UMA ESTRELA QUE ATRAVESSA O TEMPO: OUTRO PÉ DA SEREIA, DE MIA COUTO Carlos Eduardo Soares da Cruz (UFRJ) carledu@ig.com.br e edu_uerj@yahoo.com.



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UMA ESTRELA QUE ATRAVESSA O TEMPO: OUTRO PÉ DA SEREIA, DE MIA COUTO Carlos Eduardo Soares da Cruz (UFRJ) carledu@ig.com.br e edu_uerj@yahoo.com.br Uma estrela corta o romance de Mia Couto assim como as cadentes cortam o céu. Presente já na primeira frase, a imagem da estrela vai percorrer o texto até o final. É ela que vai atravessar o tempo, cruzar os séculos, como diz Mwandia numa das sessões em que está em transe, até ser enterrada efetivamente, mas não sem antes cumprir seu papel de iluminar e guiar. O romance O Outro Pé da Sereia (2006), de Mia Couto, também se propõe a atravessar o tempo e, tal como a estrela que o percorre, vai iluminar o passado, ligando tempos diversos, num ciclo. O que é aberto torna-se a fechar. Tanto que o romance é composto por duas narrativas que se complementam: uma passada na atualidade e outra no século XVII. Assim, o enterro da estrela, anunciado pelo personagem Zero na primeira linha do romance, vai esperar que os mundos se liguem, passado e presente, vivos e mortos, até ser repetido na última página, como anunciado por Mwandia. Afinal, somente ela é capaz de carregar a imagem da Santa com um pé só sem queimar-se. Em todo o mundo é assim: morrem as pessoas, fica a História. Aqui, é o inverso: morre apenas a História, os mortos não se vão. (Couto, 2006, p. 10). Assim nos fala o Barbeiro de Vila Longe, na epígrafe do primeiro capítulo, que é uma prolepse de todo o romance, no qual não se sabe se certos personagens estão vivos ou mortos e onde a História é enterrada após ser revisitada. Tudo começa com Zero Madzero, burriqueiro marido de Mwandia, preocupado com a morte da estrela que teria caído em seu quintal, resolve enterrá-la não mais em suas terras em Antigamente, mas na floresta, local sagrado. Na tentativa de sepultar o corpo celeste, o casal encontra uma imagem de Nossa Senhora da Conceição faltando um dos pés, que teria sido levada a Moçambique pelo padre jesuíta D. Gonçalo da Silveira no século XVI em sua missão para converter o reino de Monomotapa ao cristianismo. O curandeiro Lázaro Vivo aconselha Mwandia a encontrar uma igreja para a santa, para acalmar o espírito do rio, ou seu marido estaria em risco. Sendo assim, ela parte para sua terra natal, SOLETRAS, Ano VIII, N 15. São Gonçalo: UERJ, jan./jun.2008 203

DEPARTAMENTO DE LETRAS Vila Longe, levando consigo a imagem. Esse retorno não é livre de surpresas. A aldeia é a mesma, mas está diferente e preparando-se para receber um casal de americanos que seriam de uma ONG de ajuda à África. Em Vila Longe as feridas da guerra e da colonização ainda estão aparentes nas casas e nas almas dos personagens. A santa, kianda, vai trazer à tona o passado, para que se repense o que é ser moçambicano. Segundo Mercer (1990), só discute-se identidade quando ela está em crise, contudo, as identidades pós-coloniais já nascem em crise, pois as ex-colônias são países novos, politicamente independentes após a Segunda Guerra Mundial, sem uma identidade nacional previamente estabelecida. Isso por terem sido criados artificialmente pelos europeus na colonização exploratória capitalista. Além disso, a colonização e o longo período de guerra civil que se seguiu, aliados ao caos do capitalismo a- vançado, fazem com que ocorram mudanças estruturais na sociedade, levando a um duplo deslocamento do sujeito, tanto sociocultural quanto de si mesmo (Hall, 2005, p. 9). Essas crises identitárias socioculturais são abordadas no romance, onde podemos ver o que nos fala Stuart Hall, que as identidades na modernidade nunca foram completamente sólidas. Afinal, nessa narrativa de Mia Couto, podemos perceber a diluição de várias identidades como as de gênero, raça, religião, colono versus colonizado, e escravos e traficantes. Ao chamarem o americano Benjamin Southman de mulato, ele ofendeu-se, suscitando a intervenção de Casuarino, que tenta apaziguar: o empresário elaborava com eloquência: havia a globalização. Ao fim ao cabo, vivíamos a era da mulatização global (Couto, 2006, p. 267). Essa fala reflete bem o pensamento relativista multicultural de direita, que tenta amenizar a situação de confronto, calar a voz dos oprimidos e, assim, tentar apagar o sofrimento que a exploração hegemônica capitalista, recusando sua crítica. Entretanto, a identidade de gênero, bem como seu papel social, são abordados em pelo menos três situações no romance de Mia Couto. Zero, que se orgulhava de ser descendente dos chikundas, povo bravo e guerreiro, e que se envaidecia de ser macho, após ter enterrado a estrela e ter sonhado com a deusa das águas, anuncia à esposa que é mulher. O que poderia ter sido mero eco de seu sonho ou delírio é na verdade o princípio de uma mudança de comportamento. Zero Madzero deixa de ser o machista de antes, que tem que andar à frente das mulheres, até chegar ao ponto de, no retorno de Mwandia, aguardá-la no cais, atitude que surpreende a esposa, pois segundo o código do lugar, o verdadeiro 204 SOLETRAS, Ano VIII, N 15. São Gonçalo: UERJ, jan./jun.2008

