INTRODUÇÃO Em Julho de 2006, um grupo de antropólogos da Universidade de Coimbra decidiu abrir o túmulo de D. Afonso Henriques. O objectivo era, através de recolhas de ADN, análises químicas e toxicológicas, TAC e testes por radiocarbono, saber mais sobre a constituição física e a história do primeiro rei de Portugal. No último momento, porém, a abertura do túmulo foi cancelada pelo Governo. Razão oficial: os investigadores não tinham obtido as necessárias autorizações. Seguiu-se um coro de queixas, acusações, declarações contraditórias, explicações confusas. Durante algumas semanas, os jornais publicaram editoriais, artigos de opinião, dossiers sobre reis, cientistas e túmulos. Depois o assunto morreu. Como se tivesse sido encerrado no próprio túmulo do rei, que não chegou a ser exumado. Tudo isto era muito estranho e eu decidi investigar. Entrevistei historiadores, arqueólogos e antropólogos, visitei arquivos e bibliotecas e o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, onde se encontra a sepultura. O que descobri foi surpreendente, embora não o possa revelar na totalidade. Fá-lo-ei quando tiver concluído a investigação e reunido todas as provas. Para já, posso adiantar que dentro do grande túmulo de pedra existem duas urnas de madeira. Uma contém a ossada do rei. Quanto à outra, guardou em tempos os restos mortais de Mafalda, esposa de Afonso Henriques. Mas já não. Em algum momento, entre o século XV e o século XXI, o conteúdo da pequena caixa foi substituído. 9
Apesar das notícias oficiais, uma investigadora chegou a abrir o túmulo. Contudo, a sua descoberta lançou tal pânico nas autoridades políticas, científicas e religiosas, que toda a operação foi interrompida. Dentro da carcomida urna não havia ossos mas papéis. E antes que fossem confiscados pela polícia ou pelo instituto governamental do património arquitectónico, a cientista tomou uma estranha decisão: entregou à minha guarda todos os manuscritos que encontrou no túmulo. Ignoro porque o fez, ou porque confiou em mim. Antes nunca tivesse tido essa ideia. A responsabilidade que deixou nas minhas mãos é mais pesada do que me sentia capaz de suportar. Mas a partir do momento em que me achei na posse dos manuscritos, não tive escolha. Comecei a trabalhar. Era preciso descobrir tudo sobre aqueles livros: o que dizem, quem os escreveu e quando e como foram ali parar, em que época e pela mão de quem. Trata-se de uma dezena de livros, da autoria de um português, nascido na zona de Coimbra no início da década de 1120, chamado Raul Santo-Varão. Isto é certo. Tudo o resto é ainda um mistério. Há no entanto indícios de que os manuscritos, ou parte deles, terão sido entregues, ainda no século XII, a D. Teotónio, fundador e prior do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, que os terá passado a um sucessor de confiança, e este a um outro e assim sucessivamente. Alguns documentos sugerem que, no século XIII, os livros de Raul Santo-Varão tenham estado na posse de Fernando Martins de Bulhões, mais tarde conhecido como Santo António de Lisboa, ou de Pádua, que foi estudante em Santa Cruz. Uma análise atenta de outros textos, entre os quais os «Lusíadas», abre a possibilidade de o próprio Luís de Camões, no século XVI, ter sido o fiel depositário dos escritos de Santo-Varão. Pode datar dessa época, aliás, a sua transferência para o túmulo de Afonso Henriques, quando as suas ossadas foram trasladadas para a capela-mor do mosteiro, onde hoje se encontram. Nada disto é fácil de provar, e ainda menos de explicar. Mas tudo indica que D. Teotónio criou uma corrente, que atravessou a História, para garantir a sobrevivência dos manuscritos daquele que foi seu amigo e aliado. Na origem dessa espécie de pacto, parece estar um compromisso com certas ideias revolucionárias que na altura surgiram 10
na Europa, e a solidariedade com alguns cristãos portugueses que nasceram e viveram nas regiões ocupadas pelos muçulmanos. Mas quem e porquê e como, ainda não sei explicar. Sabe-se que a Europa era atravessada por uma onda de fundamentalismo cristão. No tempo em que decorre a acção do manuscrito que publicamos, tinha ocorrido a primeira cruzada ao Oriente e estava a começar a segunda. Depois do apelo do papa Urbano II, em 1095, para que os cristãos corressem a libertar Jerusalém das mãos dos muçulmanos, foi a vez de Eugénio III, coadjuvado pelo Abade Bernardo de Claraval, solicitar uma segunda corrida à Terra Santa. Estávamos no ano de 1147, o mesmo em que D. Afonso Henriques, depois de conquistar Santarém aos Mouros, decidiu fazer uma segunda tentativa de tomar Lisboa. Bernardo de Claraval era o líder mundial desse movimento fundamentalista. Andava pela Europa a pregar que fazer a guerra contra os infiéis era garantia de salvação da alma, mesmo dos criminosos e corruptos. E também que a palavra de Deus deveria ser aceite sem questões ou discussões, e que essa palavra era legitimamente veiculada pelos representantes da Igreja. Esta ideologia altamente conservadora, que levou à criação da ordem de Cister, em 1090, e depois à dos Templários, insurgia-se contra um racionalismo embrionário que surgia na Europa através de pensadores como Pedro Abelardo. Estas ordens instalaram-se em Portugal no tempo de D. Afonso Henriques, que adoptou este fundamentalismo como religião para o novo reino. Em troca, Bernardo de Claraval convenceu os cruzados a ajudarem na conquista de Lisboa e o papa a reconhecer a independência de Portugal. Sabe-se também que esta ideologia, como lhe chamaríamos hoje, levou, durante a Reconquista, a uma política de extermínio não só de todas as populações muçulmanas, mas também das cristãs que viviam sob o domínio muçulmano. Os moçárabes, como se designavam estes cristãos, tinham misturado elementos culturais e religiosos islâmicos à sua base cristã. A sua língua e linhagem de sangue também não eram «puras», depois de quatrocentos anos em terras mouras. Por isso se viu neles um perigo de contaminação dos cristãos «verdadeiros» e se optou pela «limpeza étnica». O novo reino, para existir, teria de ser étnica e religiosamente puro. 11
