BuscaLegis.ccj.ufsc.br Cédula de Crédito Bancário Theóphilo de Azeredo Santos* 1. - A base da proposta de sua criação foram os estudos realizados pela CNF - Confederação Nacional das Instituições Financeiras, sob a coordenação do jurista GABRIEL JORGE FERREIRA, Vice-Presidente dessa entidade e integrante da FEBRABAN - Federação Brasileira das Associações de Bancos e principal autor do Anteprojeto apresentado ao Governo Federal. 2. - O mercado cedo percebeu que lhe faltava melhor instrumento jurídico que modelasse suas variadas atividades creditícias com segurança, preservando a rentabilidade e a liquidez. Importante era, também, eliminar ou reduzir fortemente os conflitos banco-cliente, que geravam o alongamento excessivo da inadimplência, em grande parte decorrentes de discussões judiciais nos tribunais. 3. - Também era necessária, em economia duramente competitiva, perseguir a redução dos custos operacionais, notadamente quando a estabilidade sustentável da moeda exige a redução dos encargos financeiros que oneram a produção, já excessivamente tributada. 4. - Daí a criação de Comissão constituída sob a supervisão do Dr. Gabriel Jorge Ferreira, composta pelo Dr. Paulo Martins de Carvalho - juiz aposentado de Vara de Família de São Paulo, Dr. Silvânio Covas - Presidente da Comissão Jurídica da Febraban, Dr. Sílvio Cunha Filho e, mais tarde pela Dra. Maria Elisabete Villa Lopes - Diretora Jurídica do Banco Itaú, a quem coube o trabalho de ordenamento final do texto que deu forma à Medida Provisória sugerida pelo Ministro da Fazenda Pedro Sampaio Malan, ao Sr. Presidente da República, que a editou sob o nº 1.925, em 14 de outubro de 1999. 5. - Merece encômios a proposta da CNF, redigida com precisão e clareza, afastando os conflitos de demandas que desgastavam o relacionamento banco-cliente e - é preciso frisar - contribuíam para deformar a imagem do sistema bancário, e abrigando quase todas as operações praticadas. 6. - Nasceu, então, um novo título de crédito, que certamente substituirá a Nota Promissória, na quase totalidade dos casos, representando promessa de pagamento em dinheiro. Já está em vigor esse título, que possui as características do formalismo (cabe a lei identificar seus requisitos essenciais e obrigatórios), literalidade (no sentido de que, para a determinação da existência, conteúdo e modalidades do direito, é decisivo exclusivamente o teor do título), autonomia (significa a independência dos diversos e sucessivos possuidores do título em relação a cada um dos outros), cartularidade (os direitos do titular estão declarados no título, que só será exigível no seu vencimento e com a sua apresentação). Foi, assim, acolhido o conceito de CESARE VIVANTE, agasalhado pelo Projeto de
Código de Obrigações de 1965, cuja Comissão Revisora foi presidida pelo Ministro Orosimbo Nonato, sendo dela integrantes Caio Mário da Silva Pereira - Relator Geral, Nehemias Gueiros, Orlando Gomes, Sylvio Marcondes e Theophilo de Azeredo Santos, cujo art. 899 dispõe: "O título de crédito, documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produzirá efeitos quando atendidos os requisitos da lei". 7. - A CCB, necessariamente lastreada em uma operação de crédito (esta é a sua causa debendi) é, assim, um título causal. Embora possa provir de um variado universo de financiamentos, o débito estará inequivocamente declarado nesse documento. Quem será, sempre, o emitente? O devedor, que pode ser pessoa física ou jurídica, a favor de instituição financeira ou entidade a ela equiparada, mas o credor também deve assiná-la ( 2º do art. 4º). Quais as instituições que podem ser as beneficiárias? Os Bancos Comerciais, os Bancos Múltiplos, os Bancos de Investimento, as Sociedades de Crédito, Financiamento e Investimentos, as Sociedades de Crédito Imobiliário, as Cooperativas de Crédito, os Bancos Cooperativos, as Companhias Hipotecárias, as Associações de poupança e Empréstimo, os Bancos de Desenvolvimento, as Caixas Econômicas, o Banco do Brasil, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, o Banco do Nordeste e o Banco da Amazônia, sendo os seis últimos instituições financeiras públicas. E as empresas de "leasing"? A Resolução nº 2.309, de 28 de agosto de 1996, do Banco Central do Brasil, indica, no parágrafo único do art. 1º, que as operações de arrendamento mercantil podem ser dos tipos financeiro e operacional, e o art. 4º dispõe que a elas se aplicam, no que couber, as mesmas condições estabelecidas para o funcionamento de instituições financeiras na Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964 e a legislação posterior relativa ao Sistema Financeiro Nacional. Entretanto, o Chefe do Departamento Jurídico do Banco Central do Brasil, Prof. Flávio Maia e o Diretor Jurídico do Banco Bozano, Simonsen - Dr. Luiz Fernando de Freitas Santos consideram que tais empresas não foram legalmente equiparadas às instituições financeiras e, assim, não poderão ser as favorecidas (manifestações no Seminário organizado pela Universidade Estácio de Sá, em parceria com o Sindicato e a Associação de Bancos no Estado do Rio de Janeiro, no dia 08 de novembro de 1999). 