PNV 330 Família As alternativas de Jesus e do evangelho de Marcos Pe. Evaristo Villar Nancy Cardoso Pereira São Leopoldo/RS 2015
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Sumário Introdução... 5 Jesus e sua família nos evangelhos: Uma relação conflituosa e de superação... 8 1 O conflito na família de Jesus... 8 2 Apontando diretamente às causas... 11 3 A alternativa de Jesus ou a família Dei... 13 Aproximação à Alternativa de Jesus segundo o Evangelho de Marcos. 15 Novos modos de ser família no Evangelho de Marcos... 22 1 Primo não é parente?... 22 2 Pescadores que são irmãos? Irmãos que são pescadores?... 24 3 A sogra de Pedro é mãe de quem?... 25 4 Discípulos: filhos de... irmãos de... (Marcos 3, 14-19)... 26 5 A família de Jesus (Marcos 3, 31-35)... 27 6 Não é este o filho de Maria? (Marcos 6, 1-6)... 28 7 Nenhum pai (Marcos 10, 23-31)... 29 Sobre o Evangelho de Marcos: algumas informações... 30 Data, local e comunidade onde surgiu... 30 Marcos e os outros Evangelhos... 31 Novos modos de ser gente, família e sociedade... 32 A Boa Nova do Reino se encarna numa convivência humana... 34 Oração e Liturgia por todos os modos de ser família... 36 PNV 330 3
Introdução Pensar a família a partir da Páscoa! Pensar a sociedade a partir dos pés e das mãos! Eis a proposta do Pe. Evaristo Villar, que vive na Espanha com as comunidades eclesiais de base e é ativo nos movimentos sociais por justiça e fraternidade. Villar encontra nos relatos da paixão, morte e ressurreição de Jesus uma família também ressurgida e reinventada a partir do enfrentamento dos poderes que levaram para a cruz. A família ampliada na forma das comunidades que acolhem e se oferecem como núcleos amorosos de conviver: ser igreja. A família de antes da Páscoa não pode ser idealizada nem tomada como modelo porque vai ser apresentada em meio a conflitos e incompreensão sobre a proposta de Jesus e sua vivência da missão: o que mais profundamente vincula os seres humanos não é a origem, mas a participação no mesmo projeto. É o projeto de fraternidade e de radical solidariedade que cria as condições para a comunidade de iguais e, também, a família de Jesus vai fazer este caminho: superar a família patriarcal (fechada, excludente e possessiva) baseada na propriedade de bens e pessoas, e afirmar novas PNV 330 5
subjetividades e modos de convivência de autonomia e igualdade (abertos, inclusivos e de gratuidade). Não há um modelo de família nos evangelhos para ser seguido hoje, mas um desafio de fazer novas todas as coisas incluindo as nossas relações familiares. É um desafio de inclusão e amor. Este volume da série A Palavra na Vida quer ser uma oportunidade de estudo e conversa sobre a família que somos e a família que podemos ser. O segundo texto amplia esta discussão para uma visão radical da proposta de Jesus: uma sociedade alternativa e possível que surge da vida, práxis e mensagem do Evangelho. Para isso, vamos nos dedicar aos movimentos dos pés e às práticas subversivas das mãos que anunciam, antecipam e realizam o Reino de Deus. Estas duas questões família e sociedade estão articuladas e precisam ser enfrentadas nas formas de organizar o poder, o acesso aos bens e os modos de partilha. A partir das reflexões feitas na primeira parte deste livro e dos desafios apresentados pelo Pe. Evaristo Villar, apresentamos alguns roteiros de leitura bíblica em comunidade. Vamos apontar alguns textos e fazer a pergunta por esta presença ausente: De que maneira as relações familiares são apresentadas? Qual o papel/lugar dessas relações no desenvolvimento das narrativas do Evangelho? Estes são desafios pra nós no Brasil e na Espanha. Obrigada, Pe. Villar. Perguntas que animam este caderno: a) Que desafios e problemas sobre a família estão presentes em nossa realidade? b) De que maneira a Bíblia vem sendo utilizada nos debates sobre família? 6 PNV 330
c) Como a leitura popular da Bíblia pode iluminar aspectos importantes sobre o tema que não são considerados? d) O debate sobre família é também o debate sobre a sociedade que temos e a sociedade que queremos ser: Como a reflexão apresentada aqui pode nos ajudar a responder, de forma crítica e criativa, a estes desafios? Nancy Cardoso Pereira PNV 330 7
