Quando me recordo dos tempos de infância sempre me vem a lembrança do primeiro dia de aula. As experiências deste dia foram essenciais para o resto da minha vida não somente escolar, mas também minha vida pessoal. É por este motivo que iniciarei a estória da minha vida por aqui. Ingressei na escola aos seis anos de idade e, por saber ler e escrever, iniciei na primeira série do primário. Quem me acompanhou neste dia foi meu irmão mais velho, Edivaldo e minha irmã de oito anos, Adriana, que havia reprovado o ano anterior e estudaria na mesma turma que eu, ela já conhecia a escola e isso foi o que me passou segurança. A minha primeira professora era a professora das minhas irmãs. Sempre as ouvi dizer que a tia Marli era muito legal e por isso me senti um pouco mais à vontade em sua companhia, fiquei um pouco amedrontada, no primeiro dia, quando meu irmão foi embora, pois pensava que ele ficaria nos aguardando até sairmos da escola, mas este medo logo passou com o inicio das atividades, a professora realmente era muito legal, ela conseguia fazer da sala de aula um lugar bem agradável. A partir do segundo dia de aula começamos a ir sozinhas para a escola. Minha irmã estava acostumada e conhecia bem o caminho. Minha mãe, Vilma, sempre nos aconselhou a fazer o caminho de terra, pois pelo asfalto, na avenida, era muito perigoso. Nós não gostávamos deste caminho, mas na maioria das vezes, obedecíamos minha mãe. Minha educação sempre foi rígida, mas acho que a educação dos meus irmãos mais velhos foi um pouco mais. Meus pais foram mais enérgicos com os primeiros filhos e por ser a caçula peguei meus pais mais amaciados, mas ainda assim recebi muitas broncas e palmadas, principalmente de minha mãe, com quem mais convivia. Meu pai, Dirceu, trabalhava fora como construtor, buscando o sustento da família, e vinha para casa de quinze em quinze dias e às vezes demorava quarenta dias. Com isso a educação dos filhos ficou mais sobre a responsabilidade de minha mãe, e ela foi obrigada a ter pulso firme. Meus pais sempre tiveram uma vida dura, de muito trabalho na lavoura e de muitas privações. Os dois são naturais do estado do Rio Grande do Sul e chegaram no Paraná acompanhados de seus familiares mais ou menos na mesma época. A família de minha mãe veio primeiro. Meu avô comprou uma
pequena propriedade rural na cidade de Planaltina do Paraná. Passado algum tempo, a família de meu pai se instalou em uma propriedade vizinha a da minha mãe. E foi neste local que meus pais, ainda crianças, se conheceram. E então cresceram juntos, namoraram e tempos depois se casaram. Tanto meu pai quanto minha mãe são os filhos mais velhos de meus avós e por isso, ainda crianças, tiveram que trabalhar muito para ajudar no sustento da família. Sempre foram acostumados desde muito pequenos a sobreviver em condições precárias, mas foi após o casamento que sentiram as reais dificuldades de construir a própria vida e manter uma família. Com a chegada dos primeiros filhos as coisas apertaram ainda mais. Por estes motivos minha família, no início, foi um pouco cigana. Mudaram de uma cidade para outra várias vezes, meu pai sempre tentando a sorte buscando melhores condições para a família. Depois de diversas moradas, minha família finalmente chegou em Paranavaí, cidade onde nasci. Nesta cidade, no bairro Jardim São Jorge, meus pais resolveram criar raízes e lá moram até hoje, também lá estão minhas melhores recordações. No ano em que entrei na escola, comecei a estudar no período da manhã e à tarde fui colocada na creche porque minha mãe trabalhava em uma fábrica de bichinhos de pelúcia. Minhas irmãs mais velhas, com quem eu ficava, também começaram a trabalhar para ajudar nas despesas da família. Na creche, não tive experiências agradáveis. A creche possuía uma boa infra-estrutura, tinha parquinho, era espaçosa, tinha merenda à tarde, televisão e vídeo, mas as crianças que lá ficavam quase nunca usufruíam daquilo tudo, pois havia muitas regras que as repreendiam. O que mais eu detestava era que todos tinham que dormir à tarde. Além disso havia uma tia, da qual não me lembro o nome, que era muito brava e chegava a bater nas crianças. Apesar dela nunca ter me batido, eu a odiava. Eu reclamei tanto para minha mãe que um dia ela desistiu de me obrigar ir para a creche. Na minha infância sempre fui muito levada, todos diziam que eu tinha espírito de moleque. Lembro-me que um dia reuni toda a meninada da vizinhança para brincar de escolinha e como não tínhamos quadro-negro, resolvemos o problema escrevendo nas portas do guarda-roupa de minha mãe.
