SUICÍDIO E ÉTICA Uma apreciação em nossos dias à luz da Gaudium et Spes



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Transcrição:

CENTRO UNIVERSITÁRIO ASSUNÇÃO PONTIFÍCIA FACULDADE DE TEOLOGIA NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO LUIZ GONZAGA FECHIO SUICÍDIO E ÉTICA Uma apreciação em nossos dias à luz da Gaudium et Spes São Paulo 2008

1 CENTRO UNIVERSITÁRIO ASSUNÇÃO PONTIFÍCIA FACULDADE DE TEOLOGIA NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO LUIZ GONZAGA FECHIO SUICÍDIO E ÉTICA Uma apreciação em nossos dias à luz da Gaudium et Spes Dissertação apresentada como exigência para obtenção do título de mestre em Teologia Prática, com concentração no núcleo de Moral, à comissão julgadora da Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, sob a orientação do Prof. Dr. Côn. José Adriano. São Paulo 2008

2 DEDICATÓRIA Não foi sem motivo que um amigo sussurrou-me, um dia, diante de um suicídio: Hoje, todos fracassamos. No fundo, ninguém se suicida sozinho (A. Artaud) 1. Em primeiro lugar, dedico este trabalho em memória de todos os que terminaram o percurso de sua vida neste mundo através da tragédia do suicídio, descrendo totalmente do valor desta vida, junto aos seus, principalmente aqueles e aquelas que somente Deus sabe o quanto lhes foi difícil tomar tal decisão, após, talvez, uma longa trajetória de complicações, em meio, às vezes, de grandes injustiças e incompreensões, diante das quais não enxergaram outra saída a não ser atentar contra a sua própria vida. De um modo particular, ofereço cada minuto do meu esforço nesta dissertação aos que, como familiares e amigos, carregam com grande sofrimento o fardo escuro desse comportamento com segredos tão insondáveis a nós, comportamento esse a respeito do qual sentem muita dificuldade de partilhar com alguém as conseqüências dele, diante do tabu, da vergonha, do escândalo que, ainda, ele pode ocasionar ou significar, embora, numa incidência menor que num passado remoto e, talvez, recente. 1 BAUTISTA, Mateo; CORREA, Marcelo. Ajuda perante o suicídio. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 6 (Coleção: Pastoral da saúde). Antonin Marie-Joseph Artaud, poeta, ator, roteirista e dramaturgo francês, nasceu em 4 de setembro de 1896 e faleceu em 4 de março de 1948.

3 AGRADECIMENTOS Agradeço ao bom Deus que, sendo Fonte da Vida, por excelência, é Aquele que capacitou-me para que este projeto se concretizasse. Com gratidão, reconheço, também, o incentivo daqueles que possibilitaram-me este estudo, pastoral e economicamente, no decorrer desses dois anos, em especial os meus superiores, o bispo anterior, Dom Joviano de Lima Júnior, SSS, atual arcebispo metropolitano de Ribeirão Preto, e o bispo atual de São Carlos, Dom Paulo Sérgio Machado, como também a Ação Episcopal alemã Adveniat, pelo patrocínio da bolsa de estudo para a metade do curso. Expresso meu sincero obrigado à Congregação dos Missionários Scalabrinianos (ou Carlistas) padres, seminaristas e funcionárias que hospedaram-me fraternalmente no período das aulas, em 2007. Sou muito grato à direção, ao corpo docente e aos funcionários da Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, por tudo que pude aprender e receber de cada pessoa que proporcionou-me algo valioso neste estudo. De maneira muito particular, manifesto meu reconhecimento ao acompanhamento do Prof. Dr. Côn. José Adriano que acreditou em meu projeto, desde o início, e impulsionou-me para dedicar-me nele com afinco, na certeza de que merecia ser levado adiante, conforme o que lhe expus, tendo dele um voto de confiança motivador. Este reconhecimento torna-se mais especial ainda pelo fato do orientador estar deixando a Faculdade, após 28 anos de exercício do magistério, e eu ser seu último orientando.

