Narrativas Imagéticas: Considerações sobre as imagens da Crucificação, por Giotto, e os textos bíblicos 1



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Transcrição:

Narrativas Imagéticas: Considerações sobre as imagens da Crucificação, por Giotto, e os textos bíblicos 1 André Luiz Marcondes Pelegrinelli * Angelita Marques Visalli ** Resumo. Nesse trabalho tecemos considerações a respeito da relação entre as imagens da Crucificação produzidas pelo italiano Giotto (1267-1337) e os textos bíblicos referentes à mesma. Partindo da perspectiva teórico-metodológica de Jérôme Baschet e Jean-Claude Schmitt a respeito das imagens medievais, analisamos aqui dois afrescos, um presente na Capela Arena, em Pádua, e outro na Basílica de São Francisco, em Assis, relacionando-os com os textos bíblicos dos evangelhos canônicos, principal referência, e do Antigo Testamento, especialmente os trechos do profeta Isaías e o Salmo 22. O tema da Crucificação ganhou grande importância no baixo medievo frente à nova espiritualidade desenvolvida pelos mendicantes, o que certamente favoreceu o desenvolvimento de um forte caráter narrativo, efeito característico da iconografia franciscana. A análise a partir da interação texto-imagem possibilita uma melhor compreensão acerca do desenvolvimento da figuração religiosa e da devoção cristã no período. Palavras-chave: Giotto Crucificação Textos bíblicos Imagem Medieval Abstract. In this study we weave considerations about the relationship between the images of the Crucifixion produced by Italian Giotto (1267-1337) and the biblical texts concerning the same. Building on the comprehensions of methodological Baschet Jérôme and Jean-Claude Schmitt about the medieval images, we analyze here two frescoes, a gift in the Arena Chapel in Padua, and another in the Basilica of St Francis in Assisi. Then we relate this analysis with the biblical texts of the canonical gospels, and his main influences of the Old Testament passages from the prophet Isaiah and Psalm 22. The theme of Crucifixion gained great importance in the lower front of the new medieval spirituality developed by the mendicant, which certainly favored the development of a strong narrative character, effect characteristic of Franciscan iconography. The analysis from the text-image interaction enables a better understanding of the development of religious and figuration of Christian devotion in the period. Keywords: Giotto Crucifixion Biblical texts Medieval Image Entre os documentos escritos, o cânon bíblico foi e é um dos principais objetos da história. Fundamento do universo cristão, estes são referência fundamental para a compreensão da sociedade e do imaginário medievais. Por outro lado, as imagens 1 Resultado parcial de participação no projeto: Iluminuras Franciscanas: a construção da imagem e herança de Francisco de Assis na Franceschina (1474) (financiado pelo CNPQ) como Iniciação à Pesquisa Científica (CNPQ). * Graduando em História pela Universidade Estadual de Londrina. Bolsista Ic/CNPQ no projeto Iluminuras Franciscanas: a construção da imagem e herança de Francisco de Assis na Franceschina (1474), sob orientação da Profa. Dra. Angelita Marques Visalli. E-mail: andrepelegrinelli@hotmail.com. ** Docente do departamento de História da Universidade Estadual de Londrina, na área de História Antiga e Medieval. E-mail: visalli@sercomtel.com.br.

