Poderia ser o melhor ano da história da Himex, ou o pior.



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Transcrição:

CAPÍTULO 1 KATMANDU P rimeiro, os alpinistas compraram garrafas de cerveja no saguão, depois, escalaram os cinco lances de escadas até o terraço do hotel, onde se viraram para o oeste, para observar o início do eclipse sobre Katmandu. Era o dia 29 de março de 2006, e, às cinco da tarde daquele dia, a Lua começou a cruzar a face do Sol, lançando os prédios nas sombras. O contorno maciço da cidade foi absorvido por sua silhueta, as encostas distantes das montanhas apagaram-se até se tornarem apenas uma sugestão. Foi a primeira vez que um eclipse assim foi visível do Nepal no início de uma expedição ao Everest. Como poderia não ser interpretado como um sinal? Na época, me perguntaram se era um bom ou mau presságio, escreveu Russell Brice, o líder de 53 anos da expedição, em um comunicado para a imprensa publicado naquele verão, após o fim da temporada, após a morte de David Sharp, após os dedos acusadores, as afirmações de culpa e a incredulidade, após ter levado o passaporte de Sharp para a Inglaterra, tê-lo entregue em mãos para os pais dele e narrar-lhes o que havia acontecido. Eu disse que era um bom sinal, mas, na época, meu coração sugeria que não seria assim. Meus instintos se confirmariam. 25

KATMANDU Os astrólogos há tempos sustentam que um eclipse solar prenuncia a derrubada de um governante ou de um rei, ou, no mínimo, anuncia a chegada de mudanças. Não que Brice fosse especialmente supersticioso ou inclinado a engolir as previsões malucas de pseudocientistas que estudam o alinhamento das estrelas. Mas as grandes montanhas são imprevisíveis e os seres humanos, ainda mais. A combinação dos dois fatores é a garantia de que alguma catástrofe estará sempre à espreita. Ao longo de sua vida de alpinista, esquiador, balonista, paraglider e paraquedista, Brice conheceu mais de uma dúzia de pessoas para quem a vida chegou ao fim prematuramente. Esses amigos e conhecidos explodiram em seus macacões de salto, mergulharam no esquecimento ou foram arrastados por muralhas de neve e gelo ou simplesmente se sentaram e não conseguiram mais levantar. Brice teve sorte. Não só caminhou pelo vale da morte, mas bagunçou suas encostas e bordas, andou por seus cumes e jamais perdeu sequer a ponta de um dedo congelada. Mais importante, em suas vigílias como guia e líder expedicionário, jamais perdeu um cliente ou outro guia, ou xerpa, que conste, ainda que tenha escapado por um triz. Brice era o fundador e proprietário da Himalayan Experience, mais conhecida simplesmente como Himex, uma das maiores e mais bem-sucedidas operadoras de expedições para o Everest. Ele vinha organizando expedições guiadas pela montanha desde 1994, apenas pela face norte, no Tibete. Ao longo dos anos, um imenso número de pessoas circulou pelo negócio de Brice, estabelecendo um pequeno feudo, objeto de inveja de muitas operadoras, uma fonte de inspiração e, algumas vezes, de exasperação. As acomodações durante uma expedição Himex, dentro e fora da montanha, eram as melhores disponíveis. Ele oferecia uma cozinha de primeira, os sofisticados dados meteorológicos eram muito organizados, contratava os xerpas mais fortes, recebia grupos animadíssimos. Em seus 12 anos frente à montanha, Brice colocou mais de 270 pessoas nos picos de 8 mil metros, mais do que qualquer outra operadora de expedições. Ele mesmo chegou ao cume duas vezes, em 1997 e 1998, mas agora orquestrava seu espetáculo empoleirado no colo norte, a 7 mil metros, de onde tinha uma vista desimpedida da crista nordeste, a parte 26

MONTANHA SOMBRIA mais perigosa da rota. Monitorava o avanço de seus alpinistas como o capitão de um navio na ponte, acompanhando-os por um telescópio, espiando do vestíbulo de sua barraca, em comunicação permanente por rádio bidirecional ou, na falta deste, por telefone via satélite. Suas expedições, declaradamente, nada tinham de democráticas: se acreditasse que um cliente não iria conseguir, prontamente fazia-o dar meia-volta. Se ignorado, Brice insistia dizendo que mandaria os xerpas recolhê-lo, para mais tarde conversarem no tribunal. Brice não era muito imponente, beirava os 59 anos e pesava cerca de 75 quilos, mas podia ser intimidador. O peito era largo e atarracado, forte o bastante para ultrapassar xerpas com metade da sua idade, carregando uma carga de 20 quilos. Nenhum ocidental estava mais em casa no Everest do que ele, com o comportamento de um experiente general do exército, mesmo ao assumir a personalidade de um jovem guia da montanha. No Everest, seu uniforme típico consistia em uma camisa de rúgbi sob uma parca forrada, uma máscara de esqui de tricô puxada até embaixo, óculos escuros de elástico em torno da testa. Ainda que mantivesse um jeito travesso e um senso de humor irônico, não havia como se enganar em relação à sua experiência e autoridade. O temperamento de Brice podia ser volátil e intenso, mas era assim também com sua sociabilidade. Poucos alpinistas escapavam de uma visita ao acampamento da Himex sem dividir uma cerveja ou uma dose de uísque, ou as duas coisas. Era respeitado por praticamente todos os outros guias do Everest, até mesmo os que não simpatizavam especialmente com ele. Os xerpas simplesmente o admiravam com absoluta adoração. Ban Dai, chamavam-no: Big Boss. Seus anos no Himalaia com certeza foram compensadores, mas isso não quer dizer que também não foram bastante árduos. O ar seco e o clima severo marcaram sua pele e pratearam seus cabelos. Os dentes ficaram manchados pelas incontáveis xícaras de café e chá. Havia carregado tantos fardos esmagadores entre os acampamentos, que as cartilagens dos joelhos praticamente não existiam mais. Em 2006, começou a considerar vender o negócio e partir para outra atividade. Mas o que havia pela frente? Ele não sabia. Brice havia se casado uns dois anos antes, mas não tinha filhos. Era muito jovem para se aposentar, mas ve- 27

