NOTA SOBRE A COBRANÇA PELO USO DOS RECURSOS HÍDRICOS



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Transcrição:

NOTA SOBRE A COBRANÇA PELO USO DOS RECURSOS HÍDRICOS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO1 Núcleo Insterdisciplinar de Meio Ambiente - PUC-Rio Setor de Direito Ambiental 1. Introdução Atenta aos graves problemas relacionados à quantidade e a qualidade dos recursos hídricos do País, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu um sistema de gestão dos recursos hídricos nacionais prevendo: a) a extinção do domínio privado sobre as águas, que passaram a ser exclusivamente federais ou estaduais (arts. 20, III e 26, I); b) a competência privativa da União para legislar sobre águas (art. 22, IV); c) a competência concorrente da União e dos Estados para legislar sobre proteção do meio ambiente e conservação dos recursos naturais ( art. 24, VI); d) a competência da União para instituir Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e definir critérios de outorga de direitos de uso da água (art. 21, XIX). 1 Trabalho elaborado sob a coordenação do Prof. Fernando Walcacer, por Lidiane Carvalho, Fernanda Leite Barbosa, Marisa Camilher Camargo, Adriana Bocaiuva, Bruna D Almeida, Paula Paiva Rocha, João Barros e Tomás Lemos. 1

Em conformidade com os dispositivos constitucionais citados foi editada a lei 9.433, de 08/01/97, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. A PNRH se baseia, dentre outros fundamentos, na gestão descentralizada da água, que deve necessariamente contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades (art.1º, VI). Tal modelo está de acordo com a definição constitucional do meio ambiente como bem de uso comum de todos, a ser protegido pelo Estado e pela sociedade, no interesse das atuais e das futuras gerações ( art. 225, caput). O Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, criado pela lei 9.433/97, conta dentre seus objetivos "coordenar a gestão integrada das águas" e " promover a cobrança pelo uso de recursos hídricos" ( art. 32, I e VI ). O Sistema é integrado por Conselhos Nacional e Estaduais de Recursos Hídricos, Comitês de Bacias Hidrográficas, órgãos federais, estaduais e municipais cujas competências se relacionem com a gestão de recursos hídricos, e Agências de Águas ( art. 33). Como garantia de uma gestão democrática e participativa, a lei determinou que houvesse ampla participação, nos órgãos gestores dos recursos hídricos, de representantes dos usuários e de organizações civis (arts. 34, III e IV, 39, IV e V). Importante perceber, desde já, que os Estados estão obrigados a seguir, em suas legislações próprias, o modelo descentralizado e participativo de gestão estabelecido pelo sistema nacional ( e não meramente federal) de gerenciamento de recursos hídricos. Ao instituir aquele modelo, a União valeu-se de competência constitucional expressa (art. 21, XIX). A competência concorrente dos Estados na matéria se referencia, basicamente, à conservação da natureza, defesa do solo dos recursos naturais e proteção do meio ambiente ( art. 24, VI). Foi com base neste último dispositivo constitucional que os Estados editaram, nos últimos anos, inúmeras leis dispondo sobre os recursos hídricos de seu domínio. 2

No Estado do Rio de Janeiro, a Lei nº 3.239, de 02 de agosto de 1999, instituiu a Política Estadual de Recursos Hídricos, com amplas referências à gestão descentralizada e à participação de usuários e da sociedade civil (arts. 2º, II; 3º, IV; 4º, VI; 54, I etc.). Dentre as inovações previstas na Lei 9.433/97 para tornar efetivo o modelo institucional por ela proposto destacavam-se, além de órgãos como os Conselhos (federal e estaduais), Comitês de Bacias Hidrográficas e Agências de Águas, instrumentos como a outorga do direito e a cobrança pelo uso da água. Num país onde até então a regra geral fora o uso gratuito da água, concedido de forma mais ou menos aleatória pelo Estado, ou simplesmente tomado pelo particular, pode-se imaginar a dificuldade de implementação enfrentada pelo novo sistema. A outorga e cobrança pelo uso das águas tanto impedem a apropriação privada abusiva da água, como garantem recursos a serem aplicados na recuperação e preservação da bacia. Existem hoje, país afora diversos registros de Conselhos Estaduais e Comitês de Bacias em pleno funcionamento, com ativa participação de usuários e da sociedade civil. No Estado do Rio de Janeiro até agora só foi criado o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Guandu, pelo decreto 31.178/02. Não há notícia da criação de outro comitê ou de alguma Agência de Águas, nem da aprovação de algum Plano de Bacia. Em fins de 2003 foi publicada a lei estadual 4.247, de 18/12/03, dispondo sobre a cobrança pela utilização dos recursos hídricos de domínio do Estado do Rio de Janeiro. A notícia surpreendeu, já que o projeto de lei 1.085/03, de autoria do Poder Executivo, do qual a lei se originou, havia sido enviado havia menos de duas semanas à Assembléia Legislativa, onde tramitou sob o regime de urgência. Seguramente matéria de tal complexidade estaria a merecer prazo mais elástico de tramitação, inclusive para que os senhores deputados pudessem melhor avaliar as profundas alterações introduzidas pela nova lei na Política Estadual de Recursos Hídricos. Algumas destas alterações chamam a atenção por romper com o modelo instituído pela lei 9.433/97. 3