enquanto fontes históricas formam um corpus documental ainda pouco estudado. A revolução documental da Nova História trouxe diversas possibilidades quanto ao uso das imagens enquanto fonte histórica, mas somente nas últimas décadas podemos identificar uma maior concentração de estudos que considerem as imagens como objetos centrais de reflexão. Uma perspectiva importante que tem sido evidenciada por historiadores e historiadores da arte é a necessidade da consideração das relações e correlações entre imagens (com a identificação de cânones e modelos) e imagens e textos (levando em conta a interferência recíproca), assim como a intencionalidade, as condições de produção e a recepção do objeto imagético e a consideração de sua natureza, além da análise centrada na imagem (conteúdo, identificação de signos). Neste trabalho apresentamos algumas considerações sobre as imagens da Crucificação de Cristo produzidas pelo italiano Giotto (1267-133) e a relação destas com os textos bíblicos que relatam a crucificação ou se referem profeticamente à mesma. Segundo Jérôme Baschet, não há imagem na Idade Média que seja uma pura representação. Na maioria das vezes trata-se de um objeto, dando lugar a usos, manipulações, ritos; um objeto que se esconde ou se desvela; que se veste ou se despe, que se beija ou se come (...); um objeto pedindo orações, respondendo às vezes por palavras ou barulhos, por gestos ou pela emissão de humores (...), reclamando também dons materiais. Mesmo que não é esse o caso, a imagem adere a um objeto ou a um lugar que tem, ele mesmo, uma função, uma utilização, quer se trata de um altar, de um manuscrito ou de um objeto litúrgico, ou das paredes entre as quais têm lugar os ritos cristãos (BASCHET, 1996, p. 3). Este conceito, imagem-objeto, possibilitou um olhar renovado sobre as imagens medievais. As especificidades do período podem assim ser consideradas fora do padrão que ao longo dos séculos fez relacionar a valorização da imagem ao desenvolvimento da imagem como arte, segundo a perspectiva moderna, no fim da Idade Média e no contexto do Renascimento. O efeito provocado pela imagem não depende somente do lugar que ela ocupa, mas também do observador. A partir das experiências de vida e do conhecimento de cada observador é criada uma imagem mental própria de cada imagem observada por aquele indivíduo (BAXANDALL, 2006, p.34). Uma imagem retratando Cristo junto aos apóstolos na barca pode ter inúmeras interpretações diferentes dependendo do 2

contexto e bagagem cultural de quem a observa. Um clérigo pode ver a barca como a Igreja que Cristo guia e abriga os apóstolos, seu povo seguidor. Um guerreiro pode ver na mesma imagem um consolo frente às batalhas que o clérigo não viu: assim como Cristo protegia os apóstolos frente à tempestade, Cristo o protegeria frente aos infiéis. Já um camponês poderia perceber nesta representação o símbolo de acolhimento com o qual Cristo recebe seus fieis. As imagens medievais vão muito além da ideia de bíblia dos iletrados, definição apresentada por Gregório Magno, e pressuposto que ainda se reproduz com facilidade em livros de história medieval e da arte. Na verdade, em momento algum o autor teve a intenção de definir as imagens de seu tempo unicamente a partir desta ideia. Na sua célebre carta a Serenus, do ano de 600, Gregório Magno afirma que as imagens sacras medievais (somente estas estavam em questão na correspondência) servem para ensinar, relembrar e comover (BASCHET, 1996, p.3). Jean-Claude Schmitt (SCHMITT, 2007, p. 60) já demonstrou que a utilização das imagens ia muito além desta trifuncionalidade. Certamente tal constatação não anula as funções citadas por Gregório. Propomo-nos aqui a chamar a atenção para essas três quanto à figuração do acontecimento mais emblemático da história cristã a Crucificação, a partir de imagens pintadas pelo pintor que se notabilizou pelo desenvolvimento da narrativa, Giotto. Giotto de Bondone foi um importante pintor florentino dos séculos XIII-XIV, originário de Colle di Vespignano, nordeste de Florença, no ano de 1367, falecendo nesta última em 1337. Certamente foi o artista italiano mais requisitado de seu tempo, provavelmente passou temporadas na residência papal de Avignon e junto da corte angevina em Nápoles. Quanto às imagens com o tema da Crucificação, é conhecida a existência de cinco imagens executadas por Giotto e sua oficina: dois afrescos, um na Capela Arena, em Pádua, e outro na Basílica de São Francisco, em Assis; e três painéis, um que se encontra na Alte Pinakothek de Munique, outro no Musée Municipal de Estrasburgo, e o último no acervo do Staatliche Mussen, em Berlim. Os afrescos apresentam caráter narrativo mais destacado, assim, para este momento optamos por analisar os dois afrescos. Os afrescos estavam localizados, respectivamente na parede da Capela Arena (Fig. 01) e na Basílica de São Francisco, Assis (Fig. 02). Em ambos os casos, como mostrado por Baschet, as imagens aderem a um lugar que tem função própria, no caso, 3