KATMANDU lho demais para ainda apreciar verdadeiramente o penoso trabalho das escaladas em altitudes extremas ou as repetitivas controvérsias que muitas vezes as acompanhavam. Ele não tinha certeza sobre o que fazer na próxima estação. Concordara em participar de um documentário que estava sendo produzido pelo Discovery Channel, uma série em seis capítulos, em que ele aparecia em destaque. A equipe planejou seguir uma expedição da Himex por todo o trajeto até o topo, repleta de cinegrafistas de altitude e xerpas equipados com câmeras montadas nos capacetes. Foi um dos mais ambiciosos documentários sobre a montanha já visto, e as coisas já se encaminhavam para que fosse um ano altamente promissor ao menos para o público da TV. A lista de clientes de Brice incluía, entre outros, um homem com dupla amputação, um asmático que queria chegar ao topo sem usar oxigênio suplementar e um motociclista de 100 quilos da Califórnia, cujas costas, joelho e tornozelo estavam fixados com parafusos de metal. Poderia ser o melhor ano da história da Himex, ou o pior. No dia seguinte ao eclipse do Sol, os membros da equipe a maioria deles, pelo menos reuniram-se no pátio coberto por buganvílias do Hotel Tibet, um dia antes da partida para o Everest. Era a primeira vez que o grupo se reunia e, apesar de já estarem intimamente familiarizados com o itinerário, Brice apresentou cada um deles e repassou a programação para a semana seguinte. No dia 1º de abril, iriam de avião de Katmandu para Lhasa, onde encontrariam um oficial de contato e um motorista da Chinese Tibetan Mountaineering Association (CTMA), que os acompanhariam nos próximos cinco dias de subida até o acampamento base. O próprio Brice seguiria por terra, acompanhando um comboio de caminhões carregados de suprimentos para a expedição ao longo da Friendship Highway (estrada da Amizade). A viagem por terra era mais barata, mas enviar os clientes via Lhasa garantia-lhes uma aclimatação mais gradual e, normalmente, acomodações e refeições de boa qualidade, com uma dose de turismo, como medida extra. Em geral, a viagem de Lhasa era mais cara, mas oferecia uma 28

MONTANHA SOMBRIA melhor preparação para os dois meses seguintes, em que enfrentariam desconforto e privações crescentes. A Himex inscrevera dez clientes, de todos os pontos do globo. Dois deles estavam retornando após tentativas frustradas no ano anterior, sendo que um deles era o alpinista asmático Mogens Jensen, um atleta dinamarquês de provas de resistência, alto e bronzeado, de 33 anos. Ele estava deixando para trás a carreira de triatleta profissional e engajando-se no alpinismo de altitudes extremas. Contava com um generoso patrocínio do laboratório farmacêutico GlaxoSmithKline, que apostava na ideia de que alguém usando seu medicamento Seretide e escalando o Everest com a logo da GSK à mostra seria uma boa divulgação sobre os benefícios do produto. Jensen era relativamente novo no alpinismo, mas já enfrentara uma estreia difícil no Everest em 2005: ele correra e pedalara por mais de 9.500 quilômetros, de sua casa na Dinamarca até o acampamento base no Tibete, antes do embate com a montanha. Foi um esforço nobre, especialmente ao se considerar que ele abriu mão do cilindro de oxigênio. Ao final, no entanto, Jensen foi impedido de chegar ao topo aos 8.442 metros, pois foi obrigado a dar meia-volta quando os dedos de seus pés congelaram. O outro cliente que retornava era Brett Merrell, um capitão do corpo de bombeiros de Los Angeles, de 46 anos. Merrell era um robusto californiano do sul, com um forte senso de devoção fraterna. Vinha de uma grande família e os vínculos emocionais que estabelecera em casa lançaram as bases para a lealdade que dedicava aos colegas do corpo de bombeiros. Merrell fora profundamente afetado pelos ataques terroristas em Nova York e Washington, D.C., de 2001, e enfatizou que sua escalada era dedicada aos homens e mulheres que sacrificaram suas vidas em 11 de setembro de 2001. Merrell era articulado, patriota, sensível e natural diante das câmeras. A equipe do documentário já contava com ele para ser um dos astros. Ninguém na expedição, no entanto, chamara mais atenção da mídia na fase pré-escalada do que o neozelandês Mark Inglis. Inglis era um alpinista experiente, que já trabalhara com busca e salvamento e que, em novembro de 1982, fora apanhado por uma tempestade próximo ao cume de 3.750 metros do monte Cook, o ponto mais alto de seu 29

