EXMO. SR. DR. JUIZ FEDERAL DA VARA FEDERAL CÍVEL DA SEÇÃO JUDICIÁRIA RIO DE JANEIRO/RJ Ref. PA MPF/PR/RJ 1.30.012.000239/2005-79 O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, por meio do Procurador da República que esta subscreve, com fulcro nos artigos 5º, XXXII, 127, 129, III e 170, V, da Constituição Federal, artigos 1º, II, 3º e 5º da Lei nº 7.347/85 e artigo 6º, VII, alíneas a, c e d, da Lei Complementar nº 75/93, vem propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA em face da AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA ANVISA, autarquia federal, criada pela Lei 9.782/1999, com endereço no SEPN 515, Bl. B, Ed. Ômega, Brasília DF, CEP: 70770-502, pelos fatos e fundamentos que passa a expor: 1 BREVE SÍNTESE PA: Foi instaurado no âmbito desta Procuradoria da República o Procedimento Administrativo MPF/PR/RJ nº 1.30.012.000239/2005-79, a partir das representações acostadas às fl. 02 do PA e fl. 03 do Apenso I, com o objetivo de apurar possível contaminação de latas de bebidas, as quais poderiam representar riscos à saúde dos consumidores. 1
Destarte, visando à instrução do procedimento, este órgão do Parquet Federal encaminhou ofícios o CETEA (Centro de Tecnologia de Embalagem do Instituto de Tecnologia de Alimentos), requisitando cópia da pesquisa realizada para análise de contaminação microbiológica em embalagens de bebidas, bem como à ANVISA, para que informasse se já havia algum procedimento nesta Agência visando determinar aos fabricantes de bebidas que incluíssem nas respectivas embalagens a advertência ao consumidor para que não beba diretamente na embalagem antes de limpá-la. De acordo com o Relatório encaminhado pelo CETEA (Apenso II do PA), verifica-se que o maior nível de contaminação encontra-se nas embalagens de bebidas comercializadas pelos quiosques e ambulantes e que a limpeza das mesmas reduziriam consideravelmente os riscos de contaminação pelos consumidores. Contudo, muito embora tenha sido cientificada dos resultados referidos acima e tenha reconhecido, às fls. 31/32 do PA, a importância da inclusão de advertência nas embalagens de bebida orientando a sua lavagem antes do consumo, a ANVISA, passados quase cinco anos do início dos questionamentos por parte deste órgão ministerial, nega-se a editar ato normativo a respeito do tema, conforme se verifica às fls. 183/186 do PA, omitindo-se de suas atribuições legais. Assim, não resta alternativa que não o ajuizamento da presente, visando assegurar a efetiva proteção dos consumidores, no que concerne aos seus direitos básicos à saúde e à informação, como será demonstrado adiante. 2 - DA LEGITIMIDADE ATIVA MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL: O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbida da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, segundo preceitua o art. 127 da CF. 2
A legitimidade do Ministério Público Federal para a propositura da ação é prevista e assegurada pela seguinte legislação: Art. 129 - São funções institucionais do Ministério Público: (...) II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia; III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; Ampliando a previsão constitucional, a Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) dispõe, em seu artigo 81 e parágrafo único, que a defesa dos interesses e direitos dos consumidores pode ser exercida individual ou coletivamente, entendendo-se dentre estes últimos, além dos interesses coletivos e difusos, também os interesses ou direitos individuais homogêneos. A mesma lei atribui ao Ministério Público a legitimidade para ajuizar as ações civis coletivas alusivas ao assunto (artigos 91 e 92): Art. 81 - A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de : I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum. Art. 82 - Para os fins do artigo 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente: I - o Ministério Público; Art. 91 - Os legitimados de que trata o artigo 82 poderão propor em nome próprio e no interesse das vítimas ou seus sucessores, ação civil coletiva de responsabilidade pelos danos individualmente sofridos, de acordo com o disposto nos artigos seguintes. 3