8. - As empresas emissoras de cartões de crédito podem ser credoras de CCB? Elas não são consideradas instituições financeiras, embora acórdãos as identifiquem como financeiras algumas operações que realizam com seus clientes. Já está no Congresso Nacional Projeto de Lei que as qualificam como tal. 9. - Esse título pode ser emitido em favor de instituição financeira domiciliada no exterior e, nesse caso, estará expresso em moeda estrangeira ( 2º, do art. 4º). Mas o real não tem curso forçado? Não será descumprido o art. 2º, inciso I, do Decreto-Lei nº 857, de 11 de setembro de 1969, que declara serem "nulos de pleno direito os contratos, títulos e quaisquer documentos, bem como as obrigações que, exeqüíveis no Brasil, estipulem pagamento em ouro, em moeda estrangeira, ou, por alguma forma, restrinjam ou recusem, nos seus efeitos, o curso legal do cruzeiro" (hoje, Real), pois o credor é instituição financeira com sede no exterior. É, também, o que sucede com os financiamentos captados com base na Resolução 63 e na Lei nº 4.131).
10. - A CCB oferece relevante vantagem: poderá ser emitida com ou sem garantias reais ou fidejussórias, isto é, o documento contém GARANTIA CEDULAR, alcançando as diversas garantias pessoais. O terceiro prestador da garantia ou seu respectivo mandatário deverá também firmar o título. As garantias hipotecárias, pignoratícia, caucionária, de alienação fiduciária, devem recair sobre bem disponível e alienável, móvel, imóvel, material, imaterial, consumível ou não, cuja titularidade pertença ao próprio emitente ou a terceiro garantidor da obrigação principal (art. 6º). O penhor de direito constitui-se pela mera notificação ao devedor do direito empenhado, mas a garantia poderá estar na própria cédula ou em documento apartado, caso em que a ele a cédula fará referência expressa. A garantia abrange não somente o bem principal, mas, ainda, seus acessórios, benfeitorias de qualquer espécie, valorizações a qualquer título, frutos e qualquer bem vinculado ao principal por acessão física, intelectual, industrial ou natural e, em conseqüência, também as benfeitorias supervenientes. Até a efetiva liquidação da obrigação garantida, ad cautelam, a lei determina que os bens não poderão ser alterados, retirados, deslocados ou destruídos, nem poderão ter sua destinação modificada, exceto quando a garantia for constituída por semoventes ou veículos e a remoção ou deslocamento for inerente a atividade do emitente da CCB. Por razões práticas, os bens constitutivos de garantia pignoratícia ou objeto de alienação fiduciária poderão, a critério do credor, permanecer sob a posse direta do emitente ou do terceiro prestador de garantia, nos termos da cláusula de constituto possessório, caso em que as partes deverão especificar o local em que o bem será guardado e conservado até a efetiva liquidação da obrigação garantida. A lei, no artigo 11, ao tratar da averbação da garantia, apenas se refere a veículos automotores, quando, para valer erga omnes, deveria mencionar os demais registros oficiais. Poderá o credor exigir que o bem constitutivo da garantia seja coberto por seguro, até a efetiva liquidação da obrigação garantida? Sim, a lei o autoriza, bem como poderá ser indicado como beneficiário exclusivo da apólice e a receber a indenização, mas até o montante necessário para liquidar ou amortizar o débito. Também se faculta ao credor, em ambos os casos, exigir a substituição da garantia, ou o seu reforço, renunciando ao direito à percepção da indenização (arts. 12 e 13). 11. - A lei consagrou a Cédula como título executivo extrajudicial e represente dívida em dinheiro certa, líquida e exigível, seja pela soma nela indicada, seja pelo saldo devedor nela identificado inequivocamente (art. 3º). Como se pode facilmente verificar, rodeou-se o título de cuidados especiais, com o escopo de conferir-lhe liquidez e certeza, elidindo as dúvidas sobre o saldo devedor, não apenas pelo reconhecimento legal da legitimidade dos extratos da conta-corrente ou planilhas de cálculo da dívida, mas, ainda, pelas minudentes exigências para a determinação dos cálculos dos débitos. Ei-las: os cálculos deverão evidenciar, de modo claro, preciso e de fácil entendimento e compreensão, o valor principal da dívida, seus encargos e despesas contratuais devidos, a parcela de juros e os critérios de sua incidência, a parcela de atualização monetária ou cambial, a parcela corresponde a multas e demais penalidades contratuais, as despesas de cobrança de honorários advocatícios devidos até a data do cálculo e, por fim, o valor total da dívida (art. 3º, 2º, inciso I).