KATMANDU país. Inglis e seu parceiro de escalada, Phil Doole, enfiaram-se em uma gruta de gelo pouco maior do que uma geladeira, apelidando o abrigo de Hotel Middle Peak, devido à proximidade com o pico central da montanha. A provação durou 13 dias, enquanto a tempestade castigava a região e impedia o socorro. Eles conseguiram que seus escassos suprimentos de comida meio pacote de biscoitos, uma lata de pêssegos, uma única barra de chocolate e duas caixas de suco durassem seis dias, usando o calor do corpo para derreter a água. Uma rápida trégua do mau tempo, no sétimo dia, permitiu que o resgate, em contato com eles via rádio, enviasse suprimentos extras, lançando-os de um avião. Mas, quando o grupo de resgate finalmente chegou, os alpinistas sofriam de hipotermia, estavam emaciados e o congelamento fora tão profundo que Inglis e Doole acabaram com as duas pernas amputadas logo abaixo dos joelhos. Anos depois disso Inglis ainda sofria de dores frequentes, mas seu ímpeto não reduzia. Foi em frente e se formou em bioquímica, enquanto realizava pesquisas de câncer na Christchurch School of Medicine. Em 1992, enveredou por uma mudança radical em sua carreira, para logo aparecer como um dos melhores vinicultores da Nova Zelândia. Parecia até que sua deficiência tornara-se a fonte de sua motivação. Inglis pretendia incendiar o mundo do alto de sua prótese dupla. Em 2000, ganhou uma medalha de prata em ciclismo de trilha, nos Jogos Paraolímpicos de Sydney. Dois anos depois, com membros especiais que permitiam o uso de grampões, novamente chegou ao topo do monte Cook. Ao alcançar o cume, em 7 de janeiro, irrompeu em lágrimas. Em sua tentativa no Everest, Inglis ia acompanhado de Wayne Alexander, um engenheiro de 44 anos da cidade de Christchurch, na Nova Zelândia, a quem todos chamavam de Cowboy. Foi Cowboy quem fabricou as pernas usadas por Inglis na subida do Cook em 2002, e agora preparara um par ainda mais elegante, esculpido em fibra de carbono, especificamente para o Everest. A experiência de Cowboy com o alpinismo era limitada ele subira ao topo de apenas dois picos na Nova Zelândia, o Cook e o monte Aspiring, de 2.500 metros, mas Inglis e um alpinista neozelandês haviam atestado sua competência. Cowboy sabia que esse seria o desafio mais importante da vida de Inglis. Se Inglis 30

MONTANHA SOMBRIA conseguisse, seria o primeiro homem com dupla amputação a pisar no topo do Everest. Cowboy trataria de garantir que o amigo não fracassaria devido ao equipamento. Brice continuou com a chamada dos clientes: Max Chaya, 44 anos, varejista de artigos esportivos do Líbano, pretendia completar os sete cumes e, em sua viagem, ser o primeiro libanês a chegar ao topo do Everest. Bob Killip era um executivo de 52 anos, de New South Wales, em sua segunda tentativa na montanha. Três membros da equipe ainda não tinham se apresentado. Kurt Hefti, um guarda-florestal, e Marcel Bach, corretor de imóveis, ambos da Suíça, e Gerard Bourrat, um vendedor de computadores aposentado de 62 anos de Cannes, na França. Quando Bourrat iniciou o treinamento físico preparatório para a escalada, pouco antes da expedição, seu médico descobriu um tumor maligno em seu rim. Em vez de se preparar para o Everest, Bourrat preparou-se para a cirurgia. O cirurgião removeu o rim doente pela frente, pelo abdômen de Bourrat, de forma que carregar uma mochila não agravasse o corte cirúrgico. O procedimento foi tão bem que o médico logo deu o sinal verde para que Bourrat partisse para a escalada. Ele precisaria de duas semanas para se recuperar da operação, mas então estaria pronto para entrar no primeiro avião para o Nepal e se juntar à expedição assim que possível. Brice chegou ao último cliente no salão, Tim Medvetz, um ex- -segurança de bar que trabalhava na personalização de motos Harley- -Davidson, em Los Angeles, para celebridades como Mel Gibson e o lutador profissional Hulk Hogan. Quando Brice o apresentou, alguns dos alpinistas da Himex acharam estranho, pois não se lembravam de ver o nome de Medvetz em nenhuma das trocas de e-mails antes da expedição. Medvetz fora uma inscrição tardia bastante tardia. Na verdade, ele tinha pago a taxa para a expedição, de uma vez e em dinheiro, naquele dia. Tudo nele parecia incomum. E o mais impressionante, ele tinha 1,90 metro e pesava 100 quilos, muito maior do que a média dos montanhistas. Usava cavanhaque e tinha cabelos lisos pretos até o 31

KATMANDU ombro. A pele era muito bronzeada, quase marrom, e os olhos eram tão verdes que pareciam esmeraldas espetadas no crânio. Vestia calças camufladas, tênis Converse de cano alto e uma camiseta preta por cima de um top térmico branco, de manga comprida. Tinha uma bandana amarrada na cabeça, como uma touca, para tirar o longo cabelo do rosto. A gente meio que olhou um para a cara do outro, Brett Merrell se lembrou, e foi algo como, quem é essa figura?. Medvetz não se importava com o que os outros pensavam; merecia estar ali tanto quanto qualquer um. A não ser por Inglis, ninguém mais naquela reunião tinha enfrentado o mesmo que ele para chegar até ali, uma odisseia que começara cinco anos antes, em 10 de setembro de 2001. Medvetz ia a toda a velocidade por uma autoestrada perto de Los Angeles, ao encontro de um amigo, com quem ia jantar. Era uma tarde gloriosa no sul da Califórnia e sua moto vinha roncando, do jeito que ele gostava 110, 130, encostando nos 140 quilômetros por hora. Certamente, ele não esperava que a picape que vinha na sua frente, conduzida por uma senhora grisalha, subitamente desse meia-volta no meio da pista. Medvetz acertou a lateral da caminhonete como um torpedo. O impacto foi tão forte que arrancou a roda traseira do veículo do eixo. Ele se espatifou na pista, a moto girando até parar a uns 20 metros mais à frente. Medvetz olhou para a moto destruída, caída de lado. Alguma coisa estava errada. Preciso tirar minha moto da estrada antes que alguém passe por cima dela, pensou. Mas, quando tentou se levantar, viu que não sentia nada abaixo da cintura. Pegou o celular no bolso do colete e ligou para um amigo. Ei, cara, disse, é melhor você vir até aqui. Na manhã seguinte, quando despertou da cirurgia, Medvetz estava entubado, conectado a um respirador. Completamente grogue, mas suficientemente acordado para olhar em direção aos pés. Seu pé esquerdo fora praticamente arrancado no acidente e tudo o que conseguia lembrar era do médico lhe dizendo não ter certeza se conseguiria salvá-lo. Medvetz implorara para ele antes de ser levado para o centro cirúrgico: salvem meu pé, do jeito que for. E ali estava ele, todo enfaixado, os dedos machucados e vermelhos, com as pontas saindo pela extremidade do gesso. Um grupo de médicos e enfermeiras estava com ele no 32