homem não espera por mulher. Em outra relação matrimonial, entre a mãe de Mwandia e Jesustino, dona Constança reclama que o marido não é como os outros, pois não manda nela como deveria. Ainda mais ilustrativo é o caso do pai de Mwandia, Edmundo Esplendor Marcial Capitani, que servira ao exército colonial e também era Chikunda. Ele aguardou por toda a vida que seus feitos heróicos fossem reconhecidos, o que não aconteceu. Capitani acabou por ser enterrado como mulher, com vestido estampado, batom, sapatos vermelhos e lenço a condizer, tal como deixara escrito, talvez por ter se percebido de que não era um guerreiro como pensava, mas fantoche dos colonizadores portugueses. Aliás, os papéis de escravo e escravizador, colono e colonizado, confundem-se. Os Chikundas, colonizados, escravizavam as tribos vizinhas e vendiam os prisioneiros aos portugueses. Os americanos que foram à África em busca de vítimas do processo de escravidão encontram negros descentes de escravocratas. Na narrativa do passado, o filho de um chefe tribal dono de escravos é vendido para que compreenda a diferença entre ser senhor e ser servo. Diferença que é cada vez mais difícil de ser percebida, pois, como diz o barbeiro de Vila Longe, Mestre Arcanjo, nunca houve tanto escravo no mundo (Couto, 2006, p. 130) como atualmente. A idéia que levou os americanos a Vila Longe foi a de que os brancos portugueses seriam os traficantes de escravos e que em Moçambique só encontrariam negros que teriam sofrido com a escravidão por terem antepassados cativos. Esse pensamento é uma generalização maniqueísta que coloca os africanos como vítimas e os europeus como cruéis exploradores, quando na prática as relações não são tão simples assim, nem Moçambique é composta somente por negros, quanto mais de uma só etnia. Isso é reflexo da generalização despersonificadora criada pelo processo colonizador, que faz, inclusive, com que certos grupos colonizados tentem assimilar a cultura daquele que os coloniza. Entretanto esse retrato é desfeito em algumas situações no romance. Dessa forma, a família de Jesustino, de origem indiana, considerava-se superior aos demais colonizados por eles não serem africanos. Tanto que, para o pai de Jesustino, ter que pedir algo a um negro era vergonhoso, e sua irmã não aceitava casar-se com ninguém que não fosse de sua casta. Entretanto, essa posição superior que os indianos criaram para si é desfeita no relacionamento com o colonizador que os trata como i- guais aos negros, ou pior, quando da guerra com a Índia. Essa tentativa falhada de igualar-se ao colonizador é refletida na língua de Jesustino. Se SOLETRAS, Ano VIII, N 15. São Gonçalo: UERJ, jan./jun.2008 205

