Amor e precipitação: um retorno à história de Sidonie C., a paciente homossexual de Freud

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Transcrição:

Amor e precipitação: um retorno à história de Sidonie C., a paciente homossexual de Freud Alexandre Rambo de Moura Nosso trabalho se desdobra das questões que emergem a partir do livro Desejos Secretos, a história de Sidonie C., a paciente homossexual de Freud (2008). A história de Sidonie nos intriga ao apresentar um forte desejo de viver o amor, mas cujo enlace não leva à conjugalidade. De forma recorrente em sua história, podemos ver, ao lado de um forte apaixonamento, uma marcada impossibilidade de viver uma relação amorosa. Sua forte enunciação: Quando enfim chegava a dar certo, já estava acabado (ibid.) nos sublinha um lamento sobre um fim prematuro de uma vivência amorosa possível. Sidonie apresenta de forma recorrente uma forma cortês de amar, na qual só é possível sustentar um endereçamento amoroso à distância. Quando convocada a estabelecer uma relação com sua amada, ela não consegue suportar o enlace e colabora para que a relação não vá adiante. Precipitação é um significante que marca sua história: ela se precipita nos trilhos do trem; em momentos de angústia, pensa em jogar-se no lago; precipita-se para fora do enlace quando a relação está prestes a se estabelecer; comete três tentativas de suicídio. Contardo Calligaris (1991) desenha a imagem de que a relação amorosa é como jogar tênis. Do lado de cá, estamos nós, e da rede para lá, não há o outro, mas o que projetamos como outro lado da quadra. Nosso lugar nesse jogo é um tanto fixo, resguardado pelo imaginário, que nos possibilita um laço fantasmático com o objeto de nosso desejo. O fantasma, entretanto, é constantemente colocado em xeque pelo real que advém da relação: real que invade a quadra e interroga nossa posição no jogo. Diante desse real, pode o sujeito mudar de posição; pode buscar retornar rapidamente a uma significação que o garanta em um mesmo lugar; pode ainda sucumbir à emergência desse real, precipitando-se jogo afora, saindo de quadra pelo buraco aberto. Quando o fantasma que sustenta e dá consistência ao sujeito na relação com o Outro (mas também faz com que ele desconheça a posição de objeto que ocupa diante o desejo do Outro) é de alguma forma colocado em xeque, emergindo algo do real,

gerando angústia, quais ferramentas possibilitam que ele possa fazer algo com essa abertura? Quando algo inesperado emerge entre um significante e outro, interrogando o sujeito nesse intervalo, o que possibilita que ele não somente caia como resto, passe ao ato, mas possa fazer algo a partir dessa falta que o causa? Jacques Lacan (1953-54) nos dirá: Aprendam a distinguir agora o amor, como paixão imaginária, do dom ativo que constitui no plano simbólico. A possibilidade de amor sustentada no simbólico, nomeada Dom Ativo do Amor, erige-se em torno de uma falta. O amor, cujo rebaixamento pareceu aos olhos de alguns que nós havíamos procedido, só se pode colocar nesse mais-além, onde, primeiro, ele renuncia a seu objeto. Também está aí o que nos permite compreender que qualquer abrigo onde pudesse instituir-se uma relação vivível, temperada, de um sexo ao outro, necessita a intervenção é o que ensina a psicanálise desse medium que é a metáfora paterna (grifo nosso, LACAN, 1964). Não é, portanto, justamente a inscrição, fruto da Metáfora Paterna, que sustenta o sujeito em um significante mestre, desde o qual, por sua vez, pode desdobrar-se uma cadeia significante que permite a ele, nas irrupções do real que esburacam o fantasma, não ser somente o resto a cair, mas representar-se diante do enigma de seu desejo? Lacan (1958), nos dirá que o complexo de castração tem uma função de nó que permite a instalação, no sujeito, de uma posição inconsciente sem a qual ele não poderia identificar-se com o tipo ideal de seu sexo, nem tampouco responder, sem graves incidentes, às necessidades de seu parceiro na relação sexual (grifo nosso). O que intervém na relação de amor, o que é demandado como signo de amor nunca passa de alguma coisa que só vale como signo. Ou, para ir ainda mais adiante, não existe maior dom possível, maior signo de amor que o dom daquilo que não se tem. Mas vamos observar bem que a dimensão do dom só existe com a introdução da lei. Como nos afirma toda a meditação sociológica, o dom é algo que circula, o dom que vocês fazem é sempre aquele que receberam. Mas quando se trata do dom entre dois sujeitos, o ciclo de dons vem ainda de outra parte, pois o que estabelece a relação de amor é que o dom é dado, se podemos dize-lo, em troca de nada (LACAN, 1956-57). Lacan (ibid.), ao aprofundar a questão do dom, sublinha um ponto importante: o desejo visa ao falo na medida em que este deve ser recebido como um dom. Para este fim, é necessário que o falo, ausente ou presente noutra parte, seja elevado ao nível do

dom. E é na medida em que ele é elevado à dignidade de objeto de dom, que faz o sujeito entrar na dialética da troca, aquela que irá normalizar todas as suas posições, até inclusive as interdições essenciais que fundam o movimento geral da troca (grifo nosso). Se a acolhida do outro em um laço passa por sustentar uma perda, como no ritual do Potlatch, As Preciosas (movimento feminino do Séc. XVII), inversamente, são emblemáticas da posição da jovem homossexual, que, como indica Lacan, não se arrisca a tomar o falo por um significante. A singular inscrição da falta de objeto, que eleva o falo ao nível do dom, possibilita que o sujeito entre na dialética da troca, possa circular e vir a ocupar diferentes posições. Não é outra coisa que eu digo quando digo que o amor é signo de que trocamos de discurso, dirá Lacan (1972-73). Também no seminário A Transferência (1960-61), o amor aparece ligado à mudança de posição. Parece-nos haver um mesmo fio condutor que situa, como uma possibilidade simbólica relativa ao amor, essa operação de metáfora pela qual, sendo o falo elevado ao nível do dom, o sujeito pode se instalar em uma relação amorosa vivível e suportar as voltas as quais esse enlace convoca, intercambiar a posição desejante, circular simbolicamente e mudar de uma posição à outra no discurso, sem sucumbir gravemente a ela. Referências Bibliográficas: CALLIGARIS, Contardo; et. al. O laço conjugal. Porto Alegre: publicação interna da APPOA, 1991. LACAN, Jacques (1953-1954). O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986. (1956-1957). O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995. (1958). Juventude de Gide ou a letra e o desejo. In:. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 749-775. (1960-1961). O Seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (1964). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

(1972-1973). O Seminário, livro 20: mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. RIEDER, Inês; VOIGT, Diana. Desejos secretos: a história de Sidonie C., a paciente homossexual de Freud. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Psicólogo. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). End.: Rua Jacinto Gomes, 185/03. Santana. Porto Alegre RS. CEP: 90040-270. E-mail: aew@trf4.gov.br