MONTANHA SOMBRIA quarto, mas todos prestavam atenção na TV presa à parede. Medvetz acompanhou o olhar deles para a tela. Em meio ao torpor dos medicamentos, ele mal reconheceu as torres gêmeas, com a fumaça saindo aos borbotões do lado de cada um dos prédios. Enquanto olhava, para seu espanto, uma das torres desabou em uma enorme coluna de cinzas. Ele queria falar, mas não conseguiu. Estaria sonhando? Não, não. Estava consciente, disso tinha certeza. Alguma coisa horrível estava acontecendo mais tarde ele saberia dos amigos e conhecidos mortos naquele dia, mas, naquele momento, tudo o que conseguia pensar era: Meu Deus, gente, desliguem essa merda. Não dá para ver que tenho meus próprios problemas aqui? No ano seguinte, Medvetz percorreu arduamente o longo caminho da recuperação. Seria submetido a meia dúzia de operações, e, quando os médicos terminaram, ele tinha uma placa de metal na cabeça, uma gaiola de titânio em torno da região inferior da espinha, meia dúzia de parafusos no joelho e grampos fixando seu tornozelo, praticamente imobilizando seu pé em um ângulo de 90 graus. A segurança dos aeroportos passaria a ser um problema pelo resto da minha vida, disse mais tarde. Mas o mesmo valia para a dor. Naquele primeiro ano, Medvetz enfrentou crises de desespero, ansiando pela normalidade, medicando- -se com Vicodin, chegando a ingerir vinte comprimidos em um dia, engolindo-os com Jack Daniel s. Então, certa tarde, sentado sombriamente em seu apartamento, pensando no que ia ser dele no futuro, avistou um exemplar de No ar rarefeito na prateleira, que uma ex-namorada lhe dera. Raramente lia livros, simplesmente não se interessava por eles, mas havia devorado esse, sonhando que um dia ele mesmo escalaria o Himalaia. A fantasia se desfizera anos antes, mas agora voltava com toda a intensidade, as engrenagens se ajustando em seus lugares certos. Então seria assim, uma reabilitação radical. Ele iria escalar o monte Everest. Em março de 2006, Medvetz estava prestes a transformar sua grande ideia em uma realidade ainda maior. Ele reservara seu lugar em uma expedição ao Everest, com uma operadora de Ashford, em Washington, chamada International Mountain Guides, que realizaria uma subida 33

KATMANDU pela rota do colo sul, no Nepal. Ele já fizera o depósito de 6 mil dólares, mas agora, os 30 mil restantes haviam vencido. Medvetz procurara diversos patrocinadores, vendera a moto e raspara todas as suas reservas, mas ainda faltavam 15 mil. Eric Simonson, o proprietário da IMG, e um guia veterano de Eric prorrogaram o prazo de pagamento ao máximo. Medvetz já tinha alguém apalavrado para comprar seu caminhão e teria o resto do dinheiro em duas semanas, no máximo, garantiu a Simonson, mas as autorizações tinham que ser pagas no dia seguinte. O tempo se esgotara, Medvetz estava fora da expedição. Talvez os deuses da montanha estejam lhe dizendo alguma coisa, Simonson dissera-lhe, educadamente, pelo telefone. Foda-se, Medvetz pensou. Não estava aborrecido com Simonson; o cara fizera tudo o que estivera ao seu alcance. Mas Medvetz já tinha a passagem de avião (um passe que um amigo lhe conseguira) e o equipamento, e logo teria o dinheiro necessário para cobrir os custos da expedição. Azar, ele simplesmente se apresentaria no acampamento base, se era só isso o que faltava. O dinheiro é um forte instrumento de persuasão. Se a IMG não o incluíra, certamente encontraria alguma outra pessoa. No final de março, voou para Paris, onde se enfurnou por dois dias, esperando o próximo voo. Foi ali que se lembrou de Russell Brice. Haviam se encontrado uns dois anos antes, em um bar em Katmandu, e Brice havia lhe dado vários conselhos preciosos, incluindo a sugestão de que Medvetz considerasse subir com uma operadora da face sul, pois aquele trajeto favoreceria a perna machucada. Medvetz não só ficara impressionado pela generosidade dos conselhos gratuitos, mas admirou-se com o número de esboços que Brice desenhara enquanto falava. Você não deveria estar se preparando para a subida? Medvetz perguntou no final da conversa. Isso é preparação Brice respondeu. Em Paris, Medvetz foi atrás do e-mail de Brice e enviou-lhe uma mensagem, explicando a situação. Brice já estava em Katmandu, mas respondeu quase que imediatamente. Não tinha certeza se poderia ajudar, mas disse para Medvetz ligar para ele assim que chegasse ao Nepal. 34

