Meus 90 anos 01/05/2011



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Transcrição:

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Meus 90 anos 3 01/05/2011

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CARMEN SÁ SENS MEMÓRIAS DE MINHA VIDA Editora Nova Letra 2006 5

Fotografia da capa: Arthur Sens e Luisa Malzoni Revisão: João Francisco Vaz Sepetiba 6

Carmen Sá Sens 01/05/1977 ( Foto de Lígia Maria Philippi) Ituporanga - SC Não sei se a vida é curta ou longa demais para nós. Mas sei que nada do que vivemos tem sentido, se não tocarmos no coração das pessoas (Cora Coralina) 7

Agradeço primeiramente a Deus pela saúde, pelo ânimo para escrever estas memórias. Agradecimentos também a meus filhos, irmãos, netos, sobrinhos, cunhados, primos e amigos, todos com importância ímpar em minha vida e, assim, neste livro. Agradeço em especial ao meu neto Arthur pela arte da capa, e à minha filha Kéia e ao meu neto Eduardo, que tiraram minha vontade de escrever do campo dos sonhos, concretizando-a nestas páginas. 8

APRESENTAÇÃO Para os amigos, Carmen significa força; significa coragem. Características próprias daquela que soube superar dificuldades da infância para ter uma vida simples, mas repleta de alegrias e de amor. Carmen, para os filhos, é sinônimo de carinho, daquele afeto sensível, do sorriso fácil, dos conselhos sempre presentes, estes mesmos que hoje cada um repassa aos seus próprios filhos. Mas Carmen, para quem ler este livro, não passará de um grande poema. Assim como a origem do nome Carmen significa literalmente poema, Memórias de Minha Vida, este livro que se passa através dos tempos e que foi maturado no auge de uma vida-exemplo, transpira poesia, inspira a alegria, leva às lágrimas e serve de companhia. Não, não pela redação, que no máximo levará como mérito o fato de não ser mais que um espelho da vida desta mulher: simples e carinhosa, sensível e perseverante. Memórias de Minha Vida, assim como a Carmen que conhecemos, é um verdadeiro poema pelo conteúdo, uma obra-prima a quem Deus permitiu dar um pouco de si a cada filho, a cada neto e a quem quer que tenha gozado de sua companhia. Cada olhar afetuoso, cada brincadeira, cada gesto desta mulherpoema está presente nos que são seus, assim como os detalhes daqueles com quem conviveu igualmente se amoldaram à sua personalidade. Nisso reside a poesia de sua vida e aqui o livro, embora escrito em prosa, deve ser lido como verso: cânticos de uma bela vida muito bem vivida ficarão agora registrados para todo o sempre. Eduardo Sens dos Santos 9

AS FAMÍLIAS Antônio Emiliano Sá e Lucinda Neves (1º casamento) Dulce Aldo Carmen Doraci Lucinda Antônio Emiliano Sá e Clara Bunn (2º casamento) Alcione Zulma Amilton Dilma Acelon Jacob Mathias Sens e Cecília Clasen Levino Vitório Rogário (Roque) Isidório (Ize) Adelaide Wictalina (Metcha) Oswaldo (Dinho) Hildeberto (Detcha) Ubaldino Nilvo (Ite) Nelson (Nelo) Gemma Lieselote (Lote) Carmen Sá Sens e Vitório Sens Moacyr (Titi) Mauri Ezir (Maninha) Evanir Márcio (Piláh) Mário Eucléria (Kéia) Maurício (Nego) Elizabeth (Beth) Elizete (Zete) Eunice (Nice) Eliete 10

