O literário na TV a partir das reportagens de Neide Duarte 1. Iuri da Silva RODRIGUES 2

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS PLANO DE ENSINO 042 CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS

Transcrição:

O literário na TV a partir das reportagens de Neide Duarte 1 Iuri da Silva RODRIGUES 2 Universidade do Vale do Rio dos Sinos, (Unisinos) São Leopoldo, RS RESUMO O presente trabalho, tendo como foco as matérias da jornalista Neide Duarte, é uma amostra da pesquisa de mestrado que está em andamento e problematiza como o telejornalismo promove uma releitura do modelo tradicional das reportagens, o que faz uma possível aproximação do telespectador com o texto e identifica um novo formato no telejornal. A amostra fundamental para a composição desse artigo tem base na observação empírica de reportagens e, ao nos debruçarmos em autores do jornalismo, pretendemos proceder a uma análise literária destes textos. Utilizaremos as concepções de Cremilda Medina, Felipe Pena, Stuart Hall, Zigmunt Bauman, Gilles Deleuze, entre outros contemporâneos, para pensar essa nova exigência no fazer da matéria jornalística para a TV. PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo Literário; Telejornalismo; Neide Duarte. Introdução Este texto dedica-se a entender a construção do texto literário para o telejornal, a partir das características peculiares da repórter da TV Globo, Neide Duarte, que carrega um estilo próprio, uma narrativa envolvente e matérias que privilegiam os personagens. Pelas características, as reportagens de Neide Duarte exercem um poder de sedução sobre os sujeitos que se constituem por meio do discurso, revelando supostas pretensões ideológicas por parte da narradora. Dessa forma, constrói-se uma linha subjetiva que dá sustentação ao processo narrativo do jornalismo literário. Como amostra do trabalho, que ainda está em andamento, caberá, aqui, mostrar de que forma o discurso do telejornalismo, a partir do texto de Neide Duarte, atua como um lugar de exibição de identidades, produzindo espaço simbólico onde se estabelecem 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho de Jornalismo do V SIPECOM - Seminário Internacional de Pesquisa em Comunicação 2 Mestrando em Ciências da Comunicação da Unisinos, email: iurirodrigues1@yahoo.com.br 1

possibilidades de comunicação e identificação entre os sujeitos que fazem parte da história e os que assistem a eles. As histórias contadas por Neide Duarte trazem uma nuance enriquecedora, em que detalhes, cenas e singularidades dos personagens são evidenciados. Jornalista por formação, com mais de 25 anos dedicados à reportagem, Neide Duarte atuou como repórter em veículos como Folha de São Paulo e TV Cultura. Entre seus traços marcantes nas narrativas, está uma linguagem peculiar que eleva a figura do entrevistado e resgata personagens anônimos e já lhe rendeu prêmios em diversas categorias do jornalismo. A reconstrução da realidade pode ser feita de diversas maneiras. E, partindo do pressuposto de que o telejornalismo tem seus estilos próprios de informar o fato logo no início da matéria, o que faz uma referência ao lead, este trabalho vai tentar traduzir novos parâmetros de reconstruir a não-ficção no telejornalismo. O Novo Jornalismo e o Telejornalismo O Novo Jornalismo, expressão propagada a partir de 1966 nos Estados Unidos, fez uma verdadeira revolução no jornalismo convencional. Foi uma inovação artística e intelectual adotada por alguns escritores que trabalhavam em jornais. Escritores como Gay Talese, James Baldwin, Norman Mailer, escreviam, simplesmente, não-ficção com um olhar diferenciado, longe da grande pirâmide invertida que ditava o jeito de fazer jornalismo na época. Os artigos publicados nos jornais dos Estados Unidos passaram a ser tão ricos de descrições, que a não-ficção passava a ter um viés de história inventada aos olhos dos leitores acostumados ao lead tradicional. Esse estilo humanizado de escrita estava legitimando um grande movimento capaz de modificar completamente a história de se fazer jornalismo. A sangue frio, de Truman Capote, que conta a vida e morte de dois vagabundos, numa narrativa cheia de detalhes, com envolvimento do narrador, foi 2