DEPARTAMENTO DE LETRAS a língua é a pátria, ele, indiano nascido em Moçambique, a quem a língua paterna era vedada, cansado de ser caneco, não possuía uma identificação íntegra nem com Moçambique, nem com Portugal, nem com a Índia, mas uma relação fluida e cambiante entre essas identidades fica aparente nos problemas que apresenta ao usar formas fixas da língua portuguesa, substituindo-as por outras parecidas como de animal a pior (Couto, 2006, p. 91), bode respiratório (Couto, 2006, p. 95), conheço-a como a palma da minha mãe (Couto, 2006, p. 72), ela tem entrado em trança (Couto, 2006, p. 272), antes à tarde do que nunca (Couto, 2006, p. 214), e muitas outras. Todavia, não é apenas o padrasto de Mwandia que parece não se identificar com uma única raça ou etnia, vários são os chamados muzungos, pessoas de outra raça culturalmente assimiladas. No relato da viagem de D. Gonçalo, o padre Manuel Antunes, português, descobre-se negro, desde que suas mãos enegreceram com a tinta em que escrevia, terminando seus dias como nyanga no interior de Moçambique. D. Gonçalo esperava embranquecer as almas dos africanos, mas acabou por encontrar portugueses que não se comportavam como verdadeiros cristãos, sendo muito mais maléficos ao Império Português, segundo o jesuíta, do que os cafres que não se converteram à fé cristã. Assim, a religião, que poderia servir de base identitária acaba não conseguindo exercer grande força sobre o comportamento dos homens. Da mesma forma como as posturas sociais desvinculam-se da religião, o sagrado parece desassociar-se de suas raízes e é o sincretismo religioso que vai caracterizar os personagens e o próprio romance, misturando em vários momentos o sagrado africano e o cristianismo. A crença nos deuses africanos e nos espíritos dos antepassados e a idéia de que as máquinas de costura reconhecem a voz do alfaiate tal como na tradição africana (Bâ, 1993) dividem espaço com o culto católico, as orações e as missas. Mesmo os que parecem ser cristãos acabam por manter algum vínculo com a cultura mística local. Não importa a igreja de paredes levantadas, como diz dona Constança, o que faz uma igreja [...] é o sossego que mora lá dentro e Mwandia sabe que não é queimada pela santa porque o melhor lugar para ela é no seu coração. Um dos fatores principais para se definir a identidade é o nome próprio, o que é muito utilizado no romance. Zero, que pelo nome já indica nulidade, vai se desvanecendo frente a Mwandia, que não o identifica como vivo ou morto. Jesustino, como é atualmente chamado, muda de nome várias vezes ao longo de sua vida, na tentativa de esquecer quem 206 SOLETRAS, Ano VIII, N 15. São Gonçalo: UERJ, jan./jun.2008

era antes e os erros cometidos. Edmundo Esplendor Marcial Capitani era oficial do exército e admirava os ritos e costumes militares. Singério a- propriou-se do nome das máquinas de costura que caracterizavam sua profissão. Assim, pode-se ver que os nomes que deveriam criar uma subjetividade acabam por apontar para uma falta de subjetividade. Afinal, nos casos acima, ou o nome representa o nada que caracteriza o mundo contemporâneo, ou é cambiante, chegando a associar-se com a imagem do colonizador, tanto a partir do oficial português quanto pelo uso de marcas industriais do capitalismo globalizado. Mwandia também tem seu nome ligado à personalidade, mas neste caso é uma ligação real ao seu papel a partir do sagrado e da cultura a- fricanas. Ela está em busca de uma igreja para a imagem. Para isso, precisa de sossego, mas só encontra-o e descansa quem encontra a si mesmo. Por isso as várias viagens no romance: Navegação da Índia a Moçambique, retorno de Mwandia à Vila Longe, e ida do norte-americano Benjamin à África. Afinal, toda a viagem é descobrimento de quem se é. Naquela entre a Índia e Moçambique, o escravo Nimi Nzundi descobrese a si mesmo. Isso também ocorre com o padre Manuel Antunes, que a- firma ser negro não é uma raça. É um modo de viver. E esse será, a partir de agora, o meu modo de viver (Couto, 2006, p. 259). Benjamin vai em busca de suas raízes africanas, quando deveria lutar por ser reconhecido como americano e ser tratado como tal em seu país, como diz Matambira: Essa África ele tem que a procurar na América, ou dentro dele mesmo (Couto, 2006, p. 294). É também na viagem à África que Rosie volta a descobrir-se como brasileira, com toda a mistura de raças e ritmos, e percebe que não há superioridade entre as raças e que não é mais feliz como americana do que como quem ela realmente é, brasileira. É assim que ela recupera o sossego: sonhar na língua materna lhe devolveu, por sua vez, um sentimento de tranquilidade (Couto, 2006, p. 214). A ida de Mwandia a sua aldeia natal procurando um local para a santa católica incompleta por não ter um pé e kianda desfigurada por ter pés sendo sereia é também uma viagem de conhecimento de si mesma, de suas origens, de seu passado e de sua religiosidade. A santa é a própria estrela que liga os tempos e que ilumina o passado. É ela que faz a ligação entre o passado e o presente para que se descubra o que se foi e o que se é, o que foi e o que é ser moçambicano. Afinal, segundo Walter Benjamin (1994), devemos voltar ao passado em momentos de perigo, que hoje é o desconhecimento de si mesmo causado pela alienação criada pelo capitalismo. SOLETRAS, Ano VIII, N 15. São Gonçalo: UERJ, jan./jun.2008 207