em uma das paredes entre as quais se desenvolve o culto cristão. A igreja era a casa de Deus, sua principal função era oferecer aos mistérios divinos um cenário digno da sua grandeza (VAUCHEZ, 1995, p. 166), o edifício sagrado precisa fazer com que os fiéis se sintam entrando na própria esfera celeste (BASCHET: 2006, p. 508). Fig. 01 Crucificação, Ciclo da Vida de Cristo. Capela Arena, Pádua. (1303-1305) Fig. 02 Crucificação, ciclo A Vida de Cristo, Basílica de São Francisco, Assis. (1320) As imagens ali representadas ganham caráter narrativo a partir de dois aspectos: primeiramente porque fazem parte de um ciclo. As imagens da crucificação apresentam a passagem mais dramática da vida do Cristo. Estas, ainda apresentam uma narrativa 4

interna. Não são imagens de culto e a posição dos personagens e os gestos reproduzidos indicam a apresentação de um acontecimento em tempo real. Retomando as funções de Gregório Magno, estas instruem o fiel a respeito do momento da crucificação, relembram o acontecido, mas também comovem, compondo o espaço do sagrado. Em ambas as imagens, os anjos estão presentes e ocupam grande parte da área da cena, apresentam perfeita simetria: todos os que estão do lado esquerdo possuem um correspondente na mesma posição ao lado direito. Enquanto um anjo ao lado esquerdo de Cristo se incube de coletar o sangue que jorra de seu flanco, outro na mesma posição, ao lado direito, rasga suas próprias vestes expressando luto. Um sentimento descreve a função tomada pelos anjos nestas imagens: comoção, sentimentalismo. Neles percebe-se o apelo emocional característico da espiritualidade deste período. Ainda entre os personagens, nas duas imagens repete-se o grupo de soldados representados ao lado direito da cruz, em pé. Uma particularidade da imagem da Basílica de São Francisco é a presença de quatro irmãos franciscanos ajoelhados ao lado direito da cruz. O que os franciscanos fazem na cena da crucificação? O da esquerda é, certamente, São Francisco, o da direita é Santo Antônio, e os do meio não são aureolados (o quarto franciscano mal é percebido, pois se encontra atrás do outro, possibilitando uma ideia de participação de vários membros da Ordem). É importante o questionamento quanto ao local ocupado por esta imagem. Assim podemos nos aproximar das razões da presença destas três figuras. A imagem encontra-se na Igreja Inferior da Basílica de São Francisco, local destinado ao culto voltado para os frades, mas também em cuja cripta encontra-se o túmulo de São Francisco, importante centro de peregrinação. Próximo ao túmulo do santo, a presença destes personagens legitima a importância da Ordem franciscana frente ao observador. Afinal, que Ordem seria digna de contemplar o sacrifício de Cristo se não possuísse legitimidade dada por Deus para tal? Vale ressaltar também a atitude dos três franciscanos frente a crucificação: eles não sofrem. Todos os outros personagens de ambas as imagens agem diante da Crucificação com a comoção de quem experimenta o acontecimento doloroso. São os personagens do século I em Jerusalém. Já os franciscanos a contemplam com o mesmo olhar com o qual a religiosidade dos séculos XIII e XIV percebia a Crucificação. Os franciscanos veneram o sacrifício do Filho de Deus. Abaixo da Cruz da Capela Arena há uma caveira, referência ligada fortemente à 5

