LUGARES E NÃO-LUGARES DE UM PERSONAGEM DIASPÓRICO



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Transcrição:

LUGARES E NÃO-LUGARES DE UM PERSONAGEM DIASPÓRICO Julia Goulart Sereno 1 Este trabalho visa analisar o modo como Nazneen, protagonista do romance Brick Lane (2003), da escritora inglesa Monica Ali, recorre às memórias de sua infância em Bangladesh para tentar se distanciar do espaço físico de Brick Lane (região onde reside em Londres). Em minha argumentação, farei uso dos conceitos de lugares e não-lugares elaborados pelo antropólogo francês Marc Augé no livro Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade (1994). Tais conceitos se mostram muito pertinentes na análise das passagens do romance que caracterizam a sensação de não-pertencimento vivida pela personagem. A trama de Brick Lane é centrada na estória de Nazneen, jovem nascida em uma aldeia em Bangladesh que, após um casamento arranjado com um homem bem mais velho, migra para Londres, afastando-se da irmã Hasina, com que mantém um forte laço afetivo. Sem falar a língua local, Nazneen se sente deslocada, e encontra nos costumes e os preconceitos locais uma barreira, que gera sentimentos de alienação e não-pertencimento, amenizados através da leitura das cartas que recebe da irmã, Hasina, que ainda mora em Bangladesh. Assim como outros imigrantes que procuram preservar seus aspectos culturais e religiosos, Nazneen procura, através da oração e de suas divagações, encontrar uma parte de sua identidade, que parece ter sido perdida desde que se mudou para Londres. Apesar de viver em uma comunidade de imigrantes vindos Bangladesh, Nazneen não sente que pertence a esse lugar, recorrendo às lembranças de sua terra natal como uma forma de escapar da dura realidade de Londres. Seus sonhos também são habitados por lembranças de sua família na aldeia onde morava. Em Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade Marc Augé analisa a relação entre o homem e o espaço que o cerca, bem como a questão da identidade e coletividade, oferecendo uma perspectiva mais abrangente sobre a noção de mobilidade e de como a sensação de 1 Mestre em Literaturas de Língua Inglesa pela UERJ..

estranhamento afeta certos indivíduos no mundo atual. Marc Augé afirma que vivemos em tempos de produção de não-lugares, que não podem ser definidos como relacionais, históricos ou identitários. Lugares públicos como aeroportos, estações de metrô, hotéis e supermercados são exemplos de não-lugares, descritos como espaços alienantes, nos quais somos forçados a passar mais tempo de nossas vidas. Augé estabelece uma ligação clara entre os efeitos da supermodernidade e o surgimento de não-lugares. Segundo o autor, a supermodernidade é marcada por excessos, falta de controle, abundância de informações e transformações que acontecem em tempo acelerado. Nesse contexto de rápidas transformações, aqueles que passaram pela experiência da diáspora, além dos deslocamentos geográficos, lingüísticos, culturais e psíquicos que a acompanham, podem ter a sensação de que habitam um não-lugar ou de que vivem em um entre-lugar. Com o passar do tempo, essa condição limite poderá reforçar a sensação de não-pertencimento ou resultar em um processo gradativo de aceitação do novo lar. No contexto da diáspora, o conceito do não-lugar é relevante no que se aplica a necessidade do imigrante em buscar no espaço uma identificação. A busca pelo pertencimento e a tentativa de recuperar o que Marc Augé chama de lugar antropológico são inevitáveis. De acordo com Augé, os estudos antropológicos visam analisar a maneira como os sujeitos interpretam a categoria do outro, atribuído-lhe um lugar, uma raça ou uma etnia. Como a noção de pertencimento ultrapassa a esfera física, o lugar antropológico é o espaço concreto que o sujeito vê como sendo dele, que representa a sua formação cultural e é visto como relacional, histórico e identitário. Em Brick Lane, Nazneen representa esse lado conflituoso do sujeito diaspórico, que enfrenta o dilema de viver em um não-lugar. Pretendo neste trabalho fazer uma análise de algumas passagens do romance que ilustram as estratégias usadas pela protagonista a fim de resistir o deslocamento espaço-temporal bem como tornar seu presente mais tolerável. Nazneen sempre foi ensinada a aceitar o Destino sem questionar, como parte de sua fé muçulmana. Sua mãe dizia que o Destino sempre decidiria tudo, seja qual fosse o caminho que ela desejasse seguir. Assim, Nazneen não se permite ter desejos ou impulsos porque não acredita que eles farão alguma diferença. Ela está convencida de que deve aceitar as coisas

