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Introdução Caros internautas, há pouco recebi um e-mail de um amigo me perguntando como tinha sido a viagem que fiz no feriado de Corpus Christi, navegando de Paranaguà à Angra dos Reis Comecei escrevendo sem compromisso, como não quer nada, e quando vi já tinha preechido quatro páginas de aventuras Achei pouco provável que alguém se interessasse por um relato tão longo e resolvi deletar tudo Mas fiquei com pena, me empolguei tanto no texto que não quis jogá-lo fora Dei continuidade à minha descrição: Quem sabe um dia mando para os amigos pensei Pois é, assim nasceu esta narrativa Confesso, fui inspirado por meus queridos amigos cearenses Valmir e Liliana, que moram em Portugal e, em todas sua viagens pela Europa, descrevem suas experiências para os amigos daqui do Brasil Suas anotações são muito bem humoradas e sempre embarco junto com eles quando as leio Meu barco é o veleiro Zimbros Tem 36 pés e foi feito em Porto Alegre nos estaleiros Delta do amigo Ricardo Weber O projeto é do argentino Nestor Volker, um campeão no que faz É novo, a melhor marca que existe, e foi para a água no dia 2 de fevereiro de 2001, dia de Iemanjá Seu porto de parada é o Iate Clube Porto Belo em Santa Catarina Este ano completei 50 anos, e vou dizer pra vocês, não é uma data qualquer Quando fiz 40 foi mais leve, mas meio século é muito mais que meio caminho andado Sou pré-sênior, um gentil eufemismo do caro Hans Voswinckel Então resolvi que não tinha mais tempo a perder, apesar de me achar um cara que nunca perdeu tempo Mas a vida é breve e resolvi dar tratos à bola "Vou me mandar" decidi Mas não é bem assim, minhas responsabilidades ainda são muitas, e tenho um caminhão de coisas que dependem muito de mim Vou me mandar em etapas foi uma solução mais salomônica, e então nasceu este projeto de partir com o Zimbros em direção ao norte, até onde não sei bem A primeira etapa comecei no mês de maio indo de Porto Belo até Paranaguá, onde deixei o barco por cerca de 50 dias A segunda fase da viagem vou descrever agora, procurando mostrar as emoções que passam pela cabeça de quem gosta de aventuras Um monte de bobagens que poderiam ser ditas num papo de botequim Mas como nem sempre posso estar sentado com quem quero nos botecos que gosto, achei que escrever seria uma boa idéia Embora esta seja minha primeira experiência desde que fiz o exame de admissão para o Colégio Militar, há muito tempo Por favor relevem os erros e as chatices Por outro lado vocês podem estar testemunhando o nascimento de um novo escritor (Te cuida Hemingway!) Para minha história não ficar monótona resolvi dividi-la em partes Então vamos lá para a primeira, embarquem comigo, tomem um dramin, respirem fundo e tenham muita paciência

O Zimbros ao alvorecer Parte 1 Saímos de Paranaguá quarta feira dia 18 de junho, véspera do feriadão de Corpus Christi Já era noite, estava frio, não ventava e uma neblina chata deixava o clima molhado A bordo, Tarcisio, Alfredo e eu estávamos um pouco apreensivos Eles são bons, entendem bem de vela e de mar, mas sair pela barra de Paranaguá à noite assusta um pouco O barco tem um aparelho, o chart-plotter, um gps interligado a uma carta náutica que mostra a nossa posição em relação à costa e ao mar, mas não dá para confiar cegamente Ficamos ligados até chegarmos ao mar aberto, lá pela meia noite O encontro da maré enchente com as águas da baia causaram uma ondulação meio assustadora Mas durou pouco, e logo alcançamos uma profundidade mais segura e as vagas ficaram mais regulares Daí em diante tudo ficou tranqüilo e fui dormir Uma foto de satélite da Baia de Paranaguá O medo é uma companhia sempre presente para quem navega, principalmente nas longas travessias Dormimos, comemos e velejamos, muitas vezes sem visibilidade nenhuma Sempre ouço histórias de containers abandonados ou de baleias dormindo que se chocam contra a embarcação Se isto acontecer longe da costa, pode virar uma tragédia Um casco rachado abaixo da linha d água é um pesadelo para qualquer um que está no mar É uma possibilidade remota, mas existe sempre um perigo no ar e o medo nos ajuda a ficarmos ligados Não dá para vacilar com Netuno que ele te engole Quem diz que não sente nada, ou esta mentindo ou nunca pensou direito nas conseqüências de uma pedra no seu caminho

