DIVERSIDADE COMO ACONTECIMENTO DISCURSIVO: NOTAS SOBRE O PLANO NACIONAL DE CULTURA (2010)

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Transcrição:

DIVERSIDADE COMO ACONTECIMENTO DISCURSIVO: NOTAS SOBRE O PLANO NACIONAL DE CULTURA (2010) Diego Barbosa da Silva Orientadora:Profª. Drª Vanise G. de Medeiros Doutorando Nossa pesquisa de Doutorado, ainda em andamento, visa compreender o funcionamento do discurso da diversidade, isto é, do discurso a favor do outro, de cultura(s) outra(s), que se assenta na transparência do sentido de inclusão de todos os indivíduos e de todas as culturas. É esta evidência da diversidade que encontramos de forma regular nos manuais de Ciências Sociais e de Pedagogia, como algo positivo como uma visão boa e desejável (KOTTACK, 2013; HAVILAND et alii, 2011) e que marca a maioria das materialidades discursivas sobre o tema. Como sabemos, os sentidos de evidência em que se assentam a diversidade cultural são fornecidos pelas formações discursivas (FD) que por sua vez atuam sobre os indivíduos interpelando-os em sujeito e determinando o que pode e deve ser dito. Tal inscrição na FD se dá por meio da memória discursiva ou interdiscurso, uma espécie de eixo vertical que reúne todos os dizeres já-ditos sobre o intradiscurso, o eixo das formulações (INDURSKY, 2003). Isso é possível, pois a memória discursiva é o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra (ORLANDI, 2007 [1999], p. 31). Vale ressaltar que não falamos na memória individual e psicologista, mas na memória social inscrita em práticas (PÊCHEUX, 2007 [1990], p. 50). [166]

Não se pode falar, então, na origem de um sentido, mas sim nos deslizamentos, em condições de produção sócio-históricas, de dizeres já-ditos, sentidos jáestabilizados, mas esquecidos. Dizeres ao serem formulados no fio do discurso, retornam por vezes como novos dizeres num efeito de evidência. É desse jogo entre interdiscurso e intradiscurso, entre memória e formulação que vem a noção de acontecimento de Pêcheux (2008 [1990], p. 17), como aquilo que está no ponto de encontro de uma atualidade e uma memória. Para Indursky (2003, p. 103): encontro é onde o enunciado, proveniente na estrutura interdiscursiva, pelo viés da repetição, é inscrito na estrutura do discurso do sujeito, no intradiscurso. E nesse ponto de encontro de uma memória (o interdiscurso) com uma atualidade (o intradiscurso) instaura-se o efeito de memória: os sentidos são rememorados, atualizados, resignificados. No entanto, esse encontro entre uma memória e uma atualidade não se daria de forma tranquila, mas sim em confronto. Nesse jogo de força, sob o choque do acontecimento (PÊCHEUX, 2007 [1990], p. 53) haveria uma força que tenta manter os sentidos estabilizados e outra oposta que tenta provocar deslocamentos e até a rupturas desses sentidos: - um jogo de força que visa manter uma regularização préexistente com os implícitos que ela veicula, confortá-la como boa forma, estabilização parafrástica negociando a integração do acontecimento, até absorvê-lo e eventualmente dissolvê-lo; - mas também, ao contrário, o jogo de força de uma desregulação que vem perturbar a rede dos implícitos (PÊCHEUX, 2007 [1990], p. 53). Isso se dá justamente porque a contradição é constitutiva de todo processo discursivo. Como consequência desse jogo de força, Pêcheux apresenta três possibilidades de funcionamento do acontecimento. Sob a força que tenta manter os sentidos: (1) o acontecimento que escapa à inscrição, que não chega a se inscrever e (2) o [167]