DEPARTAMENTO DE LETRAS O personagem Nimi Nzundi, quem corta o pé da imagem, extirpao por achar que está a mais e diz que é preciso retirar o outro pé da sereia, que desfigura a kianda, pois só assim seria possível libertar a deusa e aproximá-la de sua gente. Essa aproximação, essa libertação, é o próprio reencontro de Moçambique com seu passado, com sua formação. Entretanto, não é fácil vislumbrar o passado. Ele está escondido e esquecido. O contato com ele queima tal como os homens são queimados ao tentarem carregar a imagem de Nossa Senhora. Os moçambicanos que pretendiam esquecer o passado dando voltas e voltas no embondeiro, na árvore do esquecimento, buscando desresponsabilizar-se do assombro da História, temem-no e tentam mantê-lo enterrado. Como em: A árvore do esquecimento está plantada dentro de nós, afirmou Singério (Couto, 2006, p. 278). Quem não tem passado não pode ser responsabilizado. O que se perde em amnésia, ganha-se em amnistia (Couto, 2006, p. 276), corroborando com o que nos diz Memmi (1977) sobre a responsabilidade histórica e social do colonizado, que está fora da história e fora da cidade. Contudo, aos Moçambicanos não se pode mais vedar-lhes o direito à História e à sua participação na mesma, pois como país periférico, Moçambique continua uma terra de escravos, como nos escravos de ontem sangram no tempo de hoje, as naus negreiras ainda cruzam os oceanos. Uma mbira triste continua soando no porão da terra (Couto, 2006, p. 270). O colonizado internalizava o retrato depreciativo que o colonizador faz dele, como explica o padre Manuel Antunes: Quando se inventam assim maldades sobre um povo, é para abençoar as maldades que se vão praticar sobre ele (Couto, 2006, p. 252). Não é à toa que o boxeador Matambira não ganhou nenhuma luta contra adversários que não fossem negros, é que a sua cabeça tinha sido ensinada a não se defender de branco. Nem de mulato (Couto, 2006, p. 219), mostrando a submissão internalizada. Se os episódios de hoje assombram-nos, então precisamos de uma nova concepção de História, pois a atual é a que justifica a situação tal como ela é (Benjamin, 1994). O mais triste da história é como tudo se repete, sem surpresas (Couto, 2006, p. 319), diz mais uma vez o barbeiro de Vila Longe. Se o progresso não é uma cadeia de acontecimentos, mas uma catástrofe única, então é possível encontrar no passado o mesmo que ocorre hoje. Cabe, então, à própria deusa das águas o papel de reexaminar o que passou para que se busque um futuro diferente. 208 SOLETRAS, Ano VIII, N 15. São Gonçalo: UERJ, jan./jun.2008

