Acorda, seu Zé Preguiça, hoje é domingo. Dia do Senhor. A sua mãe tá passando a roupa que você separou ontem, e o seu café já está pronto, só esperando a sua boa vontade. Felipe tentou voltar a dormir, mas os gritos de seu pai foram mais fortes do que aquele sono gostoso das manhãs dominicais. Vamos, Felipe, como diz a Bíblia: Alegrei- -me quando me disseram: vamos à casa do Senhor. Salmo 122, versículo 1. Nem tão alegre assim, Felipe se levantou e foi para o banho enquanto sua mãe acabava de passar a roupa que ele usaria para ir à Escola Bíblica Dominical (EBD). Como de costume, seus pais foram discutindo até a porta da igreja. Aí, instantaneamente as discus-
sões pararam e as mãos se uniram, mostrando uma imagem de casal feliz. Porém, a cena acabou logo que voltaram para casa. Seu Hélio tinha um gosto imenso em estudar a Bíblia. Dizia que era para se alimentar da palavra. Ele sempre arrumava um jeito de usar a Bíblia para favorecê-lo: Mulher, já pode servir o almoço. Estou cheio de fome. Faça como diz a palavra do Senhor: O teu desejo será para o teu marido, e ele te governará! Gênesis 3, versículo 16. Dona Vânia não dizia nada, mas era notável sua irritação com o modo como o marido interpretava as palavras do Senhor a seu próprio prazer, e isso acontecia quase todos os domingos. A não ser quando o almoço era servido na igreja. Dona Vânia ajudava o grupo das senhoras no preparo das refeições que eram vendidas na intenção de arrecadar fundos para as reformas do templo, enquanto seu Hélio conversava sobre os assuntos da obra com o pastor e os obreiros. Felipe sempre arrumava uma bola para jogar no estacionamento com os amigos do Embaixadores do Rei (ER). O Embaixadores do Rei era um grupo de adolescentes entre 9 e 16 anos da igreja batista, que tinha uma disciplina parecida com a dos Escoteiros Mirins. A diferença era que nas reuniões do Embaixadores do Rei os ensinamentos tinham a Bíblia como fundamento. Lá eles aprendiam sobre os principais personagens do Livro Sagrado, como Abraão, o pai da fé; 8
FIEL Davi, o pequeno que derrubou o gigante Golias; e seu filho, o sábio rei Salomão, que sempre tinha uma solução para os problemas que apareciam em sua jurisdição. Todos os meses aconteciam viagens, acampamentos, torneios esportivos e debates bíblicos. Felipe era fera nessas atividades, sem falar nos torneios de futebol, nos quais só dava ele. Eram os Embaixadores do Rei que mais animavam sua fé. Com eles, Felipe podia mostrar seu potencial. Até porque em casa havia muita cobrança pelos resultados na escola. Seu pai tinha o sonho de vê-lo se tornar um médico reconhecido pela sociedade. Mal sabia ele que Felipe morria de medo quando via sangue, e tinha outros planos para sua vida. Momentos inesquecíveis aqueles vividos na praia do Sahy, em que os Embaixadores do Rei acamparam, tiveram aulas de sobrevivência na mata e de defesa pessoal. O instrutor dos ER também era professor de kung fu e, nas horas vagas, dava lições de artes marciais para eles. Felipe ficava todo empolgado, já que seu pai nunca o deixara aprender a lutar em outro lugar. Sempre que assistia aos filmes de luta na televisão, ficava treinando em casa, escondido no quarto. Nunca foi de arrumar confusão, mas sempre era tentado quando jogava futebol e os zagueiros queriam lhe dar rasteiras. Nem sempre conseguia se esquivar das jogadas maldosas. Mas aprendeu muito cedo a administrar as situações da vida. Conseguia separar as brigas dos pais 9
simplesmente fazendo perguntas para um deles. Na hora em que iam falar algo que ofenderia a integridade do casal, Felipe entrava no meio e de alguma forma dizia coisas criativas que terminavam com a discussão. Quando o pai acusava a mãe de preguiçosa e ela já ia responder com alguma palavra ofensiva, ele entrava no caminho e perguntava à mãe o que havia colocado de diferente na comida. A partir daí, elogiava o tempero e ainda pedia confirmação ao pai. Na mesma hora, a discussão era interrompida. Essa mesma habilidade era usada para conquistar as garotas na igreja e no colégio. Felipe era um admirador da arte da guerra um amigo de seu pai lhe disse que as estratégias poderiam ser usadas em muitas situações na vida, inclusive na hora de conquistar uma mulher. Pronto, foi o suficiente para ele comprar vários livros sobre o assunto. Com isso, começou a guerrear nos campos de batalha da vida sentimental. Logo ficou com fama de namorador. Além da boa aparência, tinha uma habilidade incrível com a bola. Ganhava todas as competições de que participava pela seleção da escola e com os Embaixadores do Rei. Aprendeu a falar pouco e só abria a boca quando alguém pedia sua opinião. Seu Hélio dizia: Boca fechada não entra mosquito. Se alguém falasse mal de outra pessoa, ficava quieto, não concordava nem discordava com a ofensa. Apenas ouvia o desabafo. Sabia que se concordasse com a ofensa, no futuro a pessoa poderia usar a opinião dele como referência para continuar falando mal da outra. E se 10
FIEL fosse contra o fofoqueiro, estaria defendendo a outra e também acabaria sobrando para ele. Com esses conflitos penetrantes foi criado. Seu Hélio sempre ensinou as malandragens da vida ao filho, sem saber que isso seria usado de forma diferente da que almejava. 11