acontecimento que é absorvido na memória, como se não tivesse ocorrido (PÊCHEUX, 2007 [1990], p. 50). E sob a força oposta que mesmo na tentativa de absorção provoca uma interrupção podendo (3) desmanchar essa regularização e produzir retrospectivamente uma outra série que não estava, enquanto tal, e que é assim o produto do acontecimento; o acontecimento, no caso, desloca e desregula os implícitos associados ao sistema de regularização anterior (PÊCHEUX, 2007 [1990], p.52). Vale frisar que essa ruptura não produziria o esquecimento, ela apenas fundaria outra discursividade, restabelecendo redes de sentido, ressignificando a memória. Quando um acontecimento discursivo sucede, instaura-se uma relação tensa tanto com a memória (que tenta inscrevê-lo na ordem da repetibilidade, tal como vimos nos parágrafos que precedem) quanto com o discurso novo, inaugural, que rompe com a ordem da repetibilidade, construindo um novo sentido possível para o enunciado. Ou seja: um acontecimento discursivo rompe com a inscrição na ordem da repetibilidade, mas não tem como apagar a memória, a ressonância do sentido-outro. Dito de outra forma: um acontecimento discursivo rompe com a ordem do repetível, instaurando um novo sentido, mas não consegue produzir o esquecimento do sentido-outro, que o precede (INDURSKY, 2003, p. 107). Se a FD controla o que pode e deve ser dito, a ideologia controla, ou pelo menos tenta controlar, o que pode e deve ser feito. Entretanto, o acontecimento foge à regra, pois advém da contradição. Mas isso não se faz de fora do processo discursivo, afinal a ideologia é dialética. Todo acontecimento enquanto formulação, como consequência da contradição, visa abalar as redes de sentido. No entanto, nem sempre se consegue. A maioria acaba inscrita na FD dominante ou é capturada. E uma vez capturado, o acontecimento contribui para uma momentânea e aparente dispersão da contradição, para que mais adiante essa contradição retorne ainda mais presente. Até que novos acontecimentos surjam e produzam de fato uma ruptura nas redes de sentido para que uma formação discursiva outra assuma o papel de dominante na (re)produção de sentidos e de evidências. Se por um lado, a FD regula o dizer expondo a contradição, ao expô-la insere a ruptura como parte do processo discursivo. [168]

Ao tomarmos a emergência do discurso da diversidade cultural como um acontecimento discursivo, nos questionamos se ele foi capturado pela FD dominante dissimulando, inclusive na evidência dos sentidos essa própria captura ou ainda, se produziu uma ruptura nas redes dominantes. Para isso, analisamos o funcionamento do discurso da diversidade no primeiro Plano Nacional de Cultura do Brasil (Lei nº 12.343/2010). A opção pelo Brasil se daria pela facilidade do acesso aos documentos e por isso pela consequente capacidade de produzir algo mais relevante, mas sobretudo pela possibilidade de nossa pesquisa poder produzir reflexões e transformações na política cultural do país, ao desconstruir evidências sobre o que seja cultura e diversidade cultural. Já a escolha do Plano Nacional de Cultura (PNC) documento que visa planejar a política cultural do país, a nível tanto federal, quanto estadual e municipal, com duração de dez anos e que tornou-se obrigatório com a aprovação da emenda constitucional nº 48/2005 como corpus de análise, deve-se, pois, para muitos pesquisadores de Estudos Culturais e para o próprio Governo Lula, o PNC se constitui num marco, rompendo com as tristes tradições de ausência, autoritarismo e instabilidade da política cultural brasileira (RUBIM, 2007). Além disso, foi o primeiro documento que versa sobre a diversidade elaborado, enquanto política cultural no Brasil, além de ser o primeiro no campo cultural que, em seus cinco anos de elaboração até ser aprovado pelo Congresso Nacional, contou com a participação de milhares de pessoas, dos mais variados grupos artísticos e culturais de todos os estados do Brasil e por isso poderia ser considerado um discurso da diversidade. Buscamos, assim, questionar com nossa pesquisa: o que está em jogo e o que não está quando se diz diversidade cultural no Plano Nacional de Cultural? O que esses sentidos silenciam? Em quais posições discursivas residem o discurso da diversidade cultural? Em quais memórias poderia e deveria se ancorar o discurso da diversidade cultural no Plano Nacional de Cultural? Em quais formações discursivas esses dizeres da diversidade se inscrevem? E por fim, o discurso da diversidade cultural seria um acontecimento discursivo? [169]

Observando nosso corpus de pesquisa, formado por sete versões do Plano Nacional de Cultura 1, notamos a regularidade da denominação diversidade cultural, que nos chamou atenção. De acordo com Mariani (1998, p. 118), a denominação, enquanto um modo de construção discursiva dos referentes, tem como característica a capacidade de condensar em um substantivo, ou em um conjunto parafrástico de sintagmas nominais e expressões, os pontos de estabilização de processos resultantes das relações de força entre formações discursivas em concorrência num mesmo campo (...) O processo de denominação não está na ordem da língua ou das coisas, mas organiza-se na ordem do discurso, o qual relembrando mais uma vez, consiste na relação entre o linguístico e o histórico-social, ou entre linguagem e exterioridade. Dizer diversidade cultural no Plano Nacional de Cultura parece algo evidente. Entretanto, essa evidência de que, o PNC deveria tratar da diversidade cultural, que por sua vez deveria se referir a uma variedade de culturas se torna menos transparente quando analisamos o percurso para a sua elaboração, tendo a possibilidade de observar o silenciamento de uma variedade de vozes nesse processo. Durante a 1ª Conferência Nacional de Cultura, que reuniu, em 2005, 53 mil pessoas em todas as suas etapas, dos mais variados grupos artísticos e culturais do país, de quase todos os estados, com o objetivo de fornecer diretrizes para subsidiar a elaboração do PNC, foi aprovada a seguinte proposta no eixo Cultura é cidadania e democracia, elaborada pelos participantes do evento: Proposta nº 4 Mapear e valorizar os mestres populares e ativistas culturais, para que possam atuar como multiplicadores, fortalecendo as diversidades (BRASIL. MINC, 2007, p. 456). Quando dizemos, diversidades, no plural, não dizemos diversidade cultural apenas, mas todas as diversidades possíveis. No entanto, essa única ocorrência em todo 1 Tendo em vista que a elaboração do PNC contou com dezenas de milhares de pessoas seria impossível mapear todas as sugestões dadas ao texto. O que analisamos, assim, em nossa pesquisa, são versões publicadas pelo próprio MinC, durante os cinco anos de elaboração, de 2005, quando foi organizada a 1ª Conferência Nacional de Cultura até a aprovação do Plano pelo Congresso Nacional, em 2010, sob a Lei nº 12.343. [170]