MONTANHA SOMBRIA Até mesmo isso seria difícil. Quando Medvetz chegou a Mumbai, foi imediatamente deportado seu itinerário obrigava-o a entrar no país, mas ele não tinha um visto para a Índia. As autoridades o colocaram no primeiro voo de volta para Paris. Quando pousou no Charles de Gaulle, praticamente já havia desistido. Talvez os deuses da montanha estivessem mesmo querendo lhe dizer alguma coisa, mas, novamente, eles precisavam ver quanto de fato ele desejava aquilo. Medvetz estava de volta em um avião três dias depois, em uma rota redirecionada, direto para Katmandu. Ligou para Brice assim que chegou à cidade. A equipe ia se reunir no dia seguinte, Brice informou, e partiria para o Tibete um dia depois. Medvetz teria que transferir os fundos diretamente para a conta da Himex, uma tarefa que se mostraria mais um obstáculo no caminho. Medvetz não tinha como realizar a transferência fora de seu país, assim, no dia 30 de março, foi até o Standard Chartered Bank, em Katmandu, e pediu para falar com a gerente. Disse a ela que precisava sacar 40 mil dólares. Ela assentiu lentamente. Sim, o banco poderia ajudá-lo. Em uma hora, um funcionário do banco trouxe o dinheiro em um carrinho, 2,8 milhões de rupias nepalesas, amarradas em grandes maços, que imediatamente foram colocados em sua mochila. Enfiaram e socaram o dinheiro, as laterais da mochila inchando. Medvetz quase não conseguiu fechar a bolsa quando terminaram. A mochila estava vazia quando ele chegou e agora estava mais alta que sua cabeça. Jogou a mochila nas costas e saiu caminhando orgulhosamente do banco, seguindo para o Hotel Tibet. Brice estava no saguão quando Medvetz chegou. Trouxe algo para você Medvetz disse, e largou a mochila no chão, aos pés de Brice. Brice abriu os fechos e olhou o conteúdo. Está tudo aí assegurou. Brice riu e estendeu-lhe a mão. Bem-vindo ao time disse. O que não falta no Everest é gente eclética, excêntrica e pretensiosa, mas mesmo Brice tinha que concordar, diante do grupo então reunido, 35

KATMANDU que ele tinha atraído uma turma especialmente pitoresca naquele ano. Mas se tinha alguém que desenvolvera um sistema à prova de falhas, esse era Brice. Organizava expedições ao Everest havia 12 anos, e já depurara o processo ao máximo. Cada cliente era acompanhado individualmente por um xerpa, e cada grupo de ataque ao cume contava com guias ocidentais abrindo e fechando a expedição. Todos carregavam um rádio e os guias e xerpas líderes tinham telefones via satélite, como reserva. No dia da subida ao cume, Brice diligentemente acompanhava o time de seu posto no colo norte, marcando o passo de seus clientes e o suprimento de oxigênio, à medida que subiam e desciam pela crista. E não hesitava em botar alguém no caminho de volta se percebesse que sua escalada estava ameaçada. Em 2006, Brice cobrava 40 mil dólares por uma viagem com tudo incluído ao Everest, o único tipo de expedição que ele organizava. Como a Himex operava apenas na face norte, Brice podia aproveitar o menor preço das autorizações e repassar isso para os clientes. Percorrer a burocracia chinesa jamais fora uma tarefa simples, mas, ao longo dos anos, ele desenvolvera uma abordagem civilizada, para não dizer amistosa, com a CTMA. A preservação desse relacionamento era um dos motivos pelos quais ele se aborrecia tanto com as operadoras de baixo custo e suas expedições particulares mal planejadas, que vinham aparecendo na face norte em número crescente. Pouco se importavam com a problemática tendência a deixar corpos para trás, e também costumavam inventar atalhos e se esconder dos oficiais da CTMA, que controlavam o acesso à montanha e monitoravam o acampamento base durante a temporada de escaladas. As operadoras concorrentes às vezes reclamavam que Brice era um megalomaníaco tentando estabelecer um monopólio na face norte, controlando as cordas fixas, intimidando os menores que ameaçavam o seu negócio. Brice, como era de se esperar, alegava que simplesmente tentava estabelecer protocolos de segurança e promover uma cooperação razoável entre todos os que compartilhavam a rota. Incomodava-se especialmente com a falsidade de algumas expedições, e ficava indignado com aqueles que criticavam seus procedimentos enquanto se aproveita- 36

MONTANHA SOMBRIA vam de sua generosidade, do equipamento e dos homens pelos quais pagava para marcar a rota a cada ano. Os serviços médicos que ele fornecia para aqueles que subiam sem médicos ou suprimentos adequados de primeiros socorros, e, que droga, até mesmo as cervejas que ele liberava gratuitamente no acampamento base. Brice havia feito muito, provavelmente mais do que qualquer outra pessoa, para comercializar a face norte e, com essa compreensão, deu-se conta de que não era totalmente isento de responsabilidade pelos problemas que persistiam por lá. Mas erguera seu império com muita seriedade, completamente focado nas questões de segurança e no sucesso da escalada, não em benefícios fiscais. Seu negócio propiciava-lhe uma vida decente, sem dúvida, mas ele mostrava os dentes para aqueles que se aproximavam com um compromisso abaixo de seus padrões. Todos participavam de um jogo perigoso e, se fosse para continuar nele, não poderiam continuar a perder montanhistas. Os que se inscreviam em uma expedição Himex normalmente compreendiam que a experiência e os recursos de Brice não tinham rivais na face norte, e eles desejavam, ou precisavam, de uma pequena ajuda extra se pretendiam de fato chegar ao topo. Em termos históricos, a Himex oferecia aos seus clientes 42% de chance de sucesso e 100% de chance de sobrevivência, números muito atraentes tratando-se do Everest. Brice não dava desculpas pelas amenidades que dava duro para oferecer ao longo do caminho. Afinal de contas, as expedições do Everest tinham uma longa história de abundante patrocínio. No balanço de Brice, os luxos materiais não se destinavam ao paparico de uma clientela mimada. A subida acarretava dois meses árduos, durante os quais a pessoa era submetida a um processo contínuo de desgaste físico, enquanto palmilhava o caminho montanha acima muito lentamente. A questão toda se resumia em, ao chegar próximo ao topo, o alpinista poder contar com energia suficiente para a última arremetida pela zona da morte e conseguir voltar, antes que se esgotasse o oxigênio e sua capacidade de caminhar por conta própria. Os verdadeiros problemas não são os mais óbvios, o oxigênio, esse tipo de coisa, dizia Brice. São as coisas menos óbvias que deixam essas pessoas tão fracas. Elas não se alimentam direito porque não se 37