SUMÁRIO COMEÇANDO DO COMEÇO... 12 A PRIMEIRA VIAGEM... 22 A CABRITA DO MAURÍCIO... 26 O CHAPÉU... 28 O ENCONTRO COM LUCINDA... 30 MEUS VESTIDOS... 34 QUANDO QUASE ME AFOGUEI... 35 PROCURA-SE UMA VELHA... 38 RUBENS, O NAMORADO DE BOM RETIRO... 41 PROSA E VERSO NA FESTA DA CEBOLA... 45 PROJETO DO VOTO DA MULHER... 46 O PILÁH ERA O MAIS MIJÃO... 48 CINQÜENTA HINOS E DUAS CERVEJAS... 51 MÃE DO ANO... 54 KÉIA ELETRIFICADA... 56 MAIO MÊS DAS MÃES... 58 O TOMBO DA ZETE... 62 SEM QUERER QUERENDO... 65 NUNCA MAIOR QUE EU... 66 OS PINTOS DA EVANIR... 68 GALINHA AO GRITO... 71 ZIGUEZAGUE NA ESTRADA... 74 A CHAVE DA IGREJA... 76 AS MANIAS... 78 NICE E SUA HEROÍNA... 80 IRMÃS CORAGEM... 82 TEMPOS DE PRINCESA... 84 MINHA RELIGIOSIDADE... 99 ANEXO ÚNICO... 101 ERRO! NENHUMA ENTRADA DE ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES FOI ENCONTRADA. 11

COMEÇANDO DO COMEÇO Ninguém da família poderá ofender-se ao ler este livro, com as frases desagradáveis que talvez eu tenha formulado, com meu jeito (ou a falta dele) ao falar do passado e de meus queridos irmãos. Mas aqui eu relato a minha história, minha história verdadeira, sem subterfúgios, que tem apenas o objetivo de levar ao conhecimento dos meus filhos um passado que reputo muito bonito. Pois bem, comecemos do começo! Na localidade de Armazém, cidade de Tubarão, em Santa Catarina, Antônio Emiliano de Sá e Lucinda Neves de Sá viviam com seus quatro filhos: Dulce, Aldo, Carmen e Doracy, que faleceu com apenas seis meses de idade. Bastante debilitada e inconformada pela morte da filha, Lucinda engravidou novamente, dando à luz mais uma linda e saudável menina. Mas quis o destino que a mãe dessas crianças não sobrevivesse ao parto e falecesse, sem ter podido nem ao menos abraçar sua pequena Lucinda, cujo nome lhe deram em sua homenagem. Emiliano, desesperado pela dor da perda e confuso com a situação em que a morte da esposa o havia colocado, entregou Carmen para sua tia Cecília Neves, a recém-nascida para a irmã Joana Morega de Sá, ou tia Janoca, como era conhecida por todos, e o menino Aldo para o tio Aristides Neves. Dulce faleceria em 10 de fevereiro de 1930, em decorrência de tifo preto. Assim é que Antônio Emiliano de Sá, jovem, bem apessoado e professor municipal de Armazém, após a morte prematura da esposa, resolveu morar em Bom Retiro, onde iniciou na profissão de coletor municipal, que corresponde na atualidade ao fiscal de tributos. A profissão gerava bastante respeito da população, e assim a família foi se estabelecendo. Algum tempo depois, ainda insatisfeito com o rumo de sua vida, Antônio 12

Emiliano mudou-se para Salto Grande, atual Ituporanga, e encontrou vago o cargo de Escrivão e Tabelião. Salto Grande era um pequeno vilarejo doado pelo governo estadual em troca de serviços prestados aos empreiteiros da estrada. Foi-se formando às margens do rio Itajaí do Sul, colonizado principalmente por agricultores que, décadas depois, dominariam o cultivo da cebola, hoje principal produto da cidade. Desbravaram assim as densas florestas de araucárias e imbuias da Mata Atlântica e enfrentaram com grande coragem as tribos indígenas que reivindicavam seu espaço. Naturalmente, sem a presença dos atuais meios de comunicação, o comum era que o tabelião empreendesse inúmeras viagens à Capital e outras cidades maiores. Foi numa das suas viagens, precisamente em São José, que ele conheceu a jovem Clara Bunn, por quem se apaixonou e para quem logo demonstrou sua vontade de constituir nova família. Começaram então os namoros e a relação foi se estreitando até que, por fim, deu-se o casamento. Na verdade, Clara Bunn passou a simplesmente morar com meu pai, como se marido e mulher fossem. Não puderam se casar, porque ela já era casada com um médico, pelo qual fora enganada, pois ele já era casado. O sujeito certamente falsificou os documentos e se declarou solteiro quando casou com Clara no civil e no religioso. Só algum tempo depois é que foi-se descobrir que já tinha um casamento anterior, que segundo a lei da época não podia ser desfeito, porque não existia divórcio. A alternativa seria a anulação de casamento, mas exigia uma ação judicial praticamente desconhecida da família, o que inviabilizou totalmente a solução. Somente muitos anos depois o Sr. Antônio Pereira, velho amigo da família, leu no jornal a nota de falecimento do primeiro marido de Clara, o que permitiu o casamento com toda a formalidade exigida. Clara casou-se assim com meu pai, mas logo veio a morrer, quando finalmente recebeu a graça da comunhão. Clara era muito religiosa, freqüentava as missas, mas não podia 13