Jesus e sua família nos evangelhos: Uma relação conflituosa e de superação Evaristo Villar Em geral, na cultura e na espiritualidade cristã domina o monolitismo referente à família. Fala-se da família cristã como instituição unívoca que prolonga a família modelo de Jesus. Mas, à luz da exegese, a família de Jesus foi realmente exemplar? 1 O conflito na família de Jesus Entre a singularidade do trabalho que fez e a baixa estima de seus conterrâneos devido a sua origem humilde, os três evangelhos sinópticos revelam a família nuclear de Jesus: não é esse o carpinteiro (Mt 13, 55 diz o filho do carpinteiro, e Lc 4, 22 do filho de José ), o filho de Maria e irmão de Tiago e José, de Judas e Simão? E suas irmãs não moram aqui conosco?, (Mc 6, 3) 1. 1 Não vou tratar neste trabalho sobre o tema da filiação de Jesus, da qual seus amigos não parecem duvidar, nem do significado preciso do termo irmãos nos evangelhos canônicos. Para o propósito que quero seguir, basta o conceito genérico de família. Para uma maior exatidão ler Cf. Antonio Piñeiro, Guía para entender o novo testamento, Trotta, 2006, p. 174ss. 8 PNV 330
Como testemunha Lucas, no livro de Atos 1,14, parte desta família se encontra na nascente Igreja pós-páscoa. Tiago, a quem se conhece como irmão do Senhor (Gl 1,9), presidiu a Igreja mãe em Jerusalém (At 15,13) e conjuntamente a Pedro e João, deu a mão a Paulo e Barnabé quando tiveram que acudir a Jerusalém para dar conta da sua pregação dentre os pagãos (Gl 2,9). Esse dado permanece também durante o século II na tradição extracanônica 2. Mas, contrariamente a essa aparente harmonia familiar, os evangelhos sinópticos, mais próximos ao tempo real de Jesus, oferecem algumas notícias sobre o comportamento da família de Jesus antes da Páscoa. E não são precisamente apologéticas. Refletem grandes tensões entre Jesus e seus familiares. Uma relação nada cúmplice que vai desde o ceticismo que reflete o evangelho de João ( na verdade, nem mesmo os irmãos de Jesus acreditavam nele, Jo 7,5) até o conflito, como será visto em seguida. O modo estranho com que Jesus se comportava acaba por romper com a harmonia da família, a qual chega a pensar que ele padece de transtorno mental. E, para salvar perante o povo a sua reputação, a família se sente na obrigação de confiná-lo. A passagem que conta Marcos (Mc 3,21-31), seguido de Mateus e Lucas, é paradigmática. Jesus está na casa de Pedro e uma multidão descontente com o sistema (não podiam nem comer) se agrupa em volta dele. Mas, quando souberam disso, os parentes de Jesus foram segurá-lo, porque eles mesmos estavam dizendo que Jesus havia ficado louco. A fama da família, em especial de Maria, sua mãe, está subentendida. O filho sensato, como rezava o refrão popular, é alegria do pai, mas o filho insensato entristece a mãe (Pr 10,1). Em uma sociedade agrária como aquela, o reconhecimento da mãe está no número e no valor de seus 2 Cf. O evangelho segundo Tomás, chamado o quinto evangelho 12, no Aurelio de Santos Otero, Los Evangelios Apocrifos, BAC, 1988, p. 691; e o fragmento 6 do Evangelho dos Hebreus sistematizado por Antonio Pinheiro em Todos los evangelios, Edaf, 2009, p. 622. PNV 330 9
filhos varões. No entanto, o fracasso destes traz também o fracasso da mãe. Por essa razão tem vindo a mãe de Jesus e seus irmãos para levar ele de volta à harmonia familiar. Entre a multidão, sentada em semicírculos aos pés de Jesus, alguém fala pra ele: Tua mãe e teus irmãos estão-te procurando lá fora. Nem mesmo entram para não serem cúmplices de seus delírios. Jesus reage com uma pergunta: Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? Com isto, fica claro que não é a origem e sim a participação no mesmo projeto o que mais profundamente vincula os seres humanos. Minha mãe e meus irmãos são aqueles que se põem a caminho para fazer o que Deus almeja. A participação no Reino de Deus, ele aponta, não se fundamenta tanto no sangue ou na carne, representados na figura da mãe, quanto no projeto de fraternidade que constitui as pessoas por igual em irmãs e irmãos. Reforçando a passagem emblemática da casa de Pedro porém agora sem a presença dos familiares diretos encontra-se a narrativa exclusiva em Lucas em 11, 27-28. Para o povo cristão é notório que a tradição judaica não suporta de bom grado a transformação física e mental do povo que segue e escuta os discursos de Jesus. O poder oficial acusa Jesus de profano pelas curas que pratica e, ao mesmo tempo, exige dele sinais do céu para acreditar na origem divina de seus poderes. Uma mulher, que é sua seguidora e conhece perfeitamente o bem-estar e a esperança que ele espalha nas multidões, grita olhando a Jesus: feliz o ventre que te carregou e os seios que te amamentaram. Jesus não desmentiu essa mulher, mas deixa claro que a felicidade dessa mãe afortunada não provém da vinculação natural com ele e sim da fidelidade de ambos no projeto global de Deus: Mais felizes são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática. 10 PNV 330