Sabe-se ainda que, ao contrário dos mais altos dignitários da Igreja portucalense, D. Teotónio se insurgiu contra este extermínio dos cristãos moçárabes. E que, por essa razão, se desentendeu com a rainha, D. Mafalda. Tudo isto é conhecido dos historiadores. O que não se sabia, mas eu estou em condições de afirmar, é que D. Teotónio protagonizou várias operações, mais ou menos secretas, para tentar salvar os moçárabes. Não o tendo conseguido, empenhou-se pelo menos em que a história desse «genocídio» não fosse esquecida. Eis uma explicação possível para o «culto» destes manuscritos. Uma espécie de sociedade «racionalista» e defensora avan-la-lettre dos direitos humanos terá, através dos séculos, conservado e por fim depositado os livros junto a Afonso Henriques, no lugar da odiada Mafalda de Sabóia, na esperança de um dia serem encontrados e lidos. Esse dia talvez tenha chegado cedo demais. Porque Raul Santo-Varão conta histórias que ninguém conhecia, e que põem em causa a forma como conhecemos a História. Mas quem era afinal este homem? Um escritor que inventou um novo género literário: a «reportagem». Ao mesmo tempo, um espião, um agente secreto cujas missões alteraram por diversas vezes o rumo dos eventos. Um intelectual iconoclasta, adepto do racionalismo de Abelardo, de quem foi aluno, que viajou pelo mundo e escreveu relatos impressionantes dos acontecimentos que marcaram uma das épocas mais fascinantes da História: o século XII. Alguns documentos da época mencionam Raul Santo-Varão. Referem-no sempre como um homem belo e inteligente, de personalidade forte, corajoso, gentil e bem-falante. Qualidades sem dúvida importantes no seu desempenho como agente secreto. Os documentos dizem também que Santo-Varão era viajado. Sabemos que, antes dos acontecimentos aqui narrados, viveu em Paris e visitou outras cidades europeias. Mas, depois de 1147, é certo que correu o mundo. Viajou com os cruzados até ao Oriente, viveu aventuras assombrosas, correu perigos, presenciou feitos momentosos, uns históricos, outros que a História desconhece. Foi como agente secreto que em várias ocasiões se achou no centro do mundo. Conheceu protagonistas e eminências pardas, guardou 12
segredos, desvendou mistérios. E sobre tudo isso escreveu. Livros que são documentos históricos de valor inestimável e que apenas uma pessoa, no nosso século, teve o privilégio de ler. Contrafeito, mas fiel depositário do espólio de Santo-Varão, tenho consciência da missão que, embora involuntariamente, assumi: divulgar, ainda que leve toda a vida a lutar contra os polícias da cultura, a obra do repórter medieval português. O estilo das suas reportagens nem sempre é perfeito e o seu papel nos acontecimentos é quase sempre ambíguo. Mas é precisamente por isso que o que escreve é tão revelador. Este livro, sobre a conquista de Lisboa, em que apenas actualizei alguns termos e conceitos, para que a leitura não se tornasse fastidiosa, poderia ter sido escrito hoje. Quase se poderia dizer que Raul, perfeitamente capaz de compreender a razão humana numa época futura, o escreveu para nós. E ao fazê-lo tenha acreditado que, 860 anos depois, a mesma razão humana nos fizesse compreendê-lo a ele. Lisboa, 27 de Outubro de 2006 13
14
15
16
1 Oassombro é fonte de vida. O rosto de Herveu de Glanvill, quando o navio entrou no esteiro do Tejo, tornava-se uma prova desse poder flagrante da realidade. Lisboa era mais bela do que tinha sonhado e esse facto reanimava-o. Não me parece que estivessem à nossa espera. Talvez conste dos escritos divinos que os devamos poupar, meu caro Raul. Sem se voltar, Herveu de Glanvill tinha sentido a minha presença. Dos escritos divinos só é lei para os homens o que os homens neles puderem ler respondi, apercebendo-me logo de que não estava a usar a melhor estratégia. O teu rei fez mal em escolher um herege como emissário. A sua sorte é que o que está escrito está escrito e nada o pode alterar. A propósito, vamos falar com ele. Não percamos mais tempo. Não sei porquê, tive a suspeita de que Herveu, apesar de determinista confesso e reputado exegeta de sonhos, não tinha ainda conhecimento do conteúdo dos escritos divinos sobre as deliberações que iam ser tomadas. Disse-lhe: Amanhã. Está marcado o encontro, com D. Pedro Pitões e D. João Peculiar, no acampamento do rei, logo pela manhã. Mas percebendo a expressão de contrariedade em Herveu, que finalmente me olhava, acrescentei: Um grupo foi já a terra com a missão de recolher víveres para o jantar. E afastei-me. 17