comungar, a religião católica não permitia. Após passarem a morar juntos, Emiliano procurou reunir os filhos que havia espalhado na casa dos seus tios e irmã, com exceção da Lucinda, que permaneceu com Tia Janoca, professora primária em Armazém. Com algum esforço, recompensado pela presença daqueles a quem mais amava, Emiliano enfim reencontrou suas crianças, de modo que a vida passou a correr tranqüila para aquele casal e seus quatro filhos e enteados. Mas como era natural Clara Bunn também desejava ter seus próprios filhos. Talvez se sentisse frustrada por não ter ainda uma descendência direta, algo que prezava sobremaneira. Ter filhos significava não só a seqüência de uma família, mas o respeito pelos vizinhos e a mostra de que era realmente uma mulher dedicada. Foi aí que a tranqüilidade e a paz dos enteados terminaram. É que, e digo isso com a maior tristeza no coração, com aquele sentimento de quem prefere esconder a verdade, mas se rende a ela para evitar que sufoque, foi neste preciso momento de minhas lembranças que começaram a maldade e as humilhações que minha madrasta nos impôs. Ainda com a intenção de não me sufocar, de trazer a verdade à tona, quero poder acreditar que ela ao casar-se com meu pai não tinha sequer a vaga idéia da responsabilidade que a esperava, ou seja, a educação de três filhos que biologicamente não eram seus. Mas também não posso crer que meu pai não a tivesse alertado da nossa existência e das conseqüências que a união traria. Tudo começou com o nascimento de seu primeiro filho, Alcione, quando Clara mudou completamente a maneira de nos tratar. Passou a adotar dois pesos e duas medidas em várias situações. O que era para os seus era diferente para nós. Desde um pedaço de cuca, que não era repartido entre todos, mas apenas para os seus, ao passo que nós ganhávamos polenta fria. Lembro-me bem que às vezes, com os vestidos surrados, sentadinhas no chão, comíamos um pedaço 14

de polenta fria que tinha sobrado. A cuca da boa, como costumávamos chamar aquela que vinha de Rio do Sul, levada pela padaria Brehsan, essa era guardada no guarda-roupa do casal, às sete chaves, para que não alcançássemos. A mesma coisa acontecia na hora da distribuição no lanche da tarde, quando Clara chamava seus filhos e os entregava pedaços da deliciosa cuca; nós nos contentávamos em arregalar os olhos e a salivar como pequenos bichinhos, porque não ganhávamos nem um pedaço. Acelon, um dos cinco filhos naturais de Clara, perguntava: e o Aldo, a Dulce e a Carmen? A resposta era sempre a mesma: eles não precisam de cuca! Em algumas ocasiões, e longe dos olhos da mãe, Acelon repartia o seu pedaço. Era um irmão de ouro e, como todos os outros, gostava de nós e nós dele. Disso jamais duvidei, por mais que ela tivesse tentado dividir nossos corações, impedir nossa amizade e nosso carinho de irmãos. Por isso e por tantas outras até hoje tenho o maior respeito e amizade por todos eles, e procuro trazer sempre na lembrança as melhores cenas dos melhores momentos de nossa triste infância. Tudo isso era tão mesquinho, e mais mesquinho ainda era o fato de essa atitude não ser justificada, visto que meu pai era um homem de posses, de modo que não seria preciso economizar. O que eu percebia, e quisera Deus fosse uma visão míope da situação, é que Clara deliberadamente nos rejeitava por não sermos seus filhos. Meu pai, é claro, não sabia o que acontecia. Assim, na base da discriminação, foi-se levando minha infância, até que completei idade escolar e passei a freqüentar a Escola Isolada de Salto Grande, cujo professor era o senhor Lindolfo Rodrigues. Era enfim a chance de aprender novidades, de fazer novas amizades e, mais importante do que tudo isso, de fugir dos serviços domésticos a que Clara me obrigava. Sim, porque além de nos tratar de forma totalmente díspar, Clara fazia de mim e de seus outros enteados praticamente seus serviçais. Limpávamos, 15