normativos: A legitimidade ministerial é corroborada ainda pelos seguintes preceitos Lei Complementar nº 75/93 - Estatuto do Ministério Público da União Art. 5º - São funções institucionais do Ministério Público da União: II - zelar pela observância dos princípios constitucionais relativos: c) à atividade econômica 1, à política urbana, agrícola, fundiária e de reforma agrária e ao sistema financeiro nacional; VI - exercer outras funções previstas na Constituição Federal e na lei. Art. 6º - Compete ao Ministério Público da União: VII - promover o inquérito civil público e a ação civil pública para: c) a proteção dos interesses individuais indisponíveis, difusos e coletivos, relativos às comunidades indígenas, à família, à criança, ao adolescente, ao idoso, às minorias étnicas e ao consumidor; d) outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos; Lei nº 7.347/85 Art. 1º - Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: II ao consumidor ; Art. 5º - A ação principal e a cautelar poderão ser propostas pelo Ministério Público, pela União, pelos Estados e Municípios. Poderão também ser propostas por autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de economia mista ou por associação que:. Sobre o tema, muito bem se manifestou João Batista de Almeida (in A proteção jurídica do consumidor, Ed. Saraiva, 2ª edição, 2000, págs. 62/63): Dentre os vários órgãos encarregados da tutela do consumidor, sobressai o Ministério Público como um dos principais instrumentos dessa atuação protetiva (CDC, art. 5º, II), mercê das incumbências constitucionais e legais da instituição e do alto nível profissional de seus membros. (...) 1 CF - Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) V - defesa do consumidor; (...) 4
Por isso mesmo, pondera, acertadamente, Antônio Herman Benjamin que a tutela do consumidor pelo MP tem como premissa básica a defesa do interesse público, algo mais abrangente que o interesse exclusivo do consumidor. Aí reside a razão principal porque é o MP, e não outro órgão, a instituição mais adequada a carrear a tarefa mediativa nas relações de consumo. propor a presente ação. Evidente, portanto, a legitimidade ativa deste órgão ministerial para 3 DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL: A competência da Justiça Federal é indiscutível em razão da ANVISA, autarquia federal, figurar no pólo passivo da presente ação, a teor do disposto no art. 109, inciso I, da Constituição Federal: Art. 109 - Aos juízes federais compete processar e julgar: I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho. 4 S FATOS Em atendimento à requisição deste órgão, o CETEA encaminhou cópia de estudo a respeito da contaminação microbiológica em embalagens de bebidas, realizada no ano de 2003, o qual compõe o Apenso II do PA ora anexado. De acordo com tal estudo, constatou-se relevante grau de contaminação das latas obtidas junto a quiosques e ambulantes, a qual decorreria das condições de armazenagem e manuseio, cabendo transcrever os seguintes trechos das conclusões (fl. 14 do Apenso II do PA): 5
Quando na etapa de distribuição, em que as latas estão acondicionadas em embalagem secundária, o grau de contaminação das latas mostrou-se muito pequeno, ou seja, 94,4% das amostras analisadas apresentaram contaminação inferior a 50 UFC/cm2; somente uma lata (5,6%) apresentou alta contaminação Os pontos onde ocorre maior contaminação são os ambulantes, tanto da zona urbana como litorânea e os quiosques urbanos, onde a refrigeração das embalagens é alcançada pela conservação em caixas de poliestireno contendo gelo. Esse, por sua vez, não apresentou qualidade compatível com a condição de água potável em nenhuma amostra analisada. Observe-se que, justamente nos casos em que há maior índice de contaminação das latas (em quiosques e ambulantes), é que o consumidor costuma beber direto das mesmas sem fazer qualquer tipo de lavagem antes, bastando ir, por exemplo, a praia, a shows ou eventos para se verificar que tal prática ocorre com freqüência. Ainda de acordo com o estudo supracitado, a lavagem das latas com água corrente reduziu, em média, a contaminação microbiológica em 98,4% e 31,2% de aeróbios mesófilos e de bolores e leveduras, respectivamente; enquanto que a lavagem com detergente doméstico e água corrente reduziu, em média, tal contaminação em 99,8% e 72,0%, respectivamente. Após ser oficiada por esta Procuradoria e cientificada do resultado da pesquisa acima, a ANVISA, através do OFÍCIO-MP Nº 388/2006-GADIP/ANVISA, expressamente reconheceu a necessidade de inclusão da advertência nas embalagens de bebidas orientando a sua lavagem antes do consumo, merecendo destaque o trecho em que esta Agência aprova a divulgação da mensagem nas embalagens de latas de bebidas alertando o consumidor sobre a necessidade de lavar a lata antes do consumo ou não beber diretamente da lata obtida para consumo imediato. 6
