão (e não das igrejas de origem pentecostal). Com mais de 20% do universo global de evangélicos na categoria de igreja evangélica não determinada, a margem de erro dos números apresentados sobe de maneira correspondente. Concluindo, pode-se confiar razoavelmente no número global de evangélicos, também no fato de que os pentecostais somam muito mais do que os de missão, e igualmente que o conjunto continua crescendo. Mas o IBGE nos ficou devendo números mais consistentes no tocante à distribuição desses evangélicos entre as diversas denominações. Isso se deve, em parte, à multiplicidade de denominações existentes, mas em boa medida à aludida falta de rigor científico Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 28, p. 1122-1129, out./dez. 2012 ISSN 2175-5841 1128

Walter Altmann na classificação e, provavelmente, em consequência, ao precário treinamento dos recenseadores quanto a esse quesito. Uma lástima! Levantemos, por fim, a pergunta pelos censos no futuro. As dificuldades e as falhas registradas neste censo poderiam obscurecer a relevância dos dados obtidos. Não esqueçamos que, no atacado, o censo acertou e permite análises importantes, também no que concerne à intersecção com outros dados, como os de renda, de nível de instrução, de etnia etc. Pior ainda seria se fossem fortalecidas aquelas vozes que defendem a exclusão da coleta de dados de adesão religiosa da população brasileira de futuros censos, e o fizessem em nome da já mencionada laicidade do Estado! Estar-se-ia, isso sim, excluindo do censo uma dimensão importante da realidade brasileira. Seria, portanto, uma decisão de cunho ideológico e arbitrária. O que é necessário para censos futuros é que o IBGE se assessore melhor, com uma ampla gama de especialistas de diversas proveniências nas áreas de Teologia e Ciências da Religião, podendo partir para tanto de recursos docentes disponíveis nos cursos de pós-graduação da área e de áreas afins (Sociologia da Religião, Antropologia), em particular daqueles melhor avaliados pela CAPES. Há tempo suficiente para tanto oito anos até o próximo censo. Mas dois já passaram! Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 28, p.1122-1129, out./dez. 2012 ISSN 2175-5841 1129