4 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...7 1. O FENÔMENO DO SUICÍDIO EM SI MESMO 1.1. INTRODUÇÃO...10 1.2. UMA MELHOR COMPREENSÃO DA SAÚDE COMO BEM-ESTAR...11 1.2.1. O conceito de saúde na era da técnica e da eficiência...12 1.2.2. Pressuposições da saúde como bem-estar...13 1.2.3. Uma crítica ao conceito moderno de saúde...16 1.2.4. O conceito de saúde na Teologia...17 1.2.5. Saúde, sofrimento e finitude...19 1.2.6. O conceito de saúde a partir da busca de um novo ethos...22 1.3. O SUICÍDIO EM DADOS ESTATÍSTICOS...24 1.4. CONFUSÃO DA LINGUAGEM EM TORNO DO SUICÍDIO...26 1.5. FORMAS DE SUICÍDIO...29 1.6. INFLUÊNCIAS EM NOSSA VISÃO DE SUICÍDIO...31 1.6.1. A linguagem médica, em relação ao suicídio...31 1.6.2. O efeito emocional na linguagem sobre o suicídio...33 1.6.3. O peso da expressão cometer suicídio...35 1.7. SUICÍDIO E TENTATIVAS DE SUICÍDIO...37 1.7.1. Suicídio...38 1.7.2. Tentativa de suicídio...38 1.8. RELAÇÃO ENTRE SUICÍDIO E INTENÇÃO...40

5 1.8.1. Um novo modo de ver o suicídio...41 1.8.2. A dificuldade da incerteza quanto à intenção...42 1.8.3. Qual é a situação real de um suicídio?...43 1.9. BUSCA DE UMA DEFINIÇÃO DE SUICÍDIO...45 1.9.1. A relação entre racionalidade, entendimento e suicídio...46 1.9.2. Apresentando uma definição...48 1.10. DIFERENCIAÇÃO ENTRE SUICÍDIO E OUTRAS ATIVIDADES HUMANAS...49 1.10.1. Situações de envolvimento em atividades de alto risco...49 1.10.2. Situações de envolvimento em ações heróicas...52 2. A REFLEXÃO ÉTICO-MORAL TRADICIONAL E ATUAL EM TORNO DO SUICÍDIO 2.1. INTRODUÇÃO...53 2.2. O PROBLEMA DA EXISTÊNCIA...54 2.3. ABORDAGEM TRADICIONAL...57 2.3.1. O suicídio para o estoicismo...57 2.3.2. A visão negativa do ato suicida em Platão e Aristóteles...58 2.3.3. O suicídio e o neoplatonismo...60 2.3.4. A moral agostiniana sobre o suicídio...62 2.3.5. O suicídio conforme Santo Tomás de Aquino...67 2.3.6. Disciplina canônica a respeito do suicídio...69 2.3.7. O suicídio segundo o Magistério atual...72 2.4. CONSIDERAÇÕES ÉTICAS ATUAIS...75 2.4.1. A problemática do suicídio...75

6 2.4.2. O suicídio dentro da nova problemática sobre o direito de viver ou de morrer...77 3. À LUZ DA GAUDIUM ET SPES 3.1. INTRODUÇÃO...80 3.2. NO ESPÍRITO DO VATICANO II...82 3.3. A COISIFICAÇÃO DA PESSOA...86 3.4. AS ANGÚSTIAS E AS ESPERANÇAS DO SER HUMANO EM NOSSOS DIAS...90 3.5. A BUSCA DA FRATERNIDADE...95 3.6. A IMPORTÂNCIA DA COMPAIXÃO...98 3.6.1. A compaixão como um processo...104 3.6.2. A compaixão como princípio...106 3.7. A PRÁTICA DA MISERICÓRDIA...107 CONCLUSÃO...115 ANEXO...119 GLOSSÁRIO...123 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...133