varríamos, lavávamos e até capinávamos a horta da casa sob as ameaças de violentas surras. E não era o serviço doméstico que se destinava comumente às crianças, até como forma de nelas inculcar os valores do trabalho e da organização; era um trabalho exigente demais para nossa condição física, que nos cansava além do que nossos pequenos corpos podiam suportar, e que ao invés de somar valores dividia nossas forças e subtraía as possibilidades de um crescimento sadio. Por isso é que para freqüentar as aulas eu tinha que sair às escondidas, como uma fugitiva, de seu próprio lar; do contrário os trabalhos me prenderiam à casa de meu pai e a escola acabaria em segundo plano. Minha estratégia tinha que mudar a cada manhã, mas a principal era atravessar a cerca de madeira que separava nossa casa e a do vizinho, e correr sorrateiramente, com o coração disparado com medo de ser apanhada em flagrante por um crime (crime?) que não era meu. Ao chegar na escola, o pior momento era aquele em que o professor pedia que lhe apresentássemos as tarefas do dia anterior. Todas as crianças orgulhosas mostravam suas lousas e o professor, com a postura sóbria que o marcava, examinava detidamente cada uma. Indicava um erro numa, elogiava outra, recomendava um ajuste aqui e acolá. À medida que ele se aproximava meu medo crescia: é claro, não havia cumprido a tarefa. E não por má vontade e preguiça, mas por pura falta de tempo e, vez por outra, pela expressa proibição imposta por Clara de dedicar-me pelo tempo que fosse a outra atividade que não os trabalhos domésticos. Sentiame tão humilhada e injustamente rebaixada com as punições do professor e com as chacotas dos meus colegas de classe, que simplesmente baixava a cabeça e colocava-me a chorar. Como dizer ao professor Lindolfo que minha própria madrasta não dava permissão para fazer as tarefas? Com que palavras enunciar tão grave acusação? 16

Em quem ele acreditaria, numa pirralha de sete anos ou nela, senhora distinta, esposa do escrivão municipal? Não vendo saída eu me calava e recebia os terríveis castigos daquela já distante época, castigos que também não eram meus. Porém, nem as palmatórias nem as orações forçadas da escola, nada se comparava ao que ainda estava por vir: ao chegar em casa novamente era castigada fisicamente (para dizer o mínimo) por tê-la desobedecido ao fugir para tentar, apesar de todas as humilhações, sair daquela vida pela estrada do estudo. Ainda assim levei meu período escolar até o terceiro ano, quando já sem forças para agüentar mais tive de finalmente abandonar os estudos na metade do ano para trabalhar mais do que já trabalhava em casa. Tornava-me, assim, uma faxineira da minha madrasta, com a agravante de ser submetida a surras quando algo parecia errado ao seu olhar e de não poder me demitir. Meu pai, homem que se dedicava demais ao trabalho, não conseguia acompanhar os dramas familiares e acabava não se inteirando das maldades a que suas filhas eram submetidas todos os dias. E como viajava muito para Florianópolis e Bom Retiro, em viagens que levavam semanas ou meses, Clara se aproveitava da situação e deixava seus instintos extravasarem. Recordo que numa dessas ausências Clara fez com que eu e Aldo pegássemos cada um numa das pernas de Dulce e a puxássemos para fora da casa, descendo os cinco degraus de escada que separavam a casa do terreno, de modo a levá-la para um macabro passeio pela terra, que incluía incursões por trechos pedregosos. Uma verdadeira sessão de tortura contra uma pessoa indefesa. Ela, como que apreciando aquela situação deplorável, permanecia sentada numa cadeira com um chicote ou uma varinha de marmelo na mão, assistindo e gritando: mais, mais, muito mais 17