Tal entendimento da ANVISA foi confirmado em outras ocasiões, consoante se pode observar no relatório da Comissão de Seguridade Social da Câmara dos Deputados a respeito do Projeto de Lei 7.375/2006 (fl. 129 do PA), onde restou consignado que a ANVISA tem o parecer de que a obrigatoriedade de uma frase de advertência seria uma medida menos restritiva e mais eficaz na prevenção do risco presumido pelo autor do PL, e ainda, em reportagens extraídas da internet a respeito do tema (ora anexadas), merecendo destaque o seguinte trecho de uma delas: É similar ao entendimento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária; "Não existem estudos científicos que comprovem a ocorrência de doenças transmitidas por meio de embalagens de refrigerantes ou cervejas, em especial, a leptospirose." A agência dá duas receitas simples para evitar a transmissão de doenças. Diz aos fornecedores: "Consideramos que as práticas corretas de armazenamento dos alimentos, assim como o Controle Integrado de Pragas, são eficientes para prevenir a contaminação de embalagens." E aos consumidores: "Devese lavar as latas ou garrafas de bebidas como água mineral, refrigerantes e cervejas, antes do consumo." E sobre os projetos de lacre, resume: "Somos de parecer que a obrigatoriedade de uma frase de advertência Lave a lata antes de consumir o produto seria uma medida menos restritiva e mais eficaz na prevenção do risco presumido." (grifo não original). No entanto, apesar de admitir a relevância e eficácia da obrigatoriedade da frase de advertência nas latas e de possuir atribuição para edição de norma neste sentido, a ANVISA, passados aproximadamente cinco anos do início das discussões, não adotou qualquer medida concreta a respeito do tema. Desta forma, foi expedida Recomendação (fls. 168/171 do PA) por este Parquet à ANVISA, nos seguintes termos: 7
RECOMENDA o Ministério Público Federal, com supedâneo no inciso XX do art.6º da Lei Complementar nº 75/93, à ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária que edite ato normativo determinando a obrigatoriedade de inclusão de mensagem nas embalagens de latas de bebidas alertando o consumidor para que lave a lata antes do consumo ou para que não beba diretamente antes de lavá-la. Em resposta, às fls. 183/185 do PA, a ANVISA deixou claro que não acatará a Recomendação, aduzindo, inclusive, que não teria competência para editar tal ato normativo, o qual seria atribuição do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Diante dos fatos narrados, é fácil constatar que a ANVISA, embora admita a importância da inclusão de tal advertência nas latas de bebidas, queda-se inerte em relação à sua função regulatória, impondo graves prejuízos aos consumidores. 5 DIREITO: Inicialmente, cabe destacar que, ao contrário do que alega, a ANVISA tem atribuição para editar ato normativo a respeito do tema, de acordo com os artigos 7º e 8º da Lei 9.782/99, transcritos a seguir: Art. 7º Compete à Agência proceder à implementação e à execução do disposto nos incisos II a VII do art. 2º desta Lei, devendo: (...) III-estabelecer normas, propor, acompanhar e executar as políticas, as diretrizes e as ações de vigilância sanitária; (...) Art. 8º Incumbe à Agência, respeitada a legislação em vigor, regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública. 8