Já a CCB representativa de dívida oriunda de contrato de abertura de crédito bancário em conta-corrente será emitida pelo valor total do crédito posto à disposição do emitente, competindo ao credor discriminar nos extratos da conta-corrente ou nas planilhas de cálculo, que serão anexados à cédula, as parcelas utilizadas do crédito aberto, os aumentos do limite do crédito inicialmente concedido, as eventuais amortizações da dívida e a incidência dos encargos nos vários períodos de utilização do crédito aberto (art. 4º, 2º, inciso II). Procura o legislador que a Cédula seja auto-suficiente como documento de legitimação e prova dos direitos cambiários, evitando, assim, as decisões judiciais negativas, como registra recente acórdão, com esta ementa: "Mesmo subscrito por quem é indicado em débito e assinado por duas testemunhas, o contrato de abertura de crédito não é título executivo, ainda que a execução seja instruída com extrato e que os lançamentos fiquem devidamente esclarecidos, com explicitação dos cálculos, dos índices e dos critérios adotados para a definição do débito, pois esses são documentos unilaterais de cuja formação não participou o eventual devedor" (STJ, 2ª Seção, Embargos de Divergência no Recurso Especial nº 108259/RS, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, de 20/09/99). Como já dissemos anteriormente, a CCB será assinada pelo devedor e credor, a fim de espancar qualquer dúvida sobre a legitimidade do crédito apresentado pela instituição financeira. 12. - Ao permitir que a CCB seja emitida em tantas vias quantas forem as partes que nele intervierem, assinadas pelo credor e pelo terceiro garantidor, se houver, ou por seus respectivos mandatários, com poderes especiais, a lei só admite a negociabilidade da via do credor, sendo as demais negociáveis, e obrigatório constar das outras vias a expressão "não negociável". 13. - A lei contempla duas formas de transferência da Cédula: o endosso e a cessão. No último caso, o cessionário poderá não ser instituição financeira ou entidade a ele equiparada, certamente para facilitar as operações com recebíveis. Mas quais as diferenças práticas entre o endosso e a cessão? Observe-se que a Cédula poderá não conter a Cláusula à ordem, quando só poderá ocorrer a mudança da propriedade do título pelo contrato de cessão. Distinguem-se da seguinte forma: a) a cessão é, sempre, contrato bilateral, quando o endosso representa ato unilateral; b) a cessão pode revestir qualquer forma, mas o endosso é ato formal; c) a cessão só transfere um direito derivado - o direito do cedente ao cessionário -, enquanto o endossador transfere ao endossatário o título, com os direitos nele declarados, imune às exceções que, na pessoa do antecessor, poderá paralisar a promessa nele contida. 14. - Quando o protesto será obrigatório? Nunca: trata-se de impropriedade jurídica, pois ele é necessário ao exercício do direito de ação contra os coobrigados. Em redação infeliz, a Medida Provisória dispensa o protesto, que, assim, não é condição para assegurar o direito contra "endossantes, avalistas e terceiros garantidores", quando quer se referir aos avalistas dos endossantes, uma vez que os avalistas dos aceitantes podem ser executados imediatamente, independentemente do protesto, pois são obrigados diretos. É permitido o protesto da Cédula por intermédio de cópia não negociável, mediante