publicado em uma coletânea de artigos e depois foi lançado em livro. Tom Wolfe (2005) acrescenta como foi essa nova característica do novo jornalismo. O resultado foi que eu não fazia a menor ideia de que essa história pudesse ter algum impacto no mundo literário ou em qualquer outra esfera, fora do pequeno mundo do jornalismo das reportagens especiais. Mas eu devia ter pensado melhor. Em 1966, o Novo Jornalismo já pagara à vista seus tributos literários: especificamente, amargura, inveja e ressentimento (Wolfe, 2005, pág. 41). Um olhar diferenciado sobre a realidade, em que o repórter é o responsável por adentrar e contar verdade sem desfalques, por mais impactante que seja para os leitores. Essa verdade só é possível quando o repórter se dispõe a olhar, escutar, sentir, viver aquilo que pretende mostrar. Só assim, a identidade do jornalismo literário vai ganhando raízes e significado. Sabemos que o jornalismo é um domínio discursivo que abriga gêneros distintos e vale-se de dispositivos linguísticos, discursivos e ideológicos que funcionam a serviço do ocultar e do mostrar, do negar e do afirmar, ancorado em efeitos de verdade. A presença dos meios de comunicação na vida cotidiana, principalmente da televisão, altera o modo de enxergar o real, de vivenciar as relações sociais e construir a identidade. Para discutir as subjetividades veiculadas pela mídia televisiva, esse trabalho busca identificar sujeitos que se materializam nos textos telejornalísticos. São reportagens que giram em torno de ser humano desconhecido, de como essa pessoa se apresenta no espaço público e se deixa ser invadida na sua privacidade. A assinatura do narrador nas reportagens, sua vivência no âmbito da matéria, exemplifica a participação da repórter com o tema escolhido para narrar. De acordo com (WOLTON, 2010, p. 72) o jornalista nem sempre tem razão, como o político ou o intelectual, mas com sua assinatura legitima a informação. Partindo da ideia de que a constituição do indivíduo enquanto sujeito passa pela linguagem, a repórter, ao interferir no curso da matéria, exerce papel significativo na difusão de práticas discursivas que podem funcionar como mecanismos de aproximação dos telespectadores. Por meio das narrativas telejornalísticas, ideias de interação, contato e participação, projetam o sujeito repórter na direção de seus pares, tirando-lhe 3

da solidão existencial e conduzindo-lhe em direção a uma comunidade simbólica por meio da qual pode manter ou trocar de identidade. Como a mídia é um produto de consumo em nossa sociedade, vale ressaltar o poder que a televisão exerce sobre os indivíduos. O jornalismo se vale de técnicas que asseguram um saber sobre as aspirações, necessidades e objetivos desses sujeitos, exercendo, por meio disso, a capacidade de influenciar sua consciência, moldar seu pensamento. Dessa forma, com reportagens que enaltecem a vida de seres humanos, os sujeitos passam a vincular à mídia sua possibilidade de construir laços sociais, obter sentidos e promover significações. Desconstrução das matérias A tradição do bairro, as vizinhas nas portas de suas casas, a música de fundo da matéria. Todos esses detalhes são vistos em reportagens produzidas por Neide Duarte. Em uma matéria exibida no jornal Hoje, telejornal apresentado por Sandra Annenberg e Evaristo Costa, Neide Duarte fala do dia a dia de vendedores ambulantes nas periferias de São Paulo. E Ivaniê vai puxando o seu carrinho que está chorando. O ruído com o peso do carrinho ilustra perfeitamente o que Neide está dizendo. Essa simples descrição e observação inteligente da repórter traçam o fio condutor da narrativa, o que no jornalismo impresso chama-se de concretude jornalística. São pequenos traços que dão significados à história. Nesse caso, é a história de um vendedor que não consegue vender seus produtos. E lá vai Ivaniê levando o seu carrinho que agora está cantando fininho. O barulho captado pela câmera é o mesmo, mas remete ao sorriso de Ivaniê que conseguiu, depois de tanta labuta, receber alguns trocados. A sensibilidade da repórter em notar essa ação só foi possível graças ao espaço de tempo que ela teve para fazer a matéria. Demonstra ao telespectador que a repórter passou todo o dia com o comerciante, o que dá sentido a entrega total de tempo que os manuais de jornalismo literário recomendam aos repórteres. Frases curtas com traços de autoridade e elevação do tom em determinados momentos para chamar a atenção de quem está assistindo são costumeiras nessas 4