penitência e à morte. Neste caso, além de indicar a morte do Filho de Deus, ganha um novo significado, pois o mesmo ato salva a humanidade. Tocando o Crucificado, nas duas cenas é representada Maria Madalena, os cabelos longos a identificam como tal. É a única que toca o corpo de Cristo. Maria é representada por Giotto ao lado esquerdo da Cruz. Na imagem da capela Arena é sustentada por duas figuras. A da direita é o discípulo João, a da esquerda, uma mulher. O destaque a Maria é reforçado pelo fato de as duas figuras que a sustentam terem seus olhares fixos nela, e não no Cristo. Na cena da Basílica Maria aparece apoiada por três personagens, dos quais dois são aureolados. Maria não só é apoiada, mas desfalece, a cabeça pendendo em sinal de sofrimento. Ela não está acompanhada de João, este está em pé, com as mãos próximas ao rosto tendo seu olhar fixo no Crucificado. Importante perceber é o fato de que a Cruz nas duas imagens tem a forma de um Tau. A parte de cima do Tau não é a sua continuação, apenas sustenta o letreiro. A cruz em forma de Tau é significativa na vida e na espiritualidade advinda de São Francisco. Na Legenda Maior (LM), hagiografia de São Francisco escrita por São Boaventura, este nos diz que o santo tinha uma predileção especial pelo Tau por ser próxima à representação da cruz, o mesmo queria fazer como o profeta Ezequiel (Ez 9, 4) e imprimir este símbolo em todos aqueles que sofrem e gemem, e de todos os que sinceramente se converterem (LM, Cap IV, 9). Em outra passagem de sua obra, São Boaventura relata que São Francisco apareceu em visão a um doente, e este com um graveto em forma de Tau tocou o enfermo, fazendo com que esse ficasse curado, no lugar da enfermidade foi marcada a letra Tau (LM, Cap. X, 6). 2 Com relação a temporalidade das imagens, a Crucificação da Basílica de São Francisco é retratada após a morte de Cristo, após ter seu flanco rasgado pelo soldado. Já na imagem da Capela Arena é possível perceber que a cena sustenta duas temporalidades diferentes, a descrição bíblica diz que os soldados partilharam as vestes de Cristo logo após ele ser crucificado, ou seja, com o Cristo ainda vivo sob a cruz. Na imagem da Capela Arena eles partilham as vestes dele após a sua morte, e não antes. Este método, de unir duas cenas que não ocorreram juntas, em uma mesma imagem, reforça o caráter de narrativa. Assim, na mesma cena, Giotto uniu os dois eventos. 2 As referências ao Tau nas hagiografias franciscanas podemos encontrar, ainda, Vida Segunda (2Cel, 106) e Tratado dos Milagres (3Cel3) de Tomás de Celano. 6

Tratando-se de imagens que descrevem cenas bíblicas, sem dúvida a maior base de inspiração para as imagens são os próprios relatos bíblicos. A crucificação é a cena protagonista do Novo Testamento. A Crucificação é descrita pelos quatro evangelhos canônicos. No Antigo Testamento, encontramos referências proféticas como o livro de Isaías e o Salmo 22. São narrativas dramáticas, com forte tom emocional, ricas em detalhes e fatos extraordinários. John Crossan (CROSSAN, 1995, p. 155) identifica três estágios nas descrições da paixão: um histórico, outro profético e por último um narrativo. O primeiro refere-se ao o que de fato ocorreu na primeira metade do século I em Jerusalém, o segundo preocupa-se em identificar nos acontecimento da Paixão as profecias do Antigo Testamento, e por fim o último insere detalhes menores à narrativa. Partindo desse pressuposto, são estes estágios proféticos e narrativos que inserem na Paixão detalhes de sofrimento, forte emoção, etc, característicos de alguns trechos do Antigo Testamento. O livro do profeta Isaías e o Salmo 22 são ricos em explorar a comoção. O primeiro coloca nas bocas do servo de Deus, reconhecido pelos evangelistas como o próprio Cristo (GINZBURG: 2001, p. 109): Ofereci o dorso aos que me feriam e as faces aos que me arrancavam os fios da barba; não ocultei o rosto às injúrias e aos escarros (Isaías 50, 6). E continua, falando do servo de Deus : Era desprezado e abandonado pelos homens, Homem sujeito à dor, familiarizado com o sofrimento, Como pessoa de quem todos escondem o rosto; Desprezado, não fazíamos caso nenhum dele. E, no entanto, eram nossos sofrimentos que ele levava sobre si. Nossas dores que ele carregava.(is 53, 3-4a) O Salmo 22 se pergunta Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? (Sl 22, 2a), ou ainda Quanto a mim, sou verme, não homem, riso dos homens e desprezo do povo (Sl 22, 7). O Salmo 22 não possui um personagem definido, como o era o servo de Deus para Isaías, mas canta a lamentação e prece de um inocente perseguido. Os Evangelhos são a principal referência, e tendo a preocupação em demonstrar a missão messiânica de Jesus, oferecem longos e detalhados relatos sobre a Crucificação. Os evangelhos de Mateus e Marcos são muito semelhantes, inclusive na organização dos fatos. A descrição do primeiro estende-se dos versículos 34 à 56 do capítulo 27, já a descrição dada pelo Evangelho de Marcos estende-se do versículo 23 ao 41 do capítulo 15. 7