7 INTRODUÇÃO... no meio do caminho da nossa vida encontrei-me dentro de uma floresta escura onde a trilha se perdia. Ah, como é difícil falar dessa floresta, selvagem e áspera e densa, que só de pensar o meu medo se renova! Tão amarga é, que dificilmente a morte pode ser mais.... Dante Alighieri 2 Percebe-se, cada vez mais, uma mudança na experiência que se tem da morte. É uma mudança com muitas causas, dentre as quais, a mais importante se deve aos progressos da medicina, da higiene alimentar... que mudaram radicalmente a longevidade humana. No entanto, o problema que se põe hoje, com crescente atualidade, não é mais tanto como retardar a morte, mas, antes, perguntar pelos motivos que se tem para prolongar a própria vida. Sem dúvida, as modificações da significação da morte e de seu contexto repercutem sobre um problema sempre antigo e, infelizmente, sempre atual: o suicídio. Trata-se, pois, de um problema bastante complexo. É comum, para muitos, inclusive autoridades pastorais, reafirmar doutrinas simples e coerentes, a fim de inspirar comportamentos bem precisos. Mas isto não é difícil de fazer. O desafio está em que, diante de situações novas na abordagem de determinados problemas, é importante e necessário ter prudência, sem se deixar levar pelo reflexo do medo, desejando, incorretamente, resolvê-los antes mesmo de tê-los colocado e de ter tomado certo tempo para observá-los mais atentamente. Até cerca de um século atrás, a questão do motivo para alguém tomar a decisão de tirar a própria vida ficou entregue, quase exclusivamente, aos teólogos, filósofos e juristas. Não se punha dúvida da responsabilidade moral da pessoa que praticava tal ato. Foi o sociólogo Durkheim, em 1897, que teve o mérito de ser o primeiro a levantar 2 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia, apud CORRÊA, Humberto; BARRERO, Sérgio Perez. (ed.). Suicídio: uma morte evitável. São Paulo: Atheneu, 2006, p. 103.

8 dúvida quanto à liberdade do suicídio 3. Empiricamente, ele mostrou que, em condições sociais adversas, crescem os casos de auto-extermínio. Depois de oito anos, o psiquiatra Robert Gaupp, chamou a atenção para a existência, nos suicidas, de situações anormais da personalidade e para a necessidade de se distinguirem criteriosamente motivos relacionados com a situação e causas patológicas 4. Se sempre se considerar o ato de suicídio como expressão de uma doença, pode-se desprezar os motivos provocadores do mesmo. A medicina teve, há muito tempo, que desistir de traçar separações claras entre saúde e doença e, mesmo no caso de uma problemática predominantemente psíquica, é necessário examinar, em cada caso, as condições biológicas e sociais, ou melhor, as condições psicossociais em que aconteceu o suicídio, e como nele se misturam motivos conscientes (passíveis de responsabilidade) e motivos inconscientes (não imputáveis à responsabilidade). Sem desconsiderar eventuais cargas biológicas ou sociológicas, são os fatores e forças psíquicas os responsáveis pela realização de sérios propósitos de suicídio, por impulsos e tentativas de suicídio, ou por suicídios. A presente dissertação procura justificar a complexidade cada vez maior de fatores presentes no decorrer de todo um processo que desencadeia, muitas vezes, num final trágico. O que tem a ver a Gaudium et Spes com esta questão? Num primeiro momento, nada, mesmo porque a Igreja não poderia aprovar um ato suicida. Porém, diante de um quadro de profundas modificações que vêm afetando fortemente a sociedade, o acontecimento do 3 Fundador da Sociologia, David Émile Durkheim combinou a pesquisa empírica com a teoria sociológica. Sua contribuição tornou-se ponto de partida do estudo de fenômenos sociológicos, como a natureza das relações de trabalho, os aspectos sociais do suicídio e as religiões primitivas. Foi um dos primeiros a estudar mais profundamente o suicídio, o qual, segundo ele, é praticado na maioria das vezes em virtude da desilusão do indivíduo com relação ao seu meio social. Em Le Suicide tentou mostrar que as causas do auto-extermínio têm fundamento social e não individual. Descreveu três tipos de suicídio: o egoísta, em que o indivíduo se afasta dos seres humanos; o anômico, originário, por parte do suicida, da crença de que todo um mundo social, com seus valores, normas e regras, desmorona-se em torno de si; e o altruísta, por lealdade a uma causa. Durkheim faleceu em Paris, em 15 de novembro de 1917. Embora Durkheim esteja sendo citado aqui, seu nome não aparecerá mais em nenhum outro lugar desta dissertação, pois, não é objetivo dar a este trabalho um enfoque sociológico. 4 Robert Gaupp (1870-1953) foi um dos mais proeminentes psiquiatras e neurologistas alemães.