Mwandia é um espírito das águas. Ela é a única capaz de carregar a imagem da santa sem queimar-se. Assim, tal como seu nome, que quer dizer canoa em si-nhungwé língua falada no noroeste de Tete, em Moçambique, ligará duas margens, dois mundos. Ela faz a ligação entre morte e vida, entre várias identidades e papéis sociais, entre História e ficção, entre os tempos, passado e presente. Por ligar o mundo dos vivos ao mundo dos mortos, sendo capaz de falar com ambos, ela confunde-os, não conseguindo identificar claramente quem está vivo e quem está morto. Ao menos até ter plena consciência de seu papel, já que no final ela consegue vislumbrar as fotografias de quem está na parede dos mortos. Ela também representa a união de dois lados, o dos escravos e o dos senhores de escravos por ter os dois na família, como sua mãe confirma-lhe ao dizer que todos são feitos de dois rios, de duas águas. Por isso entrega-lhe duas lembranças, uma de cada rio (Couto, 2006, p. 325), um lenço de uma avó velha dona de escravos e uma caixa de rapé de uma bisavó de seu pai, que morrera no trabalho forçado. Se História é ficção, Mwandia é quem vai inventar histórias ficcionais a partir do passado que aprendeu nos livros e nos papéis antigos, outras formas de canoas para ligar o tempo. Entretanto, a História só pode ser ficção, não sendo exatamente como o passado realmente foi, se pelo menos contiver uma reminiscência importante que se ligue ao presente. Assim, a história de D. Gonçalo é ligada à Vila Longe, principalmente ao americano Benjamin por pequenos detalhes na vida dos antepassados. De forma semelhante, o passado narrado no romance vai ligar-se ao presente a partir da discussão sobre identidades. Entretanto, o que é passado e presente no romance não é muito claro. Ao final não é possível saber se tudo o que aconteceu em Vila Longe é o presente da narrativa ou mais uma volta ao passado de Mwandia, uma vez que os moradores da aldeia estão mortos. Essa volta a tempos passados mostra que há a diluição identitária desde os primeiros momentos da formação de Moçambique, descontruindo o maniqueísmo que figurava na historiografia oficial, com vítimas e culpados, africanos e portugueses. A própria história do padre Silveira é contada sob um novo viés, colocando a culpa de sua morte nos próprios portugueses, cada vez mais gananciosos em seus negócios em África, não satisfeitos com a intromissão do padre em sua vida livre no Além- Mar. A estrela, ou a santa, vai iluminar um passado desconhecido, não SOLETRAS, Ano VIII, N 15. São Gonçalo: UERJ, jan./jun.2008 209

DEPARTAMENTO DE LETRAS mais aquele oficial eternizado pelos vencedores, como nos lembram outros versos do Barbeiro de Vila Longe: Não há pior cegueira que a de não ver o tempo. E nós já não temos lembrança senão daquilo que os outros nos fazem recordar. Quem hoje passeia a nossa memória pela mão são exactamente aqueles que, ontem, nos conduziram à cegueira. (Couto, 2006, p. 82). Ao redimir o passado nessa nova visão, pode-se preparar um novo futuro, não mais repetindo os erros anteriores. O sentido da vida transmitido pelo romance é de que não há diferenças raciais, somos todos iguais; a água liga-nos a todos, de todos os lugares, vivos ou mortos. A deusa da água olha sobre todos nós, somos todos peixes. Ter o controle sobre o tempo é a verdadeira revolução. Walter Benjamin (1994) conta-nos o episódio da quebra dos relógios durante a revolução francesa. Controlar a representação do tempo é assumir o poder de mudança. Mwandia é aquela que revoluciona por ter esse controle. Sua capacidade de ligar o tempo e de visitar os mortos é expressa desde o início, quando o leitor descobre que ela vive em Antigamente, nome que antes de ser de lugar é de tempo. Somente após isso é possível enterrar novamente o passado, como Mwandia faz no fim do romance. Após ter sido revisitado tal como ela revisita os mortos, e ter sido iluminado pela estrela, pode-se enterrá-lo e seguir em uma nova direção, seguir o caminho do rio, que une a todos em suas águas. A estrela cadente é um sinal de proteção para o futuro de acordo com as lendas africanas: Ao longe, uma estrela-cadente tombou. O escravo recordou-se do que lhe diziam na infância: que os anjos nos céus lançavam pedras incandescentes aos demónios. Talvez aquele fosse um sinal de que o seu destino estava protegido. Xilungo ergueu-se e caminhou. Lá no fim do horizonte jazia enterrada, nas tenras margens do rio, a pedra ardente que tombara do firmamento. (Couto, 2006, p. 314). A deformidade do esquecimento de quem somos foi cortada no controle e ligação dos tempos. Assim, foi cortado o outro pé da sereia. Nesse corte não houve apenas um encontro da deusa com sua gente, como queria Nimi Nzundi, mas de gente com gente, na liberdade de vermonos como iguais, peixes da mesma água. 210 SOLETRAS, Ano VIII, N 15. São Gonçalo: UERJ, jan./jun.2008

BIBLIOGRAFIA BÂ, Amadou Hampâté. Palavra africana. In: O correio da UNESCO. Paris; Rio, Ano 21, nº 11, nov. 1993, p. 162. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad.: Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. COUTO, Mia. O outro pé da sereia. São Paulo: Cia. das Letras, 2006. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad.: Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. 10ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. MERCER, K. Welcome to the jungle. In: RUTHERFOR, J. (Org.) Identity. Londres: Lawrence and Wishart, 1990. SOLETRAS, Ano VIII, N 15. São Gonçalo: UERJ, jan./jun.2008 211