Hoje fico a me perguntar que mente doentia era aquela, que prazer poderia existir numa cena tão mórbida? Mas ao lembrar do brilho de seu olhar, do sorriso de triunfo que exalava, vejo que era tudo pura maldade, uma espécie de vingança por ter o encargo de criar como seus os filhos de outra mulher. Hoje penso que a gravidade da situação não era uma só, mas três. A maldade ao atingir não só Dulce, pela dor física, mas também a mim e ao Aldo pelo mal que sabíamos estar causando a nossa irmã, mesmo sendo obrigados a isso, porque, se não o fizéssemos, apanharíamos. Além disso, ela também nos proibia de contar para o pai, sob ameaças de que as próximas sessões seriam piores ainda. As lembranças são fortes demais e remexê-las freqüentemente me leva às lágrimas. Colocá-las no papel, assim, é uma espécie de terapia, que me permite encará-las de outro ângulo, tornando-as, quem sabe, mais distantes da realidade. O papel para mim se torna um desafogo, porque tira de mim o peso que as lembranças jogam em meus ombros e transfere para suas linhas aquilo que eu tento esquecer. Mas, pouco adianta; como sabe qualquer um que tenha passado por uma situação penosa como essa, a dor, a sensação de fragilidade e de impotência cravam seus sentimentos no fundo do peito. Mas meu coração não era de galinha. Nas minhas veias corre sangue quente e forte. Apesar de ainda criança, um dia me aproximei de meu pai, baixei os olhos, fitei meus chinelos, pensei mais uma vez nos prós e contras, e, quando estava quase desistindo, busquei nas lembranças dos dias anteriores minhas últimas forças e contei tudo a ele. Nesse dia lembro que o casal brigou feio, e meu pai, que estava com um livro de tabelião nas mãos, atirou-o nela, atingindoa nas costas. O castigo foi insignificante diante de tudo que ela nos obrigava a passar e a fazer contra nossas vontades, mas valeu para marcar na minha vida esse ponto de coragem e firmeza após tanto sacrifício. Aquele átimo de força teria ainda uma conseqüência. Quando já era mocinha meu pai, munido da intenção de me tirar daquele ambiente, decidiu me 18

matricular no quarto ano do colégio Sagrada Família, em Blumenau; já não sabia ele o que fazer para livrar-me das perseguições de Clara, e um internato foi mesmo a melhor solução. Nas visitas que ela fazia ao Colégio, Clara aproveitava para recomendar às freiras que me ensinassem apenas a cozinhar, lavar, passar, tricotar e costurar, e que deixassem de lado as outras disciplinas, pois não me seriam úteis; segundo sua equivocada visão de mundo, meu desenvolvimento intelectual não era importante para o futuro. Meu pai, no entanto, dava outras orientações: deveriam me tratar da mesma forma que a todas as outras meninas do internato, ensinando tudo o que fosse de meu interesse, mas sem qualquer distinção; deveriam, enfim, me formar uma mulher cidadã. Logo me interessei no aprendizado de tipografia e comecei a me sair muito bem nos estudos. As notas variavam de muito bom a excelente, de modo que me sentia cada vez mais estimulada a prosseguir. Noutras matérias não ia tão bem. Um exemplo foi o corte e costura, que talvez por deficiência nos estudos anteriores de matemática e artes, prejudicados pelos trabalhos domésticos, passei a encontrar muita dificuldade. Apesar de tudo, aquele foi um ano bom, em que aprendi muito no pouco tempo em que fiquei lá. Enquanto isso a vida de meus irmãos continuava transcorrendo com seus altos e baixos, na pequena Salto Grande. Meu irmão Aldo, por quem meu pai nutria uma vaga esperança de transformá-lo num grande homem, desejando e podendo dar condições de estudo em bons colégios, não correspondia às expectativas. Aldo, naquela época estudava no Colégio dos Padres, mas não se adaptava à disciplina rígida imposta na instituição. Suplicava através de cartas que meu pai o retirasse de lá, dizendo que não gostava das regras, das lições, dos colegas e do ambiente. O comportamento, bastante incomum, magoava meu pai e o fazia chorar. Pedindo 19