O resultado foi uma bagunça, todas as roupas guardadas ficaram brancas com o pó do giz e por muito pouco não apanhei quando minha mãe chegou do trabalho. Ela brigou muito e disse que por eu aprontar dessas que ela queria me mandar para a creche. Coitada! Cansada do trabalho e tarde da noite teve que lavar as roupas que eu havia sujado. Ainda bem que quando a raiva passou, ela não tocou mais no assunto da creche. Apesar de ter sido muito peralta na infância, na escola sempre fui muito tranqüila, nunca tive grandes dificuldades com os estudos e minhas notas sempre foram boas. Na sala de aula me comportava e no recreio brincava muito. Brincava de léts (conhecido como pega-pega), de pular elástico, de roda com as meninas e diversas outras brincadeiras que hoje quase não existem nos intervalos das escolas. O caminho da escola era longo, mas nós não sentíamos a distância porque brincávamos o tempo todo. Nunca me esqueço da travessia do murinho da caixa d água, um quarteirão inteiro cercado por um muro, local de um reservatório da Sanepar, empresa responsável pelo abastecimento de água potável no Paraná. Este local era parada obrigatória para toda molecada a caminho da escola. Nós apostávamos corridas para ver quem chegava primeiro no murinho e nos equilibrávamos sobre ele de um lado a outro da rua. Algumas vezes acidentes ocorriam. As pernas saíam raladas, roxas, mas o choro era escondido para que a mãe não percebesse nada, se não era briga e palmadas para todo mundo. Em toda a minha infância, a data mais esperada eram as férias de dezembro! Como era bom passar sem ficar para recuperação e ir curtir as férias no sítio da minha avó. Quando somos crianças, as datas comemorativas, como por exemplo o Natal, são sempre mágicas. Eu quase nem dormia com a expectativa da chegada do Natal. Esperava o presente de fim de ano, as brincadeiras com os primos e a reunião dos familiares. Tudo é mais gostoso quando somos crianças e não sentimos a realidade. Eu sempre adorei passar as férias no sítio, lá vivi as melhores épocas. No sítio tinha liberdade, espaço para brincar, carinho e comida da avó, tudo era muito saboroso. Que triste era quando as férias acabavam, tinha que voltar
para casa, estudar o ano inteiro. Hoje ainda amo a casa da minha avó e sinto não poder passar mais as férias com a doce velhinha. Agora estou adulta, os compromissos são muitos, e as férias sempre ficam para depois. O tempo não pára e aos doze anos, já adolescente, comecei a trabalhar. Com esta idade sempre queremos roupas da moda, dinheiro para ir a lanchonetes, etc., e como meus pais não tinham dinheiro para estas bobagens, então o emprego de doméstica e babá foi a saída. Era a única coisa que sabia fazer e com doze anos que outro emprego poderia conseguir? Uma vez quis trabalhar de bóia-fria, mas minha mãe não deixou. Para convencer minha mãe a me deixar trabalhar, de doméstica e babá, prometi a ela que não pararia de estudar. Como iniciaria a sétima série do ginásio poderia estudar no período noturno. Sendo assim ela concordou. A partir do momento que comecei a trabalhar me senti independente. Meus pais não precisavam mais comprar minhas roupas, meus cadernos, ou seja, todos os meus gastos passaram a ser por minha conta, e isso me dava uma sensação de liberdade. Ainda hoje, bem ou mal, sou eu que me sustento em Curitiba. Agora conquistei um pouco mais de respeito dos meus familiares. Agora porque na infância não fui compreendida por meus irmãos nem mesmo por meus pais, por ser brava, persistente muitas vezes manhosa, fui taxada como a ruim da família, a chata, a verdadeira peste. Mas nunca me considerei a peste que falavam que eu era, as pessoas nunca viam as coisas boas que eu fazia. É claro que ninguém é perfeito e comigo não seria diferente, mas tenho coisas boas para mostrar, basta abrir os olhos para ver. Pois bem, continuei os meus estudos e quando estava cursando a oitava série do ginásio, decidi fazer magistério. Dessa forma voltaria a estudar pela manhã, pois o curso só era ofertado neste período. Com isso abriria mão da minha independência financeira. Mas quando chegou a hora deu ingressar no segundo grau o governo teve a infeliz idéia de retirar os cursos técnicos das escolas públicas. Foi muito triste ter os meus planos jogados fora. Restou-me continuar a ser doméstica e me matricular no curso disponível em meu colégio, Educação Geral, que em tese prepararia os alunos para o vestibular. Que prepotência achar que teríamos alguma chance de passar no vestibular de alguma