1º Consideram-se bens e produtos submetidos ao controle e fiscalização sanitária pela Agência: (...) II - alimentos, inclusive bebidas, águas envasadas, seus insumos, suas embalagens, aditivos alimentares, limites de contaminantes orgânicos, resíduos de agrotóxicos e de medicamentos veterinários; ( grifos não originais) No mesmo sentido dispõe o art. 3º, 1º, inciso II, de seu Regimento Interno, aprovado pela Portaria nº 354, de 11 de agosto de 2006, segundo o qual compete à ANVISA controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública, estando submetidos ao seu poder de polícia os alimentos, inclusive bebidas, águas envasadas, seus insumos, suas embalagens.... Reforçando o acima exposto, o Ministério da Agricultura informou que é competente apenas para estabelecer os critérios sanitários e de higiene que os estabelecimentos produtores e industrializadores de bebidas deverão atender, de forma que a contaminação externa das embalagens de alimentos ou bebidas é matéria de competência dos órgãos que elaboram normas sobre saúde pública, conforme se pode observar no trecho transcrito a seguir (fl. 63 do PA): Desta forma, o estabelecimento, por parte deste Ministério, de limites de contaminantes orgânicos e inorgânicos estão atrelados a forma de produção e/ou elaboração da bebida. Ou seja, o disciplinamento do nível de contaminação que pode estar sujeito em bem quando disposto ao consumidor final, extrínseco ao produto em si e relativo ao exterior da sua embalagem, não é de competência deste Órgão. O disciplinamento da contaminação externa das embalagens de alimentos é matéria de competência dos órgãos que elaboram normas sobre saúde pública. 9
Comprovada a atribuição da ANVISA para editar norma acerca da questão em exame, cabe demonstrar que a omissão da ré in casu viola diversos diplomas legais. O direito à saúde é um direito social que se encontra consagrado na Constituição Federal, a qual incumbe ao Estado o dever de garanti-lo através de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e por intermédio do exercício de seu poder de polícia, a partir da regulamentação, fiscalização e controle, consoante o disposto nos artigos 196 e 197 da Carta Magna, verbis: Art. 196 - A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Art. 197 - São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao poder público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. Portanto, cabe ao Estado a promoção de políticas e ações que tornem o direito à saúde efetivo, tanto no âmbito individual, quanto no âmbito coletivo. No mesmo sentido, no capítulo em que trata do meio ambiente, a CF destaca a importância da sadia qualidade de vida, a dimensão coletiva deste direito e a obrigatoriedade do controle, pelo poder público, das substâncias que comportem risco para a qualidade de vida: Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. 10
1º. Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: V controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente. Constata-se pela disposição constitucional transcrita que, na perspectiva coletiva, cabe também à sociedade a responsabilidade pela proteção desse direito. Neste sentido, merecem destaque as ponderações feitas por Cançado Trindade acerca da obrigação positiva para resguardar o direito à saúde (in Direitos Humanos e Meio Ambiente, Sérgio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1993, p. 84): Tal obrigação positiva: ligando o direito à vida ao direito a um padrão de vida adequado, é reveladora do fato de que o direito à saúde, em sua dimensão própria e ampla, compartilha a natureza de um direito a um tempo individual e social. Pertencendo, como o direito à vida, ao domínio dos direitos básicos ou fundamentais, o direito à saúde é um direito individual no sentido de que requer a proteção da integridade física e mental do indivíduo e de sua dignidade; e é também um direito social no sentido de que impõe ao estado e à sociedade a responsabilidade coletiva pela proteção da saúde dos cidadãos e pela prevenção e tratamento das doenças. O direito à saúde assim apropriadamente entendido, fornece, como o direito à vida, uma ilustração vívida da indivisibilidade e da interrelação de todos os direitos humanos. A Carta Magna direciona o agir do Estado para a garantia de um patamar mínimo de saúde da coletividade. Não basta que individualmente grupos tenham acesso a serviços e ações de proteção, promoção ou recuperação de saúde. É essencial, para cumprimento da precisão constitucional, que as informações básicas acerca dos produtos consumidos e os impactos de tais produtos sobre a saúde sejam repassadas obrigatoriamente à população. 11