alento, se abraçava a mim como se eu, ainda uma criança, pudesse consolar aquele homem que era admirado por todos na cidade. Hoje penso que na verdade meu pai jamais se consolou com a falta de ambição do único filho homem que teve com a primeira esposa, de quem, desconfio eu, jamais se esqueceu e com quem considerava haver vivido anos de muito amor, muito companheirismo e muita luta. Aldo então foi para o Exército. Tinha ficado um belo rapagão, alto, forte, cabelos pretos e sempre muito requisitado pelos amigos e admirado pelas garotas. Mas continuava aprontando, desrespeitando as normas e as autoridades. Não como um delinqüente, isso não, mas apenas com a intenção de se divertir. O que ele buscava na verdade, sem medir as conseqüências, era a diversão, sem se importar com mais nada. De tanto aprontar, certa vez mandou uma carta para meu pai com um desenho de uma cadeia. Para susto dele, adivinhem quem estava desenhado dentro da cadeia? Outra que ele aprontou foi a do cacho de banana. Clara costumava pendurar um cacho cheio de bananas verdes para amadurecer bem no alto do forro, onde ninguém pudesse alcançar. Sempre querendo aprontar alguma brincadeira, alguns dias depois Aldo foi espiar o estado do cacho e, vendo as bananas já maduras, apanhou algumas para comer. E foi assim naquele e nos dias seguintes, até que as bananas acabaram, ficando só a penca. Quando Clara descobriu, Aldo não poderia negar, porque era o único que alcançaria lá. Não negou e tampouco esperou a severa punição. Colocou numa valise algumas mudas de roupa e foi pedir abrigo na casa de nosso tio Aristides Neves que morava em Bom Retiro. Quase esquecia! Nesse meio tempo, depois do ano de internato em Blumenau, retornei a Salto grande, para minha vidinha de sempre. Fui então readmitida ao cargo de empregada doméstica na casa de meu pai, pois era o que me cabia na opinião de Clara. Voltei a lavar, passar, cozinhar e a fazer todo 20

o serviço da casa para ela, que agora se desculpava alegando não ter tempo, já que passara a trabalhar com meu pai no Cartório. Não retornei mais aos estudos. O que sei, o pouco que sei, foram desses quatro anos de escola e internato, quatro anos mal aproveitados. Mas a vida ensina muito, e com ela aprendi o resto que me foi suficiente para sobreviver e criar meus filhos. É por isso que sempre digo que ninguém cruza nosso caminho por acaso, e nós não entramos na vida de alguém sem nenhuma razão; há muito o que dar e o que receber; há muito o que aprender, com experiências boas ou negativas. Tenho certeza de que, se mesmo a pior tempestade traz o viço às plantas e devolve a vida à floresta, minhas dificuldades iniciais me fizeram crescer forte para enfrentar todas as batalhas que a vida me traria. Foi isso o que aconteceu comigo e é isso que eu quero contar agora. 21

A PRIMEIRA VIAGEM Minha primeira grande viagem aconteceu quando eu contava com apenas dois anos e meio de idade. Logo após a morte de minha mãe, meu grande pai, Emiliano Sá, pediu à cunhada Cecília que ficasse comigo por algum tempo, enquanto reestruturava a família depois da perda. Minhas memórias dessa época são poucas e se devem mais às conversas com a família, no interesse de saber da minha própria infância, do que de lembranças pessoais. Mas vagamente recordo ter ficado durante aproximadamente quatro anos morando com a tia Cecília. Nesse meio tempo, meu pai casou novamente, retornando para me levar junto na nova família. Chegou dizendo que por nada nesse mundo queria me deixar com a tia Cecília, não por desgostar dela, mas por querer muito bem a mim. Eu, a essa altura, já não queria ir com ele coisa de criança! mas acabei cedendo diante da promessa de uma boneca. Naquele tempo, era comum se falar em dar a criança para os parentes, para que cuidassem melhor. E foi essa a palavra que a tia Cecília usou quando meu pai voltou para me buscar: Emiliano, dá a Carminha para mim? Eu gostaria muito de ter ficado com a tia Cecília; na verdade era tudo o que eu queria na época, já que estava acostumada a ela e à família. Mas meu pai disse um definitivo não, daqueles que continham por si só imposição suficientemente forte, pois vinha do homem da família. A tia Cecília, mesmo assim, argumentou dizendo que como ele já tinha dado minha irmã Lucinda para a tia Janoca, poderia também me deixar sob seus cuidados. A Carmen eu quero foram as palavras de meu pai, Emiliano. A partir daí, para voltarmos à casa de meu pai, pegamos a estrada saindo de Armazém, com destino a Bom Retiro, no alto da Serra. 22