9 Concílio Vaticano II, mediante a aproximação entre a Igreja e o mundo favoreceu um diálogo maior dela com o homem contemporâneo, desejando compreendê-lo mais intensamente em todos os seus problemas e iluminá-lo para dar mais sentido à sua existência. Esta aproximação ou abertura foi possível, principalmente, graças à Gaudium et Spes. Se, por um lado, objetivamente, podemos atribuir ao suicídio um adjetivo de abominável, temos de admitir, por outro, que é preciso avaliar cada caso. Não se pode negar, de certa forma, que o suicídio é uma recusa ao cumprimento de um dever, mas, também, que ele representa profundo questionamento, em relação à nossa qualidade de vida, considerando que se condena um número cada vez maior de pessoas ao isolamento, à solidão, ou, de qualquer maneira, à incapacidade de perceber o próprio sentido da vida.

10 1. O FENÔMENO DO SUICÍDIO EM SI MESMO 1.1. INTRODUÇÃO A abordagem do tema suicídio remete à possibilidade e à importância de trabalhar a questão da saúde em todas as dimensões humanas: física, psíquica e social. É cada vez mais perceptível que não basta ter uma doença física para afirmar que alguém goza de uma boa saúde. O ser humano necessita ser uma pessoa integrada, na qual os fatores físico, psíquico e espiritual estejam em harmonia. Os tempos atuais trouxeram condições de vida provenientes de um progresso tecnológico que nem sempre significa um progresso de bem-estar, de integração. O que se percebe são situações de neurose oriundas de uma síndrome de falta de sentido para viver. E o que podemos constatar como prejuízo aos enfermos em geral, podemos, igualmente, atribuir aos que têm tendência ao suicídio, ainda que este não acabe acontecendo. José Carlos Bermejo, discorrendo a respeito da humanização da saúde, tece afirmações a respeito do tratamento à pessoa enferma que têm sua aplicação no fenômeno do suicídio: Adquirimos a consciência de que a pessoa enferma nem sempre é tratada com a dignidade que lhe é de direito nas seguintes situações: sempre que, nas relações, são produzidos processos de despersonalização; sempre que as necessidades não são satisfeitas à medida do homem; sempre que a tecnologia anula ou toma o lugar do fundamental e insubstituível encontro interpessoal [...] 5. O fenômeno do suicídio está inserido num contexto no qual há um anseio universal por uma maior humanização, isto é, a garantia que tudo que envolva a saúde e a doença das pessoas seja digno da condição humana. [...] Não será essa, talvez, a tarefa fundamental da humanidade, garantir que seus membros sejam realmente pessoas? Pessoas vivendo em sociedade, capazes de se encontrarem com as demais na vulnerabilidade e de se acompanharem mutuamente para conseguirem, também, ser pessoas no lado escuro da vida 6. 5 BERMEJO, José Carlos. Humanizar a saúde: cuidado, relações e valores. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 9. 6 Ib. p. 9-10.

11 Abordando a problemática em torno da saúde e dando ênfase ao suicídio, experimentamos, com mais força, a urgência de uma humanização. A doença, em qualquer uma de suas dimensões na vida humana, sempre foi e será uma miséria. Diante do ser humano nessa situação somos profundamente interpelados quanto à solidariedade que necessitamos expressar. 1.2. UMA MELHOR COMPREENSÃO DA SAÚDE COMO BEM-ESTAR A Organização Mundial da Saúde define a saúde como um estado de completo bemestar físico, psíquico e social, não bastando a ausência de doença ou de enfermidade 7. A partir deste ponto, teríamos uma primeira possibilidade para orientar o caminho deste trabalho que consistiria em alargar o máximo possível o conteúdo da definição. E seria necessário dizer que o conteúdo do bem-estar, além dos setores que são elencados, devia também ser um bem-estar espiritual, com óbvia referência ao transcendente. Indo mais além, é preciso prolongar o conteúdo da saúde ao aspecto social e familiar, bem como a um grande número de outros fatores de atualidade, entre os quais devemos ressaltar os fatores ambientais, a salubridade das habitações, o urbanismo, o estilo de vida moderno, o trabalho ou a desocupação e assim por diante. Ao invés de tomar este caminho mais extensivo, pode ser mais interessante um outro mais intensivo e voltado para a qualidade, que parece mais adaptado a iluminar o conteúdo humano do conceito de saúde e mais de acordo com o ponto de vista teológico sobre a matéria. Em vista disso, vamos proceder por etapas. Em primeiro lugar, tentaremos descodificar, ou seja, converter em linguagem comum, alguns pressupostos desta definição corrente de saúde, apresentada acima. Em seguida, entraremos no seu 7 A Organização Mundial da Saúde (OMS) foi criada como uma agência específica das Organizações das Nações Unidas (ONU) em 1948. Sua existência oficial foi declarada em 7 de abril daquele ano, depois de mais da metade dos membros da ONU ter assinado sua constituição. Atualmente, esta data é comemorada como o Dia Mundial da Saúde.