No plano infraconstitucional, o direito à saúde é contemplado pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), tendo em vista que o conceito de saúde abrange também os danos causados ao consumidor. Assim, ao estabelecer a Política Nacional de Relações de Consumo, o CDC evidencia a necessidade de tutelar os direitos do consumidor em suas múltiplas facetas, compreendendo não só os interesses de cunho econômico, mas principalmente os de ordem moral, configurados no respeito à sua dignidade, saúde e segurança, dos quais resultam princípios basilares das relações consumeristas, insculpidos no art. 4º do CDC, in verbis: Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor: a) por iniciativa direta; b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas; c) pela presença do Estado no mercado de consumo; d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho. Ainda a respeito do tema, dispõe o art. 6, incisos I e III, da Lei 8078/90: Art. 6º São direitos básicos do consumidor: I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos; III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem. 12
Também com a finalidade de assegurar a saúde dos consumidores, o artigo 8º determina que os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou à segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito. consumo, estabelece o CDC que: Ainda a respeito do direito à informação sobre os riscos relacionados ao Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores. Dos dispositivos acima transcritos resulta o dever de informar, que aliado ao princípio do dever governamental de proteção da saúde e segurança do consumidor, obriga que o Estado, enquanto sujeito máximo organizador da sociedade, exija que os fabricantes ou fornecedores de produtos ou serviços prestem informações adequadas e realizem advertências aos consumidores, a fim de evitar maiores riscos de doenças e prejuízos à coletividade. No caso em exame, os estudos realizados pelo CETEA (Apenso II do PA) constataram relevante grau de contaminação das latas obtidas junto a quiosques e ambulantes, cabendo transcrever os seguintes trechos das conclusões do estudo (pg. 14): Quando na etapa de distribuição, em que as latas estão acondicionadas em embalagem secundária, o grau de contaminação das latas mostrou-se muito pequeno, ou seja, 13
94,4% das amostras analisadas apresentaram contaminação inferior a 50 UFC/cm2; somente uma lata (5,6%) apresentou alta contaminação Os pontos onde ocorre maior contaminação são os ambulantes, tanto da zona urbana como litorânea e os quiosques urbanos, onde a refrigeração das embalagens é alcançada pela conservação em caixas de poliestireno contendo gelo. Esse, por sua vez, não apresentou qualidade compatível com a condição de água potável em nenhuma amostra analisada. Ainda de acordo com tal estudo supracitado, a lavagem das latas com água corrente reduziu, em média, a contaminação microbiológica em 98,4% e 31,2% de aeróbios mesófilos e de bolores e leveduras, respectivamente; enquanto que a lavagem com detergente doméstico e água corrente reduziu, em média, tal contaminação em 99,8% e 72,0%, respectivamente. Sabendo-se que justamente nos casos em que há maior índice de contaminação das latas (em quiosques e ambulantes) é que o consumidor costuma beber direto das mesmas sem fazer qualquer tipo de lavagem antes, bastando ir, por exemplo, a praia, a shows ou eventos para se verificar que tal prática ocorre com freqüência, e tendo em vista a relevante redução da contaminação através da simples lavagem com água, constata-se que a inclusão de frase de advertência, aconselhando o consumidor a lavar a lata antes do consumo, é uma medida simples e efetiva que, através da conscientização, reduzirá a exposição dos consumidores à contaminação desta embalagens, reduzindo consideravelmente os riscos à saúde dos mesmos. 14