reportagens. Outra característica é a presença marcante da repórter no curso da matéria, é o sujeito-repórter fugindo dos padrões editoriais que movem a mídia. Esquecer que é o narrador e passar a ser papel fundamental na história que será contada. Medina (2008) chama de humanização esse entrosamento da repórter com o seu entrevistado, em que o repórter identifica-se com a história que vai ser contada por ele mesmo. Sejamos, bem antes da edição, abertos ao alógico e ao alinear do entrevistado nos momentos em que assim se expõe ao entrevistador. A perspicácia dessa abertura está na medida direta com que o repórter se traveste de artista. É seu repertório, primeiro, humano; depois, intelectual (científico e artístico) que pesará quando, diante do cavalete, iniciar o retrato de quem encontrou numa circunstância chamada entrevista (MEDINA, 2008 p. 69). O trecho a seguir mostra a fala da repórter como protagonista de outra história. Para falar das mulheres que cuidam da limpeza urbana do centro de São Paulo, Neide Duarte junta-se a elas e passa o dia trabalhando, limpando as ruas da cidade. Foi pra ver essa situação que me vesti de gari e saí pela rua direita com minhas duas novas companheiras de trabalho. Dona Maria na pá e no carrinho e Sônia na vassoura, como eu. A perspicácia é tanta que a jornalista gari passeia pelas ruas com as amigas de trabalho, com a vassoura na mão e atrás de quem joga papel no chão para fazê-lo pegar e colocar no lixo. Neide poderia fazer uma matéria cheia de estatísticas, com muitos depoimentos, mas ela preferiu se vestir de gari e ir pra rua junto com as trabalhadoras. É importante que esse pensamento do repórter reflita sobre o papel que a mídia assume em nossos tempos ao construir práticas identitárias, mediante a fragmentação do real e a fabricação de subjetividades, enaltecendo a prática do jornalismo literário no telejornal. Lage (2001) diz que o repórter é um agente social que está onde outras pessoas não podem estar, por isso, é dele a responsabilidade e o compromisso de ser o reprodutor da informação da melhor forma possível. Já Felipe Pena acredita que um dos fundamentos que aproximam uma reportagem do jornalismo literário é a observação do jornalista em meio às circunstâncias que serão narradas. 5

O próprio conceito de Jornalismo Literário, que é caracterizado como uma modalidade de prática da reportagem de profundidade e do ensaio jornalístico utilizando recursos de observação e redação originários da (ou inspirados pela) literatura. Traços básicos: imersão do repórter na realidade, voz autoral, estilo, precisão de dados e informações, uso de símbolos (inclusive metáforas), digressão e humanização (PENA, 2008, p. 105). Assim, Felipe Pena destaca como essencial para o texto literário uma participação efetiva por parte do repórter. Uma busca incessante pelo ideal de contar a realidade da melhor forma possível. É o que Pena chama de novo jornalista e é central como característica de Neide Duarte. O novo jornalista se envolve até o talo com sua matéria e seus entrevistados. É o que ao teóricos chamam de close-to-the-skin reporting, cuja tradução mais literal seria reportagem perto da pele. É preciso sentir os poros abertos, a trilha epidérmica, o cheiro de suor (PENA, 2008, p. 60). É difícil defender uma estratégia essencial para a caracterização do jornalismo diário, uma vez que a globalização afetou os meios de comunicação e as trocas humanas, visto que a interação não prescindia a proximidade física. Com os abalos sofridos pela subjetividade tradicional, devido ao descentramento do sujeito sociológico, as identidades atuais tornam-se dispersas. Para Hall (2006, p.88), o hibridismo cultural afeta o movimento das identidades. Em toda parte estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes posições; que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e que são o produto desses complicados cruzamentos. Ao moldar e projetar diferentes subjetividades, a mídia permite a interação entre os sujeitos, dando-lhes uma condição de pertencimento, a mídia fornece a matéria bruta que seus leitores/espectadores usam para enfrentar a ambivalência de sua posição social (BAUMAN, 2005, p. 104). Para dar a entender melhor o que vem a ser a realidade, o repórter muitas vezes precisa fazer um detalhamento profundo na matéria. Hernandes (2006, p. 33), afirma: [...] é impossível ter acesso à realidade sem fazer escolhas, sem determinar valor para 6