Seguem a seguinte narrativa: os soldados oferecem vinho misturado a fel para Jesus, mas ele não bebe, em seguida, os mesmos repartem as vestes de Cristo. Após ser mencionada a repartição das vestes, os autores citam o letreiro INRI - Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum, colocado na cruz. Após ser pregado na cruz, Jesus é caçoado por transeuntes, pelos chefes dos sacerdotes, e pelos crucificados junto a ele. Jesus exclama Deus meu, Deus meu, porque me abandonastes? (uma clara referência ao Sl 22, 2a), em seguida lhe é oferecido vinagre em uma esponja, morrendo em seguida. Após sua morte, manifestações extraordinárias ocorreram: Mateus diz que o véu do templo se rasgou, houve um terremoto e vários mortos ressuscitaram. Aqui é marcada uma diferença entre os dois evangelistas: Marcos apenas menciona o véu do templo que se rasga. Os dois evangelistas atribuem estas manifestações ao reconhecimento da filiação divina de Cristo por parte dos soldados. Após narrar estes eventos, os autores mencionam as mulheres presentes durante a crucificação: Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago e de José, Salomé, a outra Maria, entre outras. Lucas, por sua vez, dedica o trecho dos versículos 33 à 49 do capítulo 23 de seu livro para narrar o evento da Crucificação. O autor começa narrando que após Jesus chegar ao lugar onde foi crucificado junto aos malfeitores, pediu o perdão para aqueles que o torturavam, pois eles não sabiam o que faziam, depois repartiram e sortearam suas vestes. Em seguida o autor relata que, tal qual Mateus e Marcos, os transeuntes, sacerdotes e soldados caçoavam de Cristo. Lucas menciona um episódio importante também: um dos malfeitores reconhece Jesus como justo e Cristo diz que naquele mesmo dia ambos partilhariam o Paraíso. Jesus entrega seu espírito ao Pai e expira. Em seguida o centurião reconhece Cristo como o justo, a multidão percebe ter sacrificado um inocente. Por fim, Lucas menciona a presença de todos os amigos de Cristo e das mulheres que o acompanhavam desde a Galiléia. A narrativa de Lucas (Lc 23, 33-49) acrescenta um importante episódio: do ladrão preso à cruz que se arrepende, reconhece a sacralidade de Jesus e, pedindo-lhe perdão, recebe a informação de que estará salvo no Paraíso Celeste. Os outros eventos acompanham descrições próximas dos outros dois evangelhos. Lucas não menciona nenhuma mulher específica na Crucificação, apenas menciona a existência de mulheres que acompanhavam Jesus desde a Galiléia. O Evangelho de João escolhe, ao longo de todo o livro, episódios diferentes dos outros três para descrever a vida de Jesus. A Crucificação está narrada no capítulo 19, ao 8