faculdade pública, única alternativa da maioria dos alunos que ali estudavam. Todos os alunos reprovaram a atitude do governo, porque ninguém tinha a pretensão de fazer faculdade, queríamos que continuassem os cursos técnicos. Meus pais também não falavam muito em faculdade. Eles não tiveram oportunidade de estudar, minha mãe nem terminou o primeiro grau, e por isso incentivaram os filhos a estudar e ao menos terminar o segundo grau, mas a universidade estava longe da nossa realidade. O curso superior sempre esteve distante pelo fato de todos os meus sete irmãos, incluindo a mim, terem estudado em colégio público. Eu sempre estudei no mesmo colégio. Desde a primeira série ao segundo grau estudei no Colégio Estadual Silvio Vidal, no bairro onde morava e todos sabem que na maioria das vezes o ensino público é inferior ao ensino particular. No colégio era raro algum aluno ter feito ou pretender fazer o vestibular. O assunto não era nem mencionado em sala de aula. E o colégio, além de não preparar os alunos, também não os incentivava a tentar o concurso. Assim quando terminei o segundo grau, em 1999, fiquei bem perdida. Não sabia o que fazer, não me sentia preparada para o vestibular, tinha uma baixa auto-estima, não me sentia capaz. Parecia que meu futuro se resumiria a trabalhar o resto da vida como doméstica, me casar e ter filhos. Este destino seria o mais natural para as meninas com quem eu convivia. O importante era ter um salário para sobreviver, ou seja, vestir, comer e morar. Mas para mim isto não bastava e não me conformava com aquela situação, sem estudar e no mesmo trabalho. Não que não gostasse da família para quem trabalhava, pelo contrário eu sempre os admirava muito e fui muito respeitada por eles, já me sentia da família e foi graças a eles que vim para Curitiba e agora estou na Universidade Federal do Paraná. Foi então que decidi fazer cursinho pré-vestibular. O cursinho era caro e longe. Meu salário seria para pagar as mensalidades, o transporte e mais nada. Eu trabalhava de dia e à noite ia para o cursinho cansada, com sono, e muitas vezes fiquei com fome porque não tinha dinheiro para o lanche da cantina. Mas consegui! Fiz um semestre de cursinho e prestei vestibular no meio do ano de 2000, na Faculdade Estadual de Paranavaí - FAFIPA, para o curso de Ciências do Primeiro Grau. Escolhi este curso por gostar de Biologia e este seria o que
mais se assimilava, além de ser um curso noturno que me possibilitaria trabalhar. O vestibular foi uma derrota, fiquei em 23º lugar e só havia 20 vagas para o curso. Depois dessa decepção, vieram os comentários. Diziam ser difícil mesmo passar no vestibular, que talvez fosse melhor gastar meu dinheiro com outros cursos, pois só fazem faculdade os filhinhos de papai, os que possuem melhores condições financeiras. Apesar dos comentários não me deixei abater e fingindo não ter escutado nada me matriculei outra vez no cursinho. Mas desta vez o meu dinheiro foi suficiente para cursar apenas dois meses do prévestibular, a mensalidade havia aumentado e meu salário não daria mais para cobrir todos os gastos. No fim do mesmo ano prestei novamente vestibular na mesma faculdade, mas em curso diferente, Enfermagem, um curso mais concorrido. Outra vez fracassei, não consegui passar pela barreira do vestibular. Agora tinha que me preparar para encarar os olhares de decepção me reprovando ainda mais. Lembro-me do meu pai dizendo que eu havia jogado dinheiro fora fazendo cursinho. Ouvir isso foi doloroso, senti no tom da sua voz a falta de crédito. Foi como se ele tivesse dito você não é capaz. Sei que para ele estas palavras não foram significativas, mas em mim marcaram. Depois dessa segunda derrota fiquei desanimada. Comecei a pensar que talvez fosse melhor parar de tentar a faculdade e me render a um curso qualquer. Foi então que recebi um convite para morar em Curitiba, trabalhar na casa da família que a tempos havia trabalhado, a mesma que já me referi anteriormente. Minha missão seria ajudar a cuidar de três crianças, Cassiano, meu lindo Natam e da pequenina Lorena que recém tinha nascido, além de ajudar na limpeza do apartamento. Quando recebi esta proposta, não sabia se aceitava. Eu ainda não tinha dezoito anos e nunca havia saído de casa para tão longe. Meus pais então me aconselharam a aceitar o convite, conhecer uma cidade nova, cidade grande, a capital do Paraná, e se acaso não gostasse era só voltar para casa. Aceitei. Cheguei em Curitiba no mês de março de 2001. Estando em Curitiba, decidi fazer mais uma vez cursinho, agora eu tinha certeza que passaria no vestibular. No cursinho estudei muito, todos meus