alguns aspectos em detrimento de outros. Podemos dizer que a própria ideia de significação é uma opinião sobre o mundo. As falas da repórter comprovam esse discurso adotado por Hernandes, quando, na matéria que mostra o trabalho diário de garis em São Paulo, Neide vai atrás de um homem que acabara de jogar papel no chão. Neide corre e, ofegante, surpreende-o: Bom dia. Por favor, o senhor jogou no chão um papelzinho. [...] A gente limpa e em seguida já suja. Obrigada, viu?. Podemos classificar esse desempenho como um sujeito sociológico, o qual é explicado por Stuart Hall. A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o interior e o exterior entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a nós próprios nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os parte de nós, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural (HALL, 2006, P. 11). Nesses espaços midiáticos, espetáculo e vida cotidiana se imbricam, o que reflete, para Sodré (2002), uma tendência de os indivíduos encenarem suas identidades, modificando seu papel social para se adequar à percepção que a sociedade tem dele. No universo de produção noticiosa, a vida privada assume o status de mercadoria ao ser publicizada. Podemos dizer, portanto, que a participação de Neide Duarte nessa reportagem é o que Gilles Deleuze enquadra como uma espécie de gagueira criadora. Ele explica que o E, nesse caso Neide Duarte, é a diversidade, a multiplicidade, a destruição das identidades, ou seja, a inovação do repórter novo. O E não é nem um nem o outro, é sempre entre os dois, é a fronteira, sempre há uma fronteira, uma linha de fuga ou de fluxo, mas que não se vê, porque ela é menos perceptível. E, no entanto, é sobre essas linhas de fuga que as coisas se passam, os devires se fazem, as revoluções se esboçam (2010, p. 62). Ao aproximar-se da história contada, a repórter permite que os telespectadores se reconheçam no texto. Assim, o sujeito se materializa via linguagem telejornalística e se apropria da matéria, fazendo desses momentos novos acontecimentos em sua vida. 7

Nessa produção noticiosa, a jornalista assume o papel de tradutora de informações e discursos. E quando dá aos seus entrevistados a liberdade de construir a matéria junto com ela, chamamos esse tipo de fonte como pedagógica. Beatriz Marocco (2008) acredita que essa fonte é uma espécie de aprendizado em comum e que todos ali têm poder de influência na matéria em prol de uma causa. Na reportagem das garis, existe uma simetria entre jornalista e trabalhadoras. A fonte se constitui como sujeito de seu próprio discurso, nenhuma autoridade falará em seu nome, a fonte não ocupa um lugar em que se lhe oprime a um modelo e que é predeterminado, participando de uma relação que se pretende libertadora da função de assujeitamento e que potencializará, a partir de uma capacidade reflexiva, uma intervenção na realidade dos sujeitos que assumem tal condição (Marocco, 2008. p. 41). Fundada em um princípio de interação, necessidade que rege as trocas sociais e simbólicas na modernidade tardia, Neide Duarte se encontra com o público, ao conceder-lhe o espaço de que precisa para revelar-se e encontrar-se com outros sujeitos. No entanto, o discurso adotado pela repórter, permeado pelo discurso da mídia, se constitui a partir de jogos de saber, poder e verdade que aparecem como recorte da ideologia que norteia o texto e o fazer jornalístico. Os textos produzidos por Neide podem ser exemplificados com a declaração de Alex Galeno no artigo intitulado como Palavras que tecem e livros que ensinam a dançar. Acerca do texto elaborado por Neide, o telespectador passa a fazer parte da história porque é uma história humanística, que tenta cada vez mais aproximar-se do telespectador. Assim, o texto deverá ser percebido como algo tátil, exuberante e como uma rede comunicativa de múltiplos sentidos. Textos tecidos que, pela mobilidade conectiva de seus escritores se transformam em fantasias e vestimentas para os dançarinos leitores (GALENO, 2005, p. 102). É nessa aventura da reportagem com as garis, que Neide descobre a falta de gentileza por parte da população que passa por ali todos os dias. As garis varrem mais de oito vezes o mesmo local e Neide não se cansou em passar um dia inteiro com elas 8