Trata-se de uma medida de saúde preventiva, que, pela simplicidade e por não representar qualquer custo ao Estado e até mesmo aos fabricantes, deveria ser priorizada e determinada pelo Estado, in casu, a ANVISA. Como já mencionado nesta peça, a própria ré reconheceu, por diversas vezes, a importância de se incluir tal advertência nas embalagens de bebidas (vide fl. 32 do PA), destacando-se o seguinte trecho constante do documento acostado à fl. 129 do PA: a ANVISA tem o parecer de que a obrigatoriedade de uma frase de advertência seria uma medida menos restritiva e mais eficaz na prevenção do risco presumido pelo autor do PL. Pois bem, mesmo concordando com a medida proposta e tendo atribuição para implementá-la, a ANVISA permanece omissa, utilizado frágeis argumentos para não editar norma acerca do tema, como, por exemplo, suposta falta de competência e a existência de Projeto de Lei acerca do tema. No tocante ao fato de já haver Projeto de Lei tramitando no Congresso Nacional, o qual demonstra a preocupação da sociedade com o tema, este não afasta a atribuição da Agência no caso em exame. Pelo contrário, a obrigatoriedade de inclusão de frase de advertência nas latas de bebidas é medida que pode ser implementada através de simples ato normativo da ANVISA, visto que inserido em seu poder de polícia, conforme já demonstrado nesta peça. Logo, a existência de projeto de lei é apenas a demonstração de que a ANVISA está se omitindo na proteção da saúde da população, exigindo que o Congresso Nacional aprecie a adoção de medidas que já deveriam ter sido determinadas pela Agência Reguladora. 15
Assim sendo, urge que seja reconhecido o risco à saúde decorrente do consumo direto de bebidas em latas contaminadas, determinando-se que a ANVISA edite norma determinando que os fabricantes de bebidas incluam nas latas de bebidas uma frase de advertência, aconselhando os consumidores a lavá-las antes de consumir o produto. 6 DA INVERSÃO ÔNUS DA PROVA: Cabe na presente ação a inversão do ônus da prova, o que fica desde já requerido, nos termos do artigo 6º, VIII, do CDC, que dispõe: Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...) VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do Juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências. Neste sentido destaque-se a seguinte lição: A inversão pode ocorrer em duas situações distintas: a) quando o consumidor for hipossuficiente; b) quando for verossímil sua alegação. As hipóteses são alternativas, como claramente indica a conjunção ou expressa na norma ora comentada. A hipossuficiência respeita tanto à dificuldade econômica quanto à técnica do consumidor em poder desincumbir-se do ônus de provar os fatos constitutivos de seu direito. 2 : No presente caso, a documentação ora acostada é plenamente apta a demonstrar a verossimilhança das alegações aqui expendidas. Além disso, a análise da matéria revela a hipossuficiência técnica dos consumidores e do próprio Parquet em relação à ANVISA, a qual pode obter, com muito mais facilidade, todas as provas e dados técnicos referentes ao caso em exame. 2 NERY JUNIOR, Nelson. Código de Processo Civil Comentado, 6ª ed., São Paulo, RT, p.1658. 16
7 S PEDIS: Ante todo o exposto, requer o Ministério Público Federal: a) a citação da ré para, querendo, contestar a presente ação; b) seja julgada procedente a presente ação, a fim de condenar a ANVISA a editar ato normativo determinando que, nas latas de bebidas, conste, de forma claramente visível e destacada, a advertência ao consumidor para que lave a lata antes do consumo ou para que não beba diretamente antes de lavá-la; c) a condenação da ré ao pagamento das custas judiciais e honorários advocatícios, a ser revertido ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos (arts. 13 da Lei nº 7.347/85, 99/100 do CDC e Lei nº 9.008/97). Requer ainda seja considerada sigiloso o Apenso II do PA 1.30.012.000239/2005-79 ora anexado, referente ao estudo a respeito da contaminação microbiológica em embalagens de bebidas, tendo em vista o informado à fl. 08 do referido procedimento, cabendo ressaltar que o sigilo deve ser restrito ao teor do referido Apenso, não se aplicando ao restante dos autos. Por fim, protesta o Ministério Público Federal pela produção de qualquer meio de prova em direito admitido, especialmente documental, testemunhal e pericial. 17
Segue em anexo à presente o original do Procedimento Administrativo MPF/PR/RJ 1.30.012.000239/2005-79, incluindo os Apensos I e II. Dá-se à causa o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Rio de Janeiro, 30 de julho de 2009. CLAUDIO GHEVENTER Procurador da República 18