Na época, é possível imaginar a dificuldade da viagem. O que hoje leva pouco mais de quatro horas num carro qualquer, levou mais de três dias no lombo de cavalos e burros. Depois de longas horas de chão poeirento e às vezes coberto de lama, de lentas paradas para alimentar os animais, finalmente chegávamos nos hotéis na estrada, torcendo para conseguir alcançá-los antes de a noite chegar. Para nós, crianças, a viagem era penosa. Além das difíceis condições do tempo, do pouco tempo para brincadeiras e da parca alimentação, eu e minha irmã Dulce ficávamos no que se chamava cargueiro, uma espécie de alforje feito de vime que cruzava as costas do animal de modo a equilibrar uma de cada lado. Ao subir a serra a paisagem começava a mudar. Do calor de Armazém da manhã no começo da viagem, já à tardezinha começávamos a sentir o frio que vinha dos vales. O vai-e-vem dos animais, somado à consciência de meu pai sobre nossa hidratação, favorecia o funcionamento de todas as funções do corpo. Em especial, do aparelho urinário. E foi o que aconteceu. Lembro bem que levei uma grande bronca de meu pai, quando ele percebeu que a farinha que vinha dentro do cargueiro comigo já 23

não poderia mais ser usada para alimentar o comboio. É que, apesar de as paradas serem poucas, a água era bem servida, e eu, que já não estava entendendo muito bem o porquê da viagem, também não sabia pedir para ir ao banheiro, ou o que quer que o substituísse no meio da empoeirada estrada de chão batido. O resultado foi um pirão um tanto diferente, com o meu xixi bem misturado naquela farinha de mandioca. Mas criança é assim mesmo, faz onde der vontade! Ainda bem que perceberam antes do jantar! Para manter a ordem durante o percurso, meu pai ralhava o tempo todo comigo e com minha irmã. Em certa parada, no meio de minhas brincadeiras, quase caí num desses poços artesianos em que parávamos para abastecer os animais e os alforjes. Acredito que, pela profundidade, se eu escorregasse na beirada de limo talvez não sobrevivesse à queda. Mas como eu sempre digo, meu destino já estava traçado para que eu tivesse os doze filhos que tive. Aqui cabe um pequeno comentário sobre o meu pai, para alguns o Vô Miliano, para outros tantos o bisavô que não chegaram a conhecer. Homem de caráter irrepreensível, foi professor em Armazém, coletor uma espécie de cobrador de impostos em Bom Retiro e tabelião em Salto Grande, cidade que mais tarde receberia o nome de Ituporanga. Essa última profissão rendeu-lhe alguma fama e uma vida digna, com frutos suficientes para sustentar e educar a grande família que tinha. Mas, voltemos à viagem. Do pouco tempo que ficamos em Bom Retiro não tenho maiores lembranças, mesmo porque logo passamos a viver em Salto Grande, onde eu criaria mais tarde meus filhos e passaria boa parte de minha vida. Nossa primeira casa lá foi a tal da Casa Velha. Feita de madeira, tinha bom tamanho, onde se distribuíam três quartos, escritório e cozinha, mas o pouco cuidado que recebia fazia meu pai se ver obrigado a aturar comentários dos vizinhos contrapondo a sua nobre profissão de tabelião com a pobre casa em que morava com a família. Para ele, que nunca foi de luxo, não havia qualquer 24

problema, e deixar os outros falar pelas costas era mesmo a melhor solução. Na Salto Grande desse tempo o comércio se restringia a alguns botecos e galpões para estocagem da produção agrícola, com alguns moinhos as chamadas tafonas lá levávamos a produção caseira de fubá, milho ou de mandioca para transformar em farinha. No entanto, a maioria dos negócios era fechada na localidade de Freguesia de Baixo, em que havia um permanente mercado. Pagava-se o dono das tafonas no regime da meia, ou seja, quem levava o milho para moer deixava metade ou a terça parte do produto com o tafoneiro, que sempre saía lucrando. Daí a brincadeira que sempre fazia a Adelaide Sens quando dizia que a tal da meia não servia nem para os pés, porque o único que ganhava bem, realmente, era o dono do moinho. Aliás, usava-se a farinha de mandioca como alimento em muitas ocasiões, e lembro-me bem que meus filhos mais velhos cansaram de comer o pirão que com ela se fazia. Na verdade, o tal pirão fez crescer fortes e saudáveis todos os meus filhos, que só não ficaram maiores porque a linhagem não permitia mesmo. 25