para mostrar a realidade de quem convive, diariamente, com a falta de gentileza, nas ruas de São Paulo. O narrador-protagonista entra em evidência nessa matéria. Ocorre uma fusão na ação dos personagens, quando o narrador-protagonista entra na cena e vê tudo de perto, participando, tocando em coisas e objetos (MEDINA, 2008). Hernandes (2006, p. 33), afirma: [...] é impossível ter acesso à realidade sem fazer escolhas, sem determinar valor para alguns aspectos em detrimento de outros. Podemos dizer que a própria ideia de significação é uma opinião sobre o mundo. De acordo com (WOLTON, 2010) a assinatura do jornalista legitima a informação e é isso que Neide Duarte tenta fazer a cada matéria exibida nos telejornais diários da TV Globo. Conclusão Com essa análise de desconstrução das reportagens, o nosso foco foi encontrar uma possível similaridade telejornalismo e literatura dando uma classificação ao jornalismo que traz em si a reconstrução da realidade de diversas modalidades. A intenção desse trabalho foi, ainda, mostrar que é possível fazer matéria jornalística baseada na maior interação com o receptor. E, mais do que isso, essa amostra serve de modelo para demonstrar que profissionais do jornalismo também adentram nas situações dos entrevistados. A repórter Neide Duarte ousa em fugir da pauta e transforma assuntos triviais em valiosas reportagens, dando uma visão de mundo em que o telespectador se relacione na história, não deixando de lado a ética profissional. É com o pensamento interrogativo do jornalista Ricardo Noblat (2006, p. 41) que esse artigo se encerra. Se não serve para esclarecer, alertar, forjar consciências e contribuir para a construção de um mundo menos injusto e desigual, para que serve mesmo o jornalismo? REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. 9

CASTRO, Gustavo de: GALENO, Alex (Orgs). Jornalismo e Literatura: a sedução da palavra. São Paulo: Ed. Escrituras editora, 2002. DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2010 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guarcira Lopez Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. HERNANDES, Nilton. A mídia e seus truques: O que jornal, revista, TV, rádio e internet fazem para captar e manter a atenção do público. São Paulo: Ed. Contexto: 2006. LAGE, Nilson. Linguagem jornalística. São Paulo: Ed. Ática, 2006. MAROCCO, Beatriz. Reportagem de Transgressão, um giro no tratamento da fonte jornalística. IN: BERGER, Christa. MAROCCO, Beatriz. (Org.). Ilha do presídio: uma reportagem de ideias. Porto Alegre: Libretos, 2008. MEDINA, Cremilda. Notícia um produto à venda: jornalismo na sociedade urbana e industrial. São Paulo: Summus, 1988. (Novas Buscas em Comunicação, n. 24). MEDINA, Cremilda. Entrevista: o diálogo possível. São Paulo: Ed. Ática, 2008 (5 edição). NOBLAT, Ricardo. O que é ser jornalista. São Paulo: Ed. Record, 2006. PENA, Felipe. Jornalismo Literário. São Paulo: Ed. Contexto, 2006. SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis/RJ: Vozes, 2002. WOLFE, Tom. Radical, chique e o novo jornalismo. São Paulo: Companhia das letras, 2005. WOLTON, Dominique. Informar não é comunicar. Porto Alegre: Ed. Sulina, 2010 10