12 conteúdo propriamente antropológico e ético, sem evitar o seu relacionamento com um aspecto impopular e incômodo, que é o sofrimento. Finalmente, vamos alinhar algumas componentes a privilegiar num ethos 8 da saúde bem à medida do homem. 1.2.1. O conceito de saúde na era da técnica e da eficiência Na cultura em que estamos, a idéia de saúde como bem-estar relaciona-se fortemente com as conquistas da tecnologia. Ao contrário, a ausência de saúde e a morte são sempre vistas como uma falência técnica de qualquer órgão do corpo humano e como um fracasso da medicina. Trata-se de um modo de ver próprio da nossa civilização, assentada no conhecimento e na conquista. Primeiramente, temos o domínio humano sobre a natureza. Numa primeira fase, este domínio restringia-se mais ao domínio sobre o cosmos. Porém, numa fase mais recente, a medicina e a biologia expandiram este domínio para o próprio corpo humano, de tal maneira que a pessoa se tornou não apenas sujeito, mas também objeto da própria conquista do cosmos pelo saber e poder técnico. Não somente o elemento bioquímico do ser humano, mas também o seu mundo mental e psicológico tem sido objeto desta conquista progressiva. A descoberta, desde Freud, do mundo psíquico do ser humano possibilitou criar bem-estar a muitas pessoas acometidas por grande número de padecimentos. O fato influenciou a mentalidade em geral. Ao descobrir um número cada vez maior de mecanismos da vida psíquica, a ciência transferiu para o domínio da saúde muitos dos fatores que eram tradicionalmente atribuídos às forças sobre-humanas e tratados no campo da magia ou do religioso. Aumentaram as possibilidades de uma vida melhor, mas, ao mesmo tempo, o conceito de saúde integrou novas vertentes, ou seja, novos 8 Aqui, o termo ethos deve ser entendido como a fundamentação dos princípios morais, posteriormente transformados em convicções e em regras de comportamento (cf. PRIVITERA, Salvatore. Ethos. In: Dicionário de Bioética. Vila Nova de Gaia (Portugal): Perpétuo Socorro; Aparecida: Santuário, 2001, p. 420).

13 direcionamentos. Um outro fator que deve ser considerado na questão da saúde é a complexidade da vida social. De fato, observamos que a sociedade, que em estágios anteriores se ocupava de forma mínima com a vida dos indivíduos, ampliou recentemente a sua intervenção. É assim que o Estado assume sobre si próprio a responsabilidade pela saúde, principalmente pela saúde pública, mas também pela saúde privada. O efeito disso foi alargar o conceito de saúde a dimensões insuspeitadas e tornar a sua efetivação, enquanto direito e dever dos indivíduos e das instituições, a um nível de complexidade que torna esse setor um dos mais polêmicos e conflitivos das sociedades atuais. A preocupação pela higiene e saúde estendeu-se, pois, a quase todos os setores da vida humana. Durante séculos, a saúde tinha a ver apenas com a ausência de enfermidades físicas, enquanto que a saúde psíquica, espiritual, as condições de vida e o meio ambiente ou eram de foro mágico-religioso ou não constituíam ainda problema, como é o caso do meio ambiente. Certamente, o bem-estar a que se refere o estado de saúde perfeita possui um grande número de vertentes. Por outro lado, a saúde também se secundariza, no sentido de não ser propriedade e responsabilidade do indivíduo, mas de terceiros, médicos e diversos técnicos de um sistema público. 1.2.2. Pressuposições da saúde como bem-estar Diante do que foi apontado acima, a Organização Mundial de Saúde define a vida saudável como um completo bem-estar e não apenas como ausência de doenças ou enfermidades. Aprofundemo-nos um pouco no que significa esta definição. Num estudo sobre o ethos do progresso bioquímico, Jürgen Moltmann identifica quatro visões do mundo que podemos utilizar como pressuposições do conceito de saúde. Em