certificação pelo credor de estar de posse de sua via original, inexistindo proibição no sentido de levar-se a cartório a fita magnética relativa às cédulas emitidas. 15. - A MP permite a cobrança de juros sobre a dívida, capitalizados ou não, os critérios de sua incidência e, se for o caso, a periodicidade de sua capitalização, bem como as despesas e os demais encargos decorrentes da obrigação (art. 3, 1, inciso I). Concretizou-se a revogação do anatocismo, abolido pelo Decreto n 22.626, de 1933, mas somente em relação às instituições financeiras, não lhes sendo mais aplicável a Súmula n 121: "É vedada a capitalização de juros sobre juros, ainda que expressamente convencionada". O Superior Tribunal de Justiça, na Súmula n 93, reconheceu que "a legislação sobre crédito rural, comercial e industrial admite o pacto de capitalização de juros". Segundo informação prestada ao jornal "O Globo" - até hoje não desmentida -, o Professor Célio Borja, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, esclarece que falta a regulamentação do art. 192, da Constituição Federal, que limitou os juros a 12% ano. E "os Bancos cobram juros acima do permitido pela Constituição com base numa antiga jurisprudência do Supremo que permite que os juros sejam arbitrados pelos Bancos. Mas isso não se traduz em liberação para cobrança de juros sobre juros, quando as taxas crescem exponencialmente". E conclui: "A medida do Governo pode se voltar contra o principal objetivo das mudanças: a queda da inadimplência. A permissão da cobrança de juros sobre juros tornará a dívida impagável". Inexiste dúvida de que lei federal poderá alterar outra lei federal e forçoso é reconhecer que o art. 192 ainda não está em vigor, sendo provavelmente alterado pelo Congresso Nacional, uma vez que a matéria relativa a juros não deve constar da Carta Magna, mas de lei ordinária. Há argumento fatual: os Bancos pagam juros sobre juros, por que não pode cobrá-los dos seus devedores, que se utilizaram de recursos captados no mercado, sendo o seu lucro o "spread", isto é, a diferença entre o custo do dinheiro captado e o de sua aplicação. A Lei da Usura, de 1933 - fora da atual realidade -, há muito decidiu o Supremo Tribunal Federal, não se aplica às instituições financeiras e o art. 192, da Constituição Federal, estabelece restrição desconhecida em todas as constituições modernas. 16. - Considerada a mais inovadora disposição, foi possibilitada a emissão de ""Certificados de Cédulas de Crédito bancário" - CCB (sigla igual à da Cédula), que repousam em Cédulas efetivamente mantidas em custódia, para negociar esses créditos no mercado nacional ou internacional, com pessoas integrantes ou não do Sistema Financeiro Nacional. O emitente será, sempre, uma instituição financeira, mas a Lei esqueceu-se de atribuir-lhe a natureza jurídica de título de crédito, embora admita a sua transferência mediante endosso ( próprio dos títulos à ordem) ou a termo de cessão, se escritural (art. 19, 5 ). Já a Exposição de Motivos, na mesma data da Medida Provisória, logo no início, ao explicar os documentos, diz: "Tratam-se de títulos de crédito". Ao terminar, ela esclarece que a criação desses Certificados "inspirou-se nos certificados de depósito de títulos e valores mobiliários em garantia, tratados nos arts. 30 e 31 da Lei n 4.728, de 14 de julho de 1965". Houve equívoco, pois o art. 30 trata do "Certificado de Depósito Bancário" - CDB e, o art. 31, dos "Certificados de Depósitos em Garantia". Foi a Resolução n 18 que acrescentou a expressão "valores mobiliários". O CDB - Título de Crédito - pode ser endossado (art. 30, 2 ), ao passo que a lei é silente
quanto à transferência do outro título (art. 31). 17. - A MP é auto-aplicável e não está na dependência de qualquer ato normativo oficial, mas espera-se que o Banco Central do Brasil aprove o "layout" da CCB e divulgue normas apenas para uniformizar a aplicação do novo título, mas sem alterar o texto legal, uma vez que a competência para fazê-lo é, exclusivamente, do Congresso Nacional * Professor do Mestrado em Direito da UNESA Professor Titular da UERJ Disponível em: http://www.estacio.br/graduacao/direito/revista/revista2/artigo2.htm Acesso em: 11 de agosto de 2007