o nosso corpus de pesquisa 2 é apagada na primeira edição das diretrizes gerais elaboradas pelos técnicos do MinC. Quando se apaga no PNC, a possibilidade da diversidade no plural, o que resta é a diversidade no singular, ou melhor apenas uma diversidade é possível de ser dita e de ser incluída naquela política. A contradição disso é que quando se diz diversidade, se busca incluir a todos, mas só é possível uma diversidade. Esse apagamento construído nas evidências de que o PNC só poderia tratar da diversidade cultural, apaga um conflito, um jogo de forças que se instaurou na elaboração do PNC, em que outras diversidades foram silenciadas, entre elas a diversidade sexual, como se pode notar analisando as versões do plano. Além disso, durante as sete versões do Plano Nacional de Cultura analisadas, muitas vozes foram silenciadas, vozes que defendiam a inclusão de outras formas de diversidade e também a inclusão no fio do discurso de outros grupos e outras culturas tais como culturas ciganas, culturas dos imigrantes e culturas LGBT. No entanto, tal processo de silenciamento e de apagamento é encoberto pelo discurso da democracia, em que uma maioria de participantes presentes nas conferências, nos seminários, nos encontros e no Conselho Nacional de Política Cultural, debateu e redigiu o PNC, tendo apenas o seu texto final adequado pelos técnicos do MinC. Se o discurso da diversidade é um acontecimento que produz rupturas nas redes de sentido dominantes, ou pelo menos deslocamentos, ainda é cedo para afirmar com nossa pesquisa, mas o que temos observado é que o modo de dizer do MinC de que o processo de elaboração do PNC foi democrático, enquanto há o silenciamento de outras vozes e posições discursivas, nos parece mais uma forma de dissimular, afinal como nos diz Pêcheux (2009 [1975], p. 149) toda formação discursiva dissimula na transparência do sentido que nela se forma (em qualquer das interpretações), a objetividade material contraditória do interdiscursivo. 2 A denominação diversidade comparece no plural, em outro sentido, apenas quando se refere às regiões do país: diversidades regionais. [171]

REFERÊNCIAS: BRASIL. Lei nº 12.343, de 2 de dezembro de 2010. Institui o Plano Nacional de Cultura - PNC, cria o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais - SNIIC e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12343.htm> Acesso em: 12 jan. 2014.. MINC (Ministério da Cultura do Brasil). 1ª Conferência Nacional de Cultura 2005/2006: Estado e sociedade construindo políticas públicas de cultura (versão impressa). Brasília: Ministério da Cultura, 2007. HAVILAND, William; PRINS, Harald; WALRATH, Dana; McBRIDE, Bunny. Princípios de Antropologia. São Paulo: Cengage Learning, 2011. INDURSKY, Freda. Lula lá: estrutura e acontecimento. In: Organon 35, v. 17, Revista do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003. Disponível em: <http://www.seer.ufrgs.br/organon/article/viewfile/30020/18616> Acesso em: 23 jan. 2012. KOTTACK, Conrad Phillip. Um espelho para a humanidade: uma introdução à Antropologia Cultural. São Paulo: Editora Penso, 2013. MARIANI, Bethania. O PCB e a imprensa. Campinas: Unicamp, 1998. ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2007 [1999]. PÊCHEUX, Michel. Papel da Memória. In: ACHARD, Pierre (org.). Papel da memória. Campinas: Pontes, 2007 [1990].. Discurso: Estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 2008 [1990].. Semântica e Discurso. Campinas: Unicamp, 2009 [1975]. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais no Brasil: tristes tradições. In: Revista Galáxia. São Paulo, n. 13, p. 101-113, jun. 2007. Disponível em: <http://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/1469> Acesso em: 15 nov. 2014. [172]