14 primeiro lugar, o desenvolvimento tem como ponto de mira um mundo asséptico, isto é, extremamente limpo. Isso significa que a vitória sobre as bactérias e os vírus levará ao domínio das doenças infecciosas e à criação de um universo quimicamente puro. Em segundo lugar, o desenvolvimento dos psico-fármacos persegue a utopia de uma vida sem dor. Em seguida, o domínio das técnicas de transplante de órgãos gera a idéia da possível substituição das partes do corpo como se fossem peças de um mecanismo, gerando, então, a miragem de uma vida sem fim temporal. Finalmente, a nova genética, conhecendo o programa dos seres humanos, levará à eliminação das doenças hereditárias e, como conseqüência, a uma melhoria da espécie humana e a uma hipotética aceleração da evolução natural 9. Cabe, agora, perguntarmo-nos: será que tal programa corresponde, de fato, a um completo bem-estar da pessoa? A relativa vitória sobre as doenças infecciosas correspondeu a um avanço inegável da qualidade da saúde e da vida. Aumentou bastante a expectativa de vida, reduziu a mortalidade infantil, garantiu a imunidade sobre um grande número de doenças. Os países considerados desenvolvidos possuem uma assistência sanitária que abrange grande parte da população. Mas esta vitória sobre a natureza hostil é apenas fonte de bem-estar para as pessoas? Não dará este fato origem a novas formas de mal-estar? O desenvolvimento da biomedicina favoreceu a explosão demográfica; por sua vez, o domínio sobre parte da seleção natural provocou uma degeneração do patrimônio genético. Este incremento das populações fez aparecer novas formas de competição entre as pessoas, competição na escola e no emprego, que, por sua vez, estão na origem de diversas formas de doenças, principalmente do foro psíquico, mas também, eventualmente, novas formas de vulnerabilidade às infecções de vírus e bactérias. Além das conseqüências sobre o meio ambiente causadas pelos meios químicos de combate aos parasitas, podemos assinalar, 9 MOLTMANN, Jürgen. Etica e progresso biomedico. In: Futuro della creazione: Brescia (Itália), 1980, apud CUNHA, Jorge Teixeira da. Bioética Breve. Apelação (Portugal): Paulus, 2002, p.12.

15 sobretudo, novas formas de mal-estar decorrentes da ruptura do equilíbrio entre gerações, este último conseqüência do envelhecimento das sociedades. O mesmo podemos dizer dos novos conflitos surgidos entre pobres e ricos dentro da mesma sociedade e dos mesmos entre povos de continentes ricos e pobres. Sem dúvida, não podemos deixar de considerar que o uso dos psico-fármacos tem uma vantagem evidente na superação da dor e, portanto, na criação de um bem-estar para as pessoas. Mas, aqui também o fenômeno é ambíguo e podemos visualizar o aparecimento de posteriores formas de mal-estar. Um grande exemplo, aqui, é o problema do consumo de drogas e alucinógenos que assume proporções mundiais neste momento. Mas, independentemente disso, podemos perguntar se uma vida sem dor é uma vida saudável, ou, antes, ao contrário, não corresponde a uma evidente desumanização do ser humano. De certa forma, uma vida sem dor não seria uma vida sem afeto e sem amor? Infelizmente, as possibilidades atuais no transplante de órgãos não são ainda satisfatórias, embora correspondam a um avanço inegável na conquista da saúde. Mesmo assim, a sua realização será, certamente, fonte de novos desequilíbrios para a pessoa, vista na sua totalidade. Sem olhar para o mito de uma vida sem fim, monótona, vazia e entediante, percebemos que esta possibilidade é fonte de novos mal-estares na pessoa e na sua unidade de corpo-espírito. Que será feito da dimensão corporal do ser humano numa situação de substituição freqüente de partes do organismo como se tratasse de peças de um mecanismo? Será isto uma situação de saúde perfeita? De que maneira se pode conceber uma melhora da espécie humana, tal como oferecem perspectivas as novas possibilidades da genética, mediante a eliminação de doenças? Não criaremos novas formas de mal-estar e de conflito entre elites robustas e multidões de seres comuns, não modificados?