A CABRITA DO MAURÍCIO A essa altura da minha vida muitas histórias vêm à mente. São detalhes singelos do dia-a-dia, lembranças que engatam em outras lembranças e trazem de reboque mais umas tantas; enfim, acho que ainda hoje ninguém descobriu bem ao certo como nos chegam as lembranças, mas eu posso dizer que descobri a felicidade de tê-las. Uma dessas recordações é de um acontecido com meu filho mais novo, o Maurício Luis Sens. Maurício, sempre muito benquisto por seus amigos, resolveu convidá-los certa vez para passear de canoa pelo rio Itajaí do Sul, que cruza Ituporanga, e, em Rio do Sul, se encontra com o Itajaí do Oeste para formar o Itajaí-Açu. Dentre eles, pelo que lembro, estava também o Bira de Sá, meu sobrinho, além de pelo menos outros cinco. Desciam o rio naquele lindo dia de sol com as bagunças que sempre os meninos inventam nessas horas, até que de repente a balbúrdia foi interrompida por um grito estranho vindo da barranca: mééééé, ouviram todos eles sem conseguir ao certo identificar que ser emitia aquele grunhido. O grito parecia de algum animal de sítio, um bode, uma cabra, mas ainda não tinham identificado ao certo. Procuraram por algum tempo o local de onde partia o berro até que encontraram uma pobre cabritinha desesperada. O coração de qualquer um amolece nesta hora: o pobre bichinho havia se perdido e agora já estava no leito do rio sem saber como nem para onde voltar. Como coração de menino amolece mais rápido ainda, logo trataram de colocá-la para dentro da canoa e trazer para casa. Já em Ituporanga, com a cabrita no colo, muito satisfeitos da boa ação que haviam feito, chegou a hora da verdade: Para onde vamos levá-la? alguém perguntou ingenuamente, causando aquele típico olhar de perplexidade por todos. 26

A verdade é que não tinham a menor idéia do que fazer com o animalzinho, até que um deles se deparou com a brilhante idéia: Maurício, deixa na tua mãe! Outro, um pouco mais astuto, pensou alto: E que tal vendêla?. Uniram uma idéia à outra e pronto: lá veio a cabritinha à minha casa, para que eu a comprasse. Como se já não bastassem todas aquelas crianças e as molecagens que sempre me aprontavam molecagens que, claro, eu adorava traziam agora, assim como se fosse um presente, uma cabrita desgarrada para me vender. Tudo bem que lá em casa já criávamos porcos, galinhas e patos, como era comum na região. Mas uma cabrita que não tinha dono e ainda por cima não parava de berrar, essa era novidade! No final das contas, depois de muito pedirem, comprei por uma quantia de nada a tal cabritinha, e eles, agora já não sei se felizes pela nova boa ação ou pelo alívio em se livrar do bicho, deram pulos de alegria. A mais nova proprietária de uma cabrita em Ituporanga sacou logo de um pedaço de corda e amarrou a pobrezinha num pé de árvore. Como já era de se esperar, os meninos logo partiram para outra brincadeira; a cabrita, essa continuava a berrar sem parar. O tempo passou e os berros só cresciam. Meus ouvidos já não agüentavam mais aquele martírio. Não lembro, mas devo até ter pensado em preparar cabrito assado para o jantar. Para minha sorte e da cabrita! minha vizinha Nazira, que sempre passava lá em casa para buscar cebolinha, viu o animal gritando e disse: essa cabrita é minha! Mal pude acreditar! Quem pulava agora não eram os meninos nem a cabrita, era eu, de contente por livrar meus ouvidos daquele insistente méééééé. 27