como são, seja o casamento arranjado com um homem desconhecido e mais velho ou a mudança para longe do lugar onde era feliz. Devido a essa visão determinista do mundo, Nazneen acredita que seu futuro já esteja traçado, o que acaba por restringir a capacidade de mudar sua vida. Como Nazneen permanece no apartamento o dia todo dando conta dos afazeres domésticos e observando os vizinhos, ela procura conforto nas memórias, que a levam de volta à aldeia e à sua irmã. Em seus sonhos, predominam imagens associadas à natureza, cores, afeto e liberdade, elementos que não fazem parte de sua vida em Londres: Nazneen adormeceu no sofá. Ela via plantações de arroz cor de jade e nadou no lago escuro e frio. Caminhava para a escola de braços dados com Hasina e elas iam pulando pelo caminho e caíram e limparam os joelhos com as mãos( ) E o céu, lá no alto, era grande e vazio e a terra estendia-se à frente, onde ela conseguia enxergar seu fim, onde a terra se juntava ao céu numa linha azulescura. 2 A distinção entre a região rural onde Nazneen vivia e o ambiente urbano de Brick Lane é exposta logo no início do romance. Nazneen não consegue sentir alegria em um lugar onde as portas eram todas iguais. A passagem seguinte mostra a visão de Nazneen sobre o lar ideal, ou seja, o lugar o qual ela pertence: Você pode espalhar sua alma por uma plantação de arroz, pode sussurrar para uma árvore, pode sentir a terra debaixo dos pés e saber que ali é o lugar, o lugar onde tudo começa e acaba. Mas o que pode dizer para uma pilha de tijolos? Os tijolos não se comoverão. Além de amenizar o seu sentimento de nostalgia, a leitura das car- 2 MONICA ALI. Um lugar chamado Brick Lane. Tradução de Léa Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 19. Todas as citações seguintes neste trabalho referem-se a mesma obra.

tas enviadas por Hasina também criam fantasias de liberdade para Nazneen, que pode mover as paredes e muros que a prendem em Brick Lane através da imaginação. De certo modo, a realidade paralela feita de sonhos e memórias é mais concreta e expressiva para Nazneen do que a sua rotina em Brick Lane: Sempre que recebia uma carta de Hasina, ela levava um ou dois dias imaginando-se também uma mulher independente. As cartas eram longas e detalhadas. Nazneen escrevia e reescrevia suas respostas até que a gramática estivesse satisfatória e todos os erros tivessem sido apagados, junto com todos os sinais vitais. Mas Hasina não se preocupava com nada disso: as cartas dela eram cheias de erros, transbordando vida. Nazneen navegava no meio das palavras, permitia que elas as levassem pelos sete mares até Daca, onde trabalhava ao lado da irmã. Com o passar do tempo, o caminho de autoconhecimento de Nazneen se mistura às mudanças que acontecem no seu cotidiano. A ajuda e incentivo da vizinha e amiga Razia é crucial para a transformação da protagonista. Graças a ela, Nazneen começa a trabalhar costurando para fora, contribuindo para a situação financeira da família e, sobretudo, adquirindo uma certa autonomia, mesmo que dentro de casa. Quando seu marido Chanu fica desempregado, é o dinheiro do trabalho de Nazneen que paga as contas da casa assim como as dívidas do marido com a agiota Sra. Islam. Karim, o jovem muçulmano que traz as roupas que Nazneen tem que costurar, também assume um papel crucial em sua vida. O caso amoroso entre os dois proporciona a Nazneen o prazer sexual e a sensação de plenitude que ela nunca havia experimentado antes com Chanu, mas também a faz sentir culpada, pois ela sabe que está transgredindo os preceitos morais e religiosos que lhe foram ensinados: Ele foi o primeiro homem a vê-la nua. Isto a deixou doente de vergonha. Isto a deixou doente de desejo. Eles cometeram

um crime. Era um crime e a sentença era a morte. No meio dos lençóis, dentro dos braços dele, ela buscava o seu prazer desesperadamente, como se o carrasco estivesse esperando atrás da porta. Além da morte havia o fogo eterno do inferno e de cada contato da carne contra carne ela extraía a coragem para suportá-lo. É importante ressaltar que, nesse ponto da narrativa, as memórias nostálgicas de Bangladesh não são tão recorrentes como antes: A aldeia a estava abandonando. Às vezes vinha uma imagem. Vívida, tão forte que ela sentia o seu cheiro. Mas quase sempre ela tentava ver e não conseguia.a rotina de Nazneen também é afetada pelo seu relacionamento com Karim. O tédio do passado dá lugar a uma alegria repentina: ela limpava o apartamento e até mesmo enxugar o chão depois do vaso transbordar não era tão cansativo se isto fosse feito com uma canção nos lábios e no coração. Era como se os embates incendiários com Karim tivessem lançado uma luz especial sobre tudo, a luminosidade de um amanhecer depois de uma vida inteira passada no escuro. Era como se ela tivesse nascido deficiente e só agora tivesse recebido o dom do sentido que lhe faltava. No entanto, quando Karim a pede em casamento, Nazneen percebe que não está tão certa quanto ao seu futuro. Abandonar seu marido seria ir contra aquilo que o Destino havia escolhido para ela. Porém, esperar pela decisão do destino não é mais um pensamento consolador: Por que ela deveria esperar? (...) De repente, todo o seu ser foi tomado de raiva. Eu vou decidir o que fazer. Eu vou determinar o que vai ser de mim. Sou eu quem vai fazer isso. Apesar de Karim dizer que Nazneen não é como as outras e a chamar de artigo genuíno, ela nota que Karim tem uma visão idealizada dela: Como Karim a via? Um artigo genuíno, ele disse. Ela era um artigo genuíno. Uma esposa bengalesa. Uma mãe bengalesa. Uma ideia de lar. Uma ideia de si mesmo que ele via nela Nazneen também admite que ambos haviam criado imagens um do outro para se sentirem mais seguros: Como eu posso explicar? Eu não era eu e você não era você. Desde o co-