16 1.2.3. Uma crítica ao conceito moderno de saúde Quando analisamos a visão da saúde humana própria da modernidade com as suas idéias de desenvolvimento, e colocamo-nos na perspectiva de um autêntico bem-estar da pessoa, precisamos reconhecer que corresponde a um real avanço da humanidade em qualidade de vida, porém não deixa de se revelar ambíguo e cheio de deficiências. A situação descrita acima faz coincidir o conceito de saúde com o avanço da medicalização e com o correspondente acréscimo de prestígio e de poder por parte da classe médica. Realmente, entende-se por saúde a ausência de enfermidades e uma grande preocupação preventiva referente a possíveis infecções. No entanto, para além disso, assistimos a uma medicalização de quase todas as fases da vida humana, sobretudo da gestação, nascimento e infância, da fase terminal da vida que precede a morte. Porém, esta expansão do âmbito médico cresce, também, em direção a outros aspectos da vida, como a vida sexual, a nutrição, a educação física, o esporte, o trabalho. Tal aspecto tem sido objeto de crítica por parte de alguns observadores e fala-se até de uma febre higienista que é difícil identificar com o conceito de saúde 10. Outro ponto a ser considerado é que é justo reconhecer que a medicina moderna se preocupa com o bem-estar do indivíduo na sua integralidade, não deixando de ter em conta as interações entre vida física, psíquica e espiritual. Porém, o modo como lida com o corpo humano ocasiona uma nova forma de objetivização do corpo que impossibilita a integração da totalidade das dimensões do ser humano. Apesar de certo acréscimo de derrota das epidemias e acréscimo de bem-estar, assistimos, atualmente, ao aparecimento de novas formas de patologia tanto físicas como 10 CUNHA, Jorge Teixeira da. Bioética Breve. Apelação (Portugal): Paulus, 2002, p. 16.

17 psíquicas. Aqui, queremos realçar sobretudo estas últimas, por serem mais significativas para o nosso propósito. A obra de Viktor E. Frankl é inequívoca: as sociedades modernas originam novas formas de neurose provenientes das condições de vida que ele agrupa sob a designação de síndrome da falta de sentido 11. Trata-se de uma nova fonte de mal-estar que mostra como o conceito moderno de saúde é gravemente imperfeito, visto desde a perspectiva do bem-estar da pessoa como tal. Numa palavra, podemos dizer que o conceito moderno de saúde privilegia excessivamente os fatores da eficiência e da capacidade de fruição, ou seja, do gozo, da posse, do desfrute, a capacidade de participar no processo produtivo das sociedades como condição de ter acesso a fruir dos bens produzidos. Porém, reprime outras dimensões que fazem parte do autêntico bem-estar da pessoa. 1.2.4. O conceito de saúde na Teologia De um ponto de vista teológico, podemos apontar algumas dimensões que não deveriam ser esquecidas pela cultura moderna, para que se possa avançar num programa de autêntico bem-estar da pessoa. Na busca da definição do que seja o bem-estar da pessoa, um ponto crucial é saber o significado que se dá ao sofrimento. De acordo com o seu espírito muito próprio, o pensamento ocidental evitou esta questão, tendo sempre colocado a sua atenção na parte ativa do ser, isto é, na ação e não na paixão, no poder e não no padecer. A teologia participa desse espírito, privilegiando, em geral os atributos de Deus 11 Segundo Viktor Emil Frankl (Viena, 26 de março de 1905 2 de setembro de 1997), existe no ser humano um desejo de sentido. Percebeu que seus pacientes não sofriam exclusivamente de frustrações sexuais ou de complexos como o de inferioridade, mas também do que considerava ser o vazio existencial. A exigência fundamental da pessoa é a plenitude de sentido. Sua filosofia é fundamentalmente otimista e baseada na crença fruto de sua experiência pessoal de que o fim último da existência humana tem uma meta fora da própria pessoa, fim este que lhe dá o sentido da própria existência.