2. Contradições entre a lei estadual 4.247/03 e a legislação nacional sobre recursos hídricos 2.1. Quanto à gestão dos recursos hídricos estaduais A nova lei definiu a Fundação Superintendência Estadual de Rios e Lagoas - SERLA, como o órgão responsável pela gestão e execução da Política Estadual de Recursos Hídricos, atribuindo-lhe expressamente, entre outras funções: a) a cobrança pelo uso dos recursos hídricos (art. 1º); b) a arrecadação, distribuição e aplicação de receitas oriundas da cobrança (art. 3º); c) a implementação do processo, periodicidade, forma e demais normas complementares de caráter técnico e administrativo inerentes à cobrança (art. 7º). Assim, a SERLA - órgão da estrutura administrativa do Estado - passa a concentrar atribuições que a Política Nacional de Recursos Hídricos distribuiu, expressa e deliberadamente, entre vários órgãos distintos, com farta representação de usuários e sociedade. Como se viu, para a lei nacional não existe um órgão único gestor de recursos hídricos: as tarefas estão distribuídas entre Conselhos, Comitês de Bacias e Agências de Águas, de forma a promover uma gestão participativa e descentralizada (art. 1º, VI, PNRH). De fato, nos termos da Lei 9.433/97, compete aos Comitês de Bacia Hidrográfica o estabelecimento de mecanismos de cobrança (art. 38, VI), e às Agências de Águas a sua efetivação (art. 44, III), tudo em conformidade com as diretrizes e critérios constantes dos Planos de Bacia Hidrográfica (art. 7º, IX). Ao atribuir a um órgão do Poder Executivo competências reservadas pela lei nacional de recursos hídricos a órgãos com representação obrigatória da sociedade civil, a lei estadual claramente entrou em rota de colisão com ela e, por via de conseqüência, com a Constituição Federal. 4

Acresce que, em seus artigos 19 e 20, a lei estadual estabeleceu diretrizes e critérios para a cobrança pelo uso da água em caráter provisório, ou seja, até a constituição dos Comitês de Bacias Hidrográficas e dos respectivos Planos de Bacia (art. 22 da PNRH). Ora, não há qualquer dispositivo na legislação nacional que permita a cobrança enquanto não estiverem instituídos os Comitês e os Planos de Bacia. Ao contrário, a idéia que resulta clara quando se examina o Sistema Nacional de Recursos Hídricos, é que a outorga e a cobrança necessitam, para se tornar efetivas, de que previamente existam Plano, Comitê de Bacia, Agência de Águas. Registre-se, ainda, que algumas das funções atribuídas pela nova lei à SERLA são típicas de uma Agência de Águas ( cf. art. 44 da Lei 9.433/77). Todavia, parece difícil conciliar a natureza jurídica da SERLA - órgão da administração estadual indireta -, com a de uma Agência de Águas, cuja criação deve ser autorizada pelos Conselhos de Recursos Hídricos, " mediante solicitação de um ou mais Comitês de Bacia Hidrográfica interessados" (art. 42, único e 43, I, da PNRH). 2.2. Quanto à ausência dos Planos de Bacia Hidrográfica A Lei 4247/03 acrescentou um parágrafo único ao art. 23 da Política Estadual de Recursos Hídricos, assim redigido: Art. 23 - Toda outorga estará condicionada às prioridades de uso estabelecidas no Plano de Bacia hidrográfica (PBH) e respeitará a classe em que o corpo de água estiver enquadrado, a conservação da biodiversidade aquática e ribeirinha, e, quando o caso, a manutenção de condições adequadas ao transporte aquaviário. Parágrafo único - Na ausência dos Planos de Bacia Hidrográfica - PBH's, caberá ao órgão gestor de recursos hídricos estadual estabelecer as prioridades apontadas pelo caput deste artigo. 5