KATMANDU inscreveram em uma expedição com um orçamento que permitisse uma alimentação adequada. Estão sempre com frio. Não têm apoio algum, nada de xerpas ou de guias. É esse tipo de coisa que mata esse pessoal. A situação está fora de controle. Ninguém mostrou a Brice como escalar o Everest, ele descobriu sozinho em um longo processo de tentativa e erro. Brice nasceu em Christchurch, na ilha Sul da Nova Zelândia. Em 1954, com um ano e meio, sua mãe morreu de pneumonia e ele foi morar com os avós, em uma fazenda fora da cidade. Só voltou a ver seu pai e sua irmã aos 7 anos, quando então já haviam se tornado estranhos para ele. A educação de Brice durante a infância pode não ter sido ortodoxa, mas foi idílica e enriquecedora. O jovem Russ passeava em um arado puxado por um cavalo, sentado no colo do avô. Ele acompanhava todas as tarefas da fazenda. Ia a cavalo para a escola. O ir e vir da vida rural incutiu-lhe autodisciplina, foco e o valor intrínseco de um dia de trabalho duro. Na adolescência, aborrecia-se com os livros, mas era rápido com a educação prática. Foi escoteiro por alguns anos, quando vivenciou as aventuras ao ar livre pela primeira vez: canoagem, acampamentos e caminhadas pela ilha Sul. No ensino médio, entrou para o Venturer Scouts, uma organização sem fins lucrativos cuja finalidade era transmitir para as crianças habilidades vocacionais e de vida através de atividades nas montanhas. Nesse grupo, Brice conheceu o alpinismo, mas com a escassa população da região em que morava, faltava um adulto para liderá-los e eles só podiam contar com um pequeno núcleo de membros do clube. A instrução era ocasional e feita de improviso. Guias experientes e cursos formais eram difíceis de aparecer, assim, os escoteiros tinham que ir aprendendo na prática, uma escola de experiências reais ao ar livre, com Brice na direção. Quando não estava percorrendo as montanhas com os amigos, tentando se matar, Brice arrumava trabalho na construção civil. Aprendeu a virar concreto e fixar o aço, a lidar com um motor a diesel e a operar equipamento pesado, como guindastes, escavadeiras e tratores. Houve 38

MONTANHA SOMBRIA um verão em que ele e alguns colegas foram contratados para construir uma ponte no meio da mata. Praticamente todas as semanas, após o jantar, em seu pequeno acampamento, eles saíam pela trilha de terra com rifles e matavam um veado, para terem carne nos dias seguintes. Ao final da adolescência, Brice já tinha acumulado bastante experiência e milhagem nas montanhas para começar a oferecer cursos na sucursal local do New Zealand Alpine Club (NZAC). Os programas formais de montanhismo ainda engatinhavam, o NZAC de vez em quando trazia um guia da Europa para dar aulas, mas instrutores de qualidade eram difíceis de ser encontrados. Um dos instrutores regulares era Paddy Freaney, um sociável irlandês de 42 anos, ex-oficial do Serviço Aéreo Especial britânico (SAS), que tinha um restaurante em Christchurch. Brice inscreveu-se em um dos cursos de montanhismo de Freaney, em Arthur s Pass, onde o irlandês instalara seu Centro de Treinamento ao Ar Livre. Brice era um aluno brilhante e motivado, e ele e Freaney tornaram-se bons amigos. Brice até mesmo parecia uma versão mais jovem de Freaney, com os cabelos desgrenhados, queixo quadrado e nariz petulante. Não fosse pelo sotaque, os dois passariam por irmãos. Quando Freaney partiu para treinar tropas do SAS na Antártica por vários meses, Brice assumiu o centro e os cursos. Trabalhando em acampamentos, Brice e mais um ou dois instrutores iam para as montanhas com grupos de meia dúzia de alunos. Praticavam o bouldering, a escalada sem equipamentos, num dia e acampavam sob uma rocha, no outro. Nas escaladas longas na neve e no gelo, Brice organizava os alunos em duplas e ia orientando-os, sem usar cordas, verificando as amarrações e sinalizando questões técnicas. Pelos padrões atuais, os cursos causariam úlceras nos advogados, mas criaram em Brice o tipo de autoconfiança que seria inestimável nos anos seguintes. Brice começou a ganhar dinheiro como instrutor muito cedo, mas era óbvio que precisaria de uma vocação mais confiável e consistente se quisesse se emancipar. Ao terminar o ensino médio, obteve a licença de eletricista, tendo aulas em um curso noturno e trabalhando como aprendiz com profissionais que ele conhecia nas construções. O trabalho como eletricista preenchia a baixa temporada entre o verão e 39