18 enquanto poder e ação, deixando na sombra os aspectos de passividade 12 e de abaixamento. Durante muitos séculos, a cristologia e a soteriologia lidaram com visível desconforto com os sofrimentos que acompanham a morte violenta de Cristo. Tal desconforto está visível nas explicações elaboradas para esses sofrimentos. O sentido do sofrimento era tratado como alheio à pessoa de Jesus e à sua relação com Deus. Por sua vez, a imagem de Deus que aceitava ou tolerava o sofrimento do Filho era completamente inaceitável teologicamente. E, no entanto, é necessário dizê-lo, o sofrimento e a morte de Jesus, além de serem conseqüência da injustiça humana, são algo que tem a ver com a relação de Jesus com Deus e, por conseguinte, têm um sentido para a condição humana. Esta dissertação não tem como objetivo levar longe as implicações da afirmação acima, porém, é importante justificá-la brevemente, tanto quanto baste para mostrarmos como a integração do sofrimento na vida pessoal é um dado fundamental para quem deseja iluminar o conceito de saúde como bem-estar da pessoa. Sem cair num qualquer racionalismo para explicar o sofrimento da cruz de Cristo, o teólogo François-Xavier Durrwell 15 faz uma incursão profunda neste mistério. Aproveitando da conhecida distinção da filosofia personalista entre as realidades que pertencem à ordem do ser e as que pertencem à ordem do ter", ele percebe como o sofrimento em geral pertence ao ter" e não pode de modo sadio ser amado pela pessoa. No entanto, aceite livremente, este sofrimento pode sinalizar o autêntico altruísmo e o amor ao semelhante. Vivendo uma condenação injustificada e absurda, no contexto de um processo injusto, Jesus abriu a sua humanidade à plenitude de Deus e realizou humanamente a sua filiação divina. Porém, continua o autor, existe na morte de Jesus um sofrimento que não é da ordem do ter", e sim, do ser : aquele a que se refere o grito Meu Deus, por que me abandonaste? (Mc 14,34). 14 Este termo, aqui, não deve ser entendido num sentido pejorativo, e sim, enquanto, aceitação do sofrimento, atribuindo-lhe um valor próprio, dentro de uma determinada realidade. 15 DURRWELL, François-Xavier. Le Père. Dieu en son mystère. Paris, 1987, p. 62-74, apud CUNHA, Jorge Teixeira da. Bioética Breve. Apelação (Portugal): Paulus, 2002, p. 18-19. Durrwell é sacerdote redentorista.

19 Este sofrimento pertence ao próprio âmbito da relação Pai e Filho. De acordo com a cristologia personalista de Durrwell, o mistério da filiação divina de Jesus realiza-se numa proximidade-distanciamento: Jesus é o Filho de Deus numa intimidade com o Pai, intimidade esta que coincide com a distância existencial mais extrema que é a sua encarnação na semelhança com a carne pecadora. Os psicanalistas lembram justamente que existe um vestígio nas relações humanas deste mistério profundo: o ser humano chega à individualidade e à capacidade de relacionar-se mediante a condição de ser destacado, primeiramente do corpo da sua mãe, posteriormente, separado da intimidade da sua família e, finalmente, do seu corpo, na morte 16. A partir destas breves observações teológicas, suficientes para afirmar um sentido ontológico para a passividade e o sofrimento, podemos concluir que uma compreensão do conceito de saúde apenas como eficiência e como capacidade de desfrutar prazerosamente será necessariamente incompleto. Portanto, para chegarmos a um conceito englobante, temos de incluir algo impopular mas imprescindível, que tem a ver com uma aceitação e certa capacidade para o sofrimento. 1.2.5. Saúde, sofrimento e finitude O famoso psicoterapeuta Viktor E. Frankl notou como a profissão do médico confrontava-o com pessoas que sofriam, algumas das quais eram pessoas completamente incuráveis e para as quais a condição sofredora tornou-se um destino inevitável. Desde já, podemos nos perguntar se tal condição sofredora não pertence, mais cedo ou mais tarde, a todos os seres humanos. Nestas circunstâncias, continua Frankl, será que o papel do médico 16 CUNHA, Jorge Teixeira da. Bioética Breve. Apelação (Portugal): Paulus, 2002, p. 19.