longo dos versículos 18 a 37. O autor inicia mencionando que Jesus foi crucificado em meio a outros dois condenados e que sua cruz era identificada com um letreiro com os dizeres Jesus Nazareno, Rei dos Judeus. Em, seguida, em uma clara alusão ao Sl 22, 19, os soldados partilham as vestes de Cristo. Os versículos 15 a 27 são essenciais para o culto mariano: Perto da cruz de Jesus, permaneciam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Clopas, e Maria Madalena. Jesus, então, vendo sua mãe e, perto dela, o discípulo a quem amava, disse à sua mãe: Mulher, eis teu filho! Depois disse ao discípulo: Eis tua mãe! E a partir dessa hora, o discípulo a recebeu em sua casa. (Jo 19, 25-27) A exegese bíblica relaciona esse discípulo a quem amava ao discípulo João e, a partir da tradição, a toda a humanidade representada no discípulo. Este é o principal trecho legitimador quanto à questão da maternidade de Maria sobre a humanidade. Após este ocorrido Jesus pede água, se referindo ao Sl 69, 22 e ao Sl 22, 16, recebe vinagre e entrega o espírito. A versão de João também acrescenta a perfuração feita no flanco de Cristo para averiguar sua morte. Assim, justifica não terem quebrado os ossos de Cristo, pois segundo a ordem para comer o cordeiro pascal dada por Moisés em Ex 12, 46, o cordeiro não deveria ter os ossos quebrados. Outras referências dadas por João estão presentes em Sl 34, 21 e Zc 12, 10. As descrições bíblicas, tanto do evento da Crucificação em si, tanto das profecias que culminam nela possuem forte caráter emocional. Cremos que é essa visão dramática inicial que possibilita interpretações posteriores, como a de Giotto, que elevam a um caráter maior essa dramaticidade. Nos ciclos em que se encontram as imagens da Capela Arena e da Basílica de São Francisco, as únicas imagens referentes ao momento da Crucificação são estas aqui estudadas. Sendo assim, Giotto precisou escolher eventos da narrativa da Crucificação que representassem todos os outros ocorridos no mesmo episódio. Desse modo, ele demonstrava o que não só ele, mas a espiritualidade do período mais valorizava no episódio da Crucificação. Quanto aos elementos que, na imagem, contém embasamento bíblico mais explícito, a imagem da Capela Arena traz: a) partilha das vestes pelos soldados (Mt 27, 35; Mc 15, 24; Lc 23, 43; Jo 19, 23-24); b) o Cristo preso à Cruz; c) a presença de Maria e outros personagens acompanhando-a (Mt 27, 55-56; Mc 15, 40-41; Lc 23, 49; Jo 19, 25-27). Já na imagem da Basílica de São Francisco, as representações que se embasam mais explicitamente no texto bíblico são: a) o Cristo preso à Cruz; b) Maria e 9

os outros personagens (Mt 27, 55-56; Mc 15, 40-41; Lc 23, 49; Jo 19, 25-27). Representar Cristo preso a Cruz é essencial dentro do episódio, mas sua evidência não é natural. As imagens do Crucificado, praticamente desconhecidas antes do século XI, tomam importância cada vez maior na iconografia de Deus. A Baixa Idade Média tende a valorizar mais o Novo Testamento, na esteira da nova espiritualidade do período e explora forte sentimentalismo: o Cristo que era representado como Pantokrator agora é representado crucificado. São Francisco vê impresso em seu corpo as marcas da crucificação. O rei São Luís adquire a relíquia da coroa de espinhos de Cristo no século XIII e dá grande importância a ela. O século XIV vê o Santo Sudário passar a ser muito mais procurado e venerado. Por fim, as duas imagens representam Maria e as mulheres que acompanhavam este episódio. Maria é o centro das atenções: ela é amparada e desfalece. No Baixo Medievo crescem as representações de Maria como Mater Dolorosa, como aquela que sofre ao ver as dores e a morte do filho. A escolha dos eventos que foram retratados reflete a atenção do período frente à Crucificação. As imagens se alimentam dos conteúdos evangélicos que se inspiram em passagens vetero-testamentárias, e aquilo que se evidencia corresponde aos anseios dos tempos. A espiritualidade advinda das ordens mendicantes motiva os homens do tempo de Giotto, humaniza o divino e o aproxima do fiel através da evidência do sofrimento e da comoção pela exacerbação dos sentimentos. Referências BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. BASCHET, Jérôme. Introdução: a imagem-objeto. In: SCHMITT, Jean-Claude; BASCHET, Jérôme. L image. Fonctions eu usages des images dans l Occident medieval. Paris: Le Léopard d Or, 1996. p. 7-26 (tradução: Maria Cristina C. L. Pereira). BAXANDALL, Michael. Padrões de Intenção: a explicação histórica dos quadros. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002. CROSSAN, John Dominic. Jesus: uma biografia revolucionária. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995. Fig. 01 Afresco Crucificação, Capela Arena em Pádua. Disponível em: 10

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