KATMANDU o inverno, quando podia se virar trabalhando como guia e instrutor. Conseguiu um emprego de gerente em uma estação de esqui no inverno, e começou a aprender a esquiar sozinho. No final da temporada, arrumou um emprego de técnico em um teatro comunitário de Christchurch, ajudando na iluminação do palco. Era um trabalho único e criativo divertido, pelo menos por algum tempo. Mas meter-se pelos forros e telhados, puxando e conectando a fiação, dificilmente se equiparava à liberdade e à felicidade que sentia nas montanhas. Por fim, Brice percebeu que suas perspectivas sempre seriam limitadas na Nova Zelândia. Não desprezava sua terra natal, era um lugar de extrema beleza, onde aprendera muito. Mas viver em uma ilha tinha seus problemas, e, entre eles, o desejo incessante de partir que dominava os jovens. Brice precisava ver o que mais havia por aí; assim, em 1974, aos 22 anos, ele e mais dois amigos compraram passagens abertas de 365 dias e levantaram acampamento para ir conhecer o mundo. Patagônia, Yosemite, Alasca, os Alpes: tantas montanhas para se divertir, tão pouco tempo. Rumo à América do Sul e aos picos de 6 mil metros dos Andes Yerupaja, Siula Grande, depois, subir para a América do Norte e as paredes de granito da Califórnia. E então para a Europa, onde um dos três conheceu uma moça e se apaixonou, ficando para trás, enquanto Brice e o outro seguiam para a Ásia. No Nepal, conheceram o mais famoso neozelandês de todos, sir Edmund Hillary, que já não escalava tanto agora, mas oferecia mais ajuda através de sua organização sem fins lucrativos, a Himalayan Trust. Brice havia escrito a Hillary antes da viagem, informando-o de sua chegada e perguntando se ele poderia ajudá-los de algum jeito. Apresentou suas credenciais de aventureiro, que esperava serem de alguma utilidade, como de fato foram. Em Phaplu, ajudaram sir Ed a construir um hospital, um dos mais importantes projetos comunitários já realizados na região, mas que seria marcado pela tragédia, quando, em 1975, a esposa de Hillary e sua filha caçula, Louise Mary Rose e Belinda, morreram em um acidente de avião a caminho do vilarejo, vindo de Katmandu. Mais tarde, Brice seguiu a pé, aprofundando-se em Khumbu, 40

MONTANHA SOMBRIA a famosa região de trekking do Nepal e a via de acesso para o Everest, onde ajudou a construir um sistema de água para a Hillary School, em Khumjung, não muito longe do gigante branco de Ama Dablam. Ainda que o altruísmo de Hillary jamais tenha ofuscado sua histórica escalada de 1953, a opinião dele sobre o povo xerpa não é nenhum segredo: sem eles, afirmou várias vezes, não haveria qualquer expedição ao Everest. A atitude de Hillary causou uma impressão profunda e duradoura em Brice. De volta para casa, via Tailândia e Austrália, e, finalmente, Nova Zelândia, Brice e seu amigo chegaram ao aeroporto de Christchurch exatos 365 dias depois de terem partido, exaustos, felizes e completamente duros. Sequer tinham os trocados necessários para pagar o ônibus até a cidade, assim, muito adequadamente, ajeitaram as mochilas nas costas e foram a pé pelos derradeiros 8 quilômetros da viagem, até a casa do pai de Brice. Muitas das experiências ressoariam ainda por muito tempo depois da viagem, mas nenhuma delas como a temporada no Nepal. Não era pelo fato de o Himalaia ser o teto do mundo, havia motivos mais práticos para considerar um retorno. Enquanto o auge da maioria das temporadas de escalada em torno do globo ocorria durante o verão e o inverno, a alta temporada no Himalaia era na primavera e no outono, entre as monções de verão e a neve do inverno. Para um jovem alpinista encarando seu futuro como guia profissional e operador de expedições, ali estava o lugar onde as estações se conectavam e onde era possível manter um negócio ativo o ano inteiro. Brice fez sua primeira viagem ao monte Everest em 1981, aos 29 anos, não como guia ou o Big Boss, mas como o membro mais jovem de uma dupla de neozelandeses com uma meta ambiciosa: chegar ao topo pela ameaçadora crista oeste, sem oxigênio. Seu parceiro era Paddy Freaney. No final dos anos 1970, a dupla se destacara na Nova Zelândia como dois dos mais fortes alpinistas do país. Entre dezembro e fevereiro, verão no hemisfério sul, de 1977-78, escalaram todos os 31 picos de 3 mil metros da Nova Zelândia em uma única estação, um feito inédito 41

KATMANDU na história do alpinismo neozelandês. O projeto de colecionar picos exigiu que alinhassem múltiplas subidas e travessias, em rotas perigosamente técnicas e, por várias vezes, viram-se em meio a tempestades protegidos por barracas de montanha mofadas, tentando fazer com que provisões para poucos dias durassem duas semanas ou mais. Algumas vezes, simplesmente não comíamos, disse Freaney ao Press, o jornal de Christchurch, ao final da temporada. Suas explorações na Nova Zelândia trouxeram-lhes fama local, mas o sucesso na crista oeste colocaria seus nomes entre a elite do montanhismo para sempre, tamanha era a ousadia de sua meta. A crista oeste foi inicialmente escalada, em 1963, por dois americanos, Tom Hornbein e Willi Unsoeld, um feito que ainda é considerado uma das grandes conquistas nos anais do alpinismo. O Everest é, basicamente, uma pirâmide de três lados, o pico é formado pela interseção de três cristas. Quando Hornbein e Unsoeld chegaram, as duas mais acessíveis já haviam sido percorridas: a sudeste, notoriamente por Hillary e Tenzing Norgay, em 1953; e a nordeste, em 1960, com um alvoroço um pouco menor (o New York Times dedicou à história um total de oitenta palavras), por uma equipe de três chineses. As rotas sudeste e nordeste não eram exatamente fáceis, mas consideravelmente mais acessíveis do que os dentes serrilhados que Unsoeld e Hornbein tiveram que encarar ao chegarem ao lado oeste do Everest e olharem para o alto. O caldeirão de nuvens da grande face sul fervia, acentuando o negrume e as ameaças tortuosas da crista oeste, Hornbein escreveu mais tarde. Nós olhamos. [...] Nossos olhos percorreram 1,5 quilômetro de placas sedimentares em declive, rochas negras, rochas amarelas, rochas cinza, até o topo. Atravessar a rota foi ainda pior do que os americanos haviam antecipado. Seus acampamentos mais altos ficavam completamente expostos ao clima brutal do Everest e, durante a subida, uma barraca com quatro xerpas foi soprada para longe da crista, despencando pela face norte. (Milagrosamente, eles sobreviveram.) Na empreitada final dos alpinistas, o avanço reduziu-se a agonizantes 30 metros verticais por hora, enquanto cavavam degraus de gelo ao longo de uma longa calha. Além, subiram por pequenas torres de pedras tão soltas e desgastadas que, ao 42