horários vagos eram ocupados com as apostilas, os exercícios, a leitura de jornais e dos livros exigidos para o vestibular. Chegado o momento para a inscrição do vestibular da Federal não sabia para que curso optar. O meu desejo sempre foi fazer Biologia, mas sendo um curso diurno teve que ficar fora das minhas alternativas. Pensei um pouco e decidi fazer Letras Português noturno porque gostava da idéia de ser professora. Na verdade, a escolha do curso não foi muito criteriosa, pois apesar de ter estudado muito, não acreditava ter chances e passar no vestibular da Federal. Eu queria e tinha certeza que passaria no vestibular da minha cidade, no curso de Serviço Social. Porém, para minha surpresa passei no vestibular da Universidade Federal do Paraná. Foi muito bom, uma grande conquista! Minha família ficou orgulhosa. Consegui provar a todos que era capaz e que não foi dinheiro jogado fora fazer vários cursinhos. Nem cheguei a fazer o vestibular em minha cidade, o resultado da Federal saiu antes das provas serem realizadas em Paranavaí e como havia passado em Curitiba, quis economizar o dinheiro da passagem. Muitas vezes, as saudades de casa fazem com me arrependa de não ter retornado e feito o vestibular lá, pois perdi a oportunidade de voltar à minha cidade e de ficar perto da minha família. Passar no vestibular foi o início de uma nova vida. Saí da casa em que trabalhava e fui dividir um pequeno apartamento no centro da cidade com minha irmã, Rosângela, que estava já há algum tempo tentando a sorte na cidade grande. Comecei então a procurar um novo emprego, mas me faltava a tão pedida experiência profissional. As dificuldades foram surgindo e desempregada, sobrevivendo das minhas economias que estavam no fim, surgiu a vontade de abandonar tudo e voltar para casa. Depois de muito procurar, consegui um trabalho temporário e a situação melhorou um pouco. As dificuldades foram muitas, porém nunca reclamei e minha família nunca ficou sabendo das reais condições pelas quais eu passava aqui. Ainda hoje sempre que ligo ou visito meus pais, digo a eles que tudo está bem, que não precisam se preocupar comigo. Digo isto porque sei que não podem me ajudar
financeiramente e falar a realidade só irá lhes causar preocupações e angústias. Sempre tento os poupar de tudo. Penso que se optei caminhar com minhas próprias pernas, ser dona de meus passos, devo assumir todas as conseqüências. Entrar na universidade foi um sonho realizado. Ter conseguido ir além do segundo grau foi muito importante e mostrar a todos que a universidade não está tão longe da realidade daqueles que possuem força de vontade. Letras, o curso escolhido, realmente não era o que queria, me sentia um peixe fora d água. Eu nunca fui muito bem na disciplina de Português durante o período escolar e na universidade não conseguia atingir o nível dos meus colegas de turma. Estudar se tornou uma tortura, e sempre ficava para exame. A realidade é que sempre tive um fascínio pela área biológica, mas fazer vestibular de novo não estava nos meus planos. Foi então que através de um novo projeto da universidade chamado Provar, que vi a oportunidade de mudar de curso. Este projeto tem por finalidade ocupar as vagas remanescentes existentes dentro de diversos cursos na universidade. Esta é uma oportunidade não somente para os alunos de dentro da universidade reoptar ou remanejar seu curso, como também para alunos de outras universidades que desejam ingressar na Federal do Paraná. Como iria tentar mudar de um curso noturno para outro diurno, comecei a buscar formas de me manter sem ter que trabalhar integralmente. Com isso teria que reduzir meus gastos, principalmente os com moradia que eram os mais pesados. Foi então que, através de conversas com amigos, conheci a CEUC, Casa da Estudante Universitária de Curitiba, onde hoje moro. Na CEUC, convivendo com meninas que se sustentavam aqui sozinhas, recebendo auxílio de bolsas fornecidas pela própria universidade, como bolsa permanência, monitoria, entre outras, comecei a perceber que havia diversas formas de se fazer um curso integral. Não seria tão impossível como pensava. Depois de muitos exemplos presenciados na CEUC, convivendo e conversando com estudantes de diversas áreas e cursos, tive coragem de mudar meu curso. Resolvi arriscar e ver o que dava. Então mudei para Agronomia. Todos me perguntaram: Porque Agronomia se o que você queria sempre foi Biologia? Então respondo a todos os curiosos:
Optei por Agronomia depois de ter convivido com muitas meninas que faziam o curso e outras que cursavam Biologia, pude analisar mais de perto os dois cursos, o campo de trabalho, as disciplinas, a carga horária de cada um, pude observar que na verdade todas as minhas preferências estavam relacionadas mais com o curso de Agronomia. Agora me sinto realizada, pois apesar de Agronomia ser um curso muito difícil, superou todas as minhas expectativas e estou muito feliz com a certeza de ter finalmente acertado a escolha. Esta é minha história, ainda que sem fim. Para muitos talvez não seja grande, mas para mim é a única. É a história da minha vida, uma vida de dificuldades, mas também de pequenas e grandes vitórias, de doces lembranças e espero que no futuro haja esperança de um final feliz.