meço até o fim, nós não enxergamos nada. O que nós fizemos foi inventar um ao outro. Ao lutar para se libertar das regras impostas a uma mulher muçulmana vinda de uma aldeia em Bangladesh, Nazneen transgride o papel de esposa asiática submissa, arriscando o seu casamento e desafiando velhas crenças. A ligação que existia com sua terra natal, feita através da troca de cartas com a irmã, dá lugar a uma ideia de pertencimento mais flexível. Quando seu marido começa a economizar dinheiro para voltar para Bangladesh, Nazneen não tem tanta certeza de que retornar ao seu país de origem a fará se sentir mais protegida e feliz. Conforme a verdade sobre a condição de vida precária de sua irmã Hasina e de outras mulheres em Bangladesh vai sendo revelada, a visão romantizada que Nazneen tinha de sua terra natal vai desaparecendo. Assim sendo, ela decide enfrentar os fatos da vida que não podem ser evitados e reconhece que não é mais uma garota da aldeia. No final do romance, Nazneen se dá conta de que, ao ganhar autonomia para recusar a proposta de casamento do amante e se negar a acompanhar Chanu no retorno a Bangladesh, ela consegue encontrar o seu lugar no mundo. A decisão de ficar em Londres com suas filhas pode ser vista como um elemento-chave no processo de identificação de Nazneen com a terra (não mais) estranha. Não é mais preciso fugir de Londres por meio de sonhos ou flashbacks, pois sua casa em Brick Lane deixa de ser um não-lugar quando se torna significativa para ela, com laços afetivos importantes. Percebe-se, então, que Nazneen não ensinará às filhas os mesmos preceitos transmitidos por sua mãe quando era criança, o que fica claro na passagem em que ela decide não contar mais a elas a estória que ouvia de sua mãe: Como Você Foi Deixada ao Sabor do Destino. O respeito e consideração pelo desejo das filhas de continuar em Londres também resulta da coragem e determinação de Shahana, sua filha mais velha, em não aceitar passivamente o que seus pais planejaram para ela.

O romance termina quando Bibi, Shahana e Razia surpreendem Nazneen ao levá-la para patinar no gelo. Apesar de não estar vestida apropriadamente, como as mulheres que assistia nos shows de patinação pela TV, a passagem mostra o deslumbramento da personagem ao experimentar as sensações proporcionadas pela atividade: Na frente dela havia um enorme círculo branco, cercado por um metro e meio de pranchas de madeira. Gelo, cintilante, ofuscante, fascinante. Ela contemplou o gelo e aos poucos ele se revelou. O ziguezague de mil cicatrizes, as cores que mudavam com a luz, a natureza imutável do que havia por baixo. Uma mulher passou deslizando numa só perna. Sem lantejoulas nem saiote. Ela usava jeans. Ela acelerou, usando as duas pernas. Patinar pela primeira vez é a consolidação física da liberdade que Nazneen conseguiu alcançar. É no seu pequeno apartamento rodeado de muros feitos de tijolos que Nazneen ganha autonomia e independência conforme ela se liberta das restrições patriarcais representadas pelas figuras de seu marido e de seu amante. Por muitos anos, Londres foi um não-lugar para Nazneen, vazio de sentido ou identificação. As memórias e sonhos de Bangladesh foram elementos através dos quais Nazneen conseguia atribuir uma identidade a si mesma e tentava recuperar o que Augé define como lugar antropológico: identitário, relacional e histórico. O processo de identificação de Nazneen com o que antes era um não-lugar para ela se faz possível porque ela consegue desenvolver uma ligação emocional com Brick Lane e com as pessoas à sua volta. Portanto, o sentimento de inclusão e compreensão da protagonista é fundamental para a sua sensação de pertencimento. Como afirma Stuart Hall, talvez seja mais uma questão de buscar estar em casa aqui, no único momento e contexto que temos.

Bibliografia ALI, Mônica. Um lugar chamado Brick Lane. Tradução de Léa Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. 471 p. AUGÉ, Marc. Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Tradução de Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Papirus, 1994. 112 p.