MONTANHA SOMBRIA serem pisadas, desmoronavam como tijolos empilhados em uma parede sem nenhum cimento. A encosta era traiçoeira demais para permitir um recuo, o plano então era cruzar o topo e descer pelo lado sul, onde esperavam encontrar outros membros da equipe. Hornbein e Unsoeld chegaram ao cume às 18h15, do dia 22 de maio, e seguiram para o lado sul, como planejado. Mas logo escureceu e, quando encontraram os dois outros colegas de equipe, Lute Jerstad e Barry Bishop, eles estavam abrigados na neve a apenas 300 metros do topo, desesperadamente debilitados, sem oxigênio e sem nenhuma lanterna de cabeça. Os quatro homens passaram uma noite calma, mas terrivelmente gelada, na encosta da montanha. Quando Hornbein parou de sentir os pés, tirou as botas e meias para que Unsoeld os colocasse dentro de sua jaqueta, contra a pele de sua barriga. Hornbein ofereceu-se para devolver o favor, mas Unsoeld declinou. Estou bem, disse ao amigo. Os quatro sobreviveram, mas Unsoeld perdeu nove dedos dos pés. A subida de 1963 merecia entrar para o livro dos recordes, mas com a capacidade aparentemente infinita dos montanhistas de driblar e continuamente atualizar os marcos do esporte, algumas pessoas começaram a sugerir que a escalada original da crista oeste precisava de alguns esclarecimentos, pois não fora completa, de fato, ou, na linguagem do esporte, direta. Os americanos, conforme os críticos assinalaram, tinham acessado a rota pelo Western Cwm, evitando completamente a crista inferior. Mais acima, haviam se desviado de algumas das seções mais técnicas, escapando para a face norte e abrindo o caminho por um largo corredor que foi batizado com o nome de Hornbein. Na época em que Brice e Freaney chegaram lá, quase vinte anos depois, cinco equipes haviam tentado a subida direta pela crista oeste, e apenas uma, formada por um grupo de iugoslavos, em 1979, foi bem-sucedida. Todos eles usaram oxigênio suplementar. Os anos 1970 e 1980 assistiram a uma espécie de renascimento moderno do montanhismo. Os avanços de design deixaram equipamentos e materiais mais leves e confiáveis, ajudando a abrir caminho para a escalada de faces cordas longas e audaciosas, em paredes pratica- 43

KATMANDU mente verticais de rocha, gelo e neve. À medida que os limites técnicos evoluíam, as atitudes acompanhavam. O estilo alpino, uma estratégia de autoconfiança que implica carregar todo o seu equipamento, tornou-se a regra, e levou a uma mudança filosófica de dimensões sísmicas na maneira como as escaladas eram feitas. Nas expedições tradicionais, acampamentos fixos, cordas fixas e batalhões de auxiliares em altitudes extremas ofereciam o máximo de suporte para a equipe que atacaria o cume. O estilo alpino incorporava uma abordagem inteiramente diferente: leve, rápida e autossuficiente, um teste para a resistência e experiência individuais. Não se tratava mais da montanha, mas sim do alpinista. Indiscutivelmente, ninguém representou melhor o espírito do estilo alpino do que Reinhold Messner. Trata-se de uma figura quase mística, com seus cabelos longos, criado no norte da Itália, sob o jugo de um rígido e severo pai austríaco. Aprendeu a escalar nas Dolomitas, completando seu primeiro cume aos 5 anos. Ao chegar à idade adulta, tornou-se um dos mais destacados alpinistas do mundo, adotando um credo que incluía partes iguais de ascetismo e ousada competitividade. Em essência, Messner afirmava que qualquer escalada deveria contar com o mínimo de auxílio possível. Radicalizando, alguns brincavam que isso significava escalar nu, sozinho e usando apenas as mãos. Mas Messner, sempre sério, explicou que isso significava, simplesmente, por meios justos. Todos nós guardamos o anseio de reencontrar nossa condição primitiva, ele escreveu em The Crystal Horizon, para podermos nos medir contra a natureza, ter a chance de enfrentá-la e assim nos descobrirmos. Em meados dos anos 1970, Messner já havia dado inúmeros exemplos do que o estilo alpino podia alcançar. Praticamente voou até o Matterhorn e o Eiger, nos Alpes, fazendo em menos da metade do tempo que outros alpinistas normalmente levavam. Inevitavelmente, a mídia começou a pressioná-lo sobre o monte Everest. Messner disse que tentaria, mas só se fosse sem oxigênio. Na época, não estava claro se seria possível, fisiologicamente, chegar ao cume do Everest sem oxigênio suplementar; muitos cientistas estavam convencidos de que não era. A 8.800 metros, a atmosfera contém apenas 30% do oxigênio disponível ao nível do mar. Isso seria suficiente para fornecer o oxigênio necessário à sobrevivência em repouso, 44