Ora, a Política Nacional de Recursos Hídricos, em seu artigo 7º, VIII, é muito clara ao estabelecer que as prioridades de uso devem ser estabelecidas nos Planos de Bacia - sem abrir qualquer exceção. A cobrança pelo uso dos recursos hídricos não pode ocorrer sem que exista um Plano de Recursos Hídricos elaborado pela Agência de Águas (art. 44,X) e aprovado pelo Comitê de Bacia Hidrográfica (art. 38, VI). E assim é porque os Planos de Bacias constituem a pedra-de-toque de todo o sistema de gestão de recursos hídricos. A concessão da outorga e a cobrança são inteiramente condicionadas pelas prioridades de uso estabelecidas neles. Pela nova lei estadual, na ausência de Planos de Bacia o órgão gestor dos recursos hídricos estaduais - SERLA - pode estabelecer prioridades, e a partir daí outorgar o direito de uso e efetivar a cobrança. A rigor, não haverá mais necessidade nem de Planos e nem de Comitês de Bacias, o que impossibilita a gestão participativa e, por conseqüência, ofende os princípios estabelecidos pela PNRH (arts. 1º, VI; 6º; 12, 2º; 38, III; e 39, da Lei 9.433/97) 2.3. Quanto à outorga de recursos hídricos insignificantes O art. 23, II da nova lei alterou expressamente o 1º do art. 22 da Política Estadual de Recursos Hídricos, passando o mesmo a vigorar com a seguinte redação: Art. 22 - Estão sujeitos à outorga os seguintes usos de recursos hídricos:... 1º - Independem de outorga pelo poder público, conforme a (sic) ser definido pelo órgão gestor e executor de recursos hídricos estadual, o uso de recursos hídricos para a satisfação das necessidades de pequenos núcleos populacionais, ou de caráter individual, para atender às necessidades básicas da vida, distribuídos no meio rural ou urbano, e as derivações, captações, 6

lançamentos e acumulações da água em volumes considerados insignificantes. A redação original desse dispositivo atribuía ao Conselho Estadual de Recursos Hídricos a competência para definir os casos em que o uso de recursos hídricos insignificantes independe de outorga. Tal redação estava em consonância com o art. 36, X da PNRH, que dispõe competir ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos "estabelecer critérios gerais para outorga de direitos de uso hídricos e para a cobrança por seu uso". A nova lei transferiu tal competência ao órgão gestor e executor de recursos hídricos, ou seja, à SERLA, que assim passaria a desempenhar atribuições reservadas pela lei nacional a órgão com a participação de usuários e da sociedade civil. 3. Conclusão A aprovação, em tempo recorde, do projeto de lei que institui a cobrança pelo uso dos recursos hídricos no Estado do Rio de Janeiro evidencia o interesse do Poder Executivo em viabilizá-la de imediato. Ao regular a matéria, porém, o legislador estadual afastou-se de alguns dos princípios básicos estabelecidos na legislação federal - especialmente ao ignorar o modelo de gestão descentralizada e participativa das águas. Como a Constituição Federal estabeleceu expressamente a competência da União para legislar sobre o sistema de gerenciamento de recursos hídricos, a legislação estadual deve sujeitar-se às normas federais relativas à matéria. Ao dotar um único órgão, integrante da estrutura administrativa, de múltiplas atribuições concernentes à gestão das águas, que a lei federal havia distribuído entre órgãos integrados por representantes de usuários e da sociedade civil, a lei estadual revela-se autoritária, centralizadora e incompatível com a ordem jurídica vigente. 7