Navegamos todo o dia e toda a noite seguinte sem ver terra, só mar, nuvens e pássaros Na madrugada da segunda noite caiu uma chuva de matar Foi no meu turno, lá pelas três da manhã Eu estava mal vestido, senti muito frio, encharcado e com sono Nestas horas a gente sempre se pergunta o que está fazendo ali e sente saudades no velho travesseiro Mas foi uma breve recaída Logo acordei Alfredo e passei o turno para ele Alfredo Vidal é um amigo do Rio Grande do Sul que mora em Curitiba há mais de 10 anos Aprendeu a gostar do Atlético, de Santa Felicidade, dessas coisas, mas não esqueceu o chimarrão e o Internacional É caladão e reservado, mas que fala as coisas certas na hora certa Quando jovem, foi campeão de monotipos em Porto Alegre, quer dizer, sabe regular uma vela como ninguém Bebe pouco, não fuma e não gosta de música alta O coitado nem imaginava a nau de insensatos em que se foi se meter Alfredo leva o Zimbros com vento a favor Amanheceu e estávamos próximos da ilha São Sebastião no litoral paulista Já tínhamos deixado pra trás Santos o interminável trecho da costa norte do Paraná Resolvemos parar para abastecer mas chegamos ao posto flutuante de Ilha Bela muito cedo, estava fechado Amarramos o barco junto ao seu costado e fomos dormir Acordei com uma algaravia de piratas e pensei que estávamos sendo atacados, embora muitos séculos nos separem das visitas que os ingleses faziam por estas bandas Alarme falso, eram só os frentistas do posto, uma tribo parecida em todo o lugar do mundo Colocamos diesel, água e nos mandamos O café da manhã foi à bordo Paramos num pequeno cais da prefeitura e Tarcísio desceu até a panificadora e trouxe uns pães quentes que levantaram nossa moral O dia estava maravilhoso, soprava uma brisa sudeste, ideal para o nosso rumo Coloquei um blues na vitrola, levantamos a grande, desenrolamos a genôa e miramos a bússola pra ponta da Juatinga, porta de entrada da Baia de Ilha Grande, nosso destino O merecido descanso depois da chegada Final da parte 01

Zimbros em Ilha Bela: pequena parada para comprar pão Parte 2 Ilha Bela ficou para trás e, com um blues na vitrola, levantamos vela e rumamos para a Ponta da Juatinga, porta de entrada da Baia de Angra dos Reis, nosso destino naquela etapa da viagem Ainda faltavam umas dez horas de navegação, mas a região é linda demais e decidimos conhecer algumas enseadas Existem centenas delas por lá Alfredo não concordou, estava com pressa e preferia chegar logo Mas Tarcísio só queria velejar Para mim tudo estava bom, já conhecia aqueles pedaços de paraíso e sabia que valia a pena gastar algumas horas pela região Criou-se um impasse Diferenças a bordo ocorrem sempre, são normais e devem ser resolvidas com bom senso Entretanto há momentos em que opiniões conflitantes viram uma encrenca sem fim Não esqueça, você está numa casquinha de noz com outra pessoa te enchendo o saco, sem lugar para onde fugir, e é obrigado a ficar vendo a cara de quem também quer te jogar no mar Certa vez convidei meu irmão e um amigo que não via há muito tempo para velejarmos em Ilha Grande Ficamos uma semana naquele paraíso, mas foi um inferno e até hoje não me recuperei direito O cara era um chato, tudo o que eu dizia ele argumentava ao contrário Era um tipo "professor de Deus" e queria dar palpites em todos os assuntos Só não o joguei no mar porquê era maior que eu Velejar, muitas vezes, é conviver com forças adversas E as humanas, às vezes, são muito mais difíceis que as naturais Em paz decimos ir para a Enseada da Fortaleza, próxima da Baia de Sítio Forte, famosa por suas marinas Não estava longe, algumas milhas nos separavam do nosso destino Velejávamos muito lentamente quando observei uma lancha enorme, uns 50 pés creio, vindo rápidamente em nossa direção, por boreste Tínhamos a preferência por estarmos com vela, mas a aproximação parecia muito perigosa Seguramente eles nos tinham avistado, apesar de parecer que não Por via das dúvidas, fiz valer a lei do medo, desliguei o piloto automático e assumi o leme para manobrar se fosse necessário O barco passou a uns 30 metros de nossa proa, erguendo uma sucessão de ondas que nos balançaram muito desconfortavelmente Só ai o piloto virou para trás e olhou em nossa direção para ver o estrago que nos tinha feito Este tipo de exibicionista mal educado infesta os mares de todo o Brasil Muitos se acham os donos do pedaço, por conta do tamanho de sua conta bancária O cretino deve ter ganho o dia contando para os amigos a sacanagem que fez conosco Cada um vive suas emoções de acordo com sua natureza

Fomontagem de um trecho do litoral norte paulista Notem a quantidade de enseadas e baias A brisa ficou fraca, cerca de três nós, andávamos muito devagar e decidi apelar para o vento de porão É um corte quando se liga o motor, o barulho tira um pouco da poesia, mas precisávamos ganhar terreno Entramos na enseada da Fortaleza uma praia de ricos, no Município de Ubatuba, longe da Rio-Santos e, portanto, ainda bastante preservada Nem sempre dinheiro e bom senso andam juntos, mas ali parece que deu certo Lanchas apareceram com umas sereias tomando sol no convés e bebericando alguns drinques Gosto de pensar que são elas é quem têm inveja de nós e que adorariam estar velejando conosco Às vezes sonhar é tão bom Desde tempos remotos um perigo que assola todo nosso litoral é a ocupação desordenada dos terrenos costeiros A ambição dos empresários, a ignorância dos moradores e a incapacidade das autoridades municipais em conter os excessos transformaram uma das costas mais bonitas do mundo em uma verdadeira favela Quando mais bonito o lugar mais destrutiva é a ocupação Em Santa Catarina o desmanche segue o rumo sul, a partir de Balneário Camboriú Itapema, Meia Praia, Porto Belo, Bombas e Bombinhas foram totalmente arruinadas num período inferior à vinte anos As praias de Quatro Ilhas, Mariscal, Canto Grande e Zimbros parecem ser as bolas da vez O Caixa D'Aço, um dos lugares mais pitorescos do litoral catarinense, é um dos exemplos mais tristes de poluição Infelizmente o mau gosto, a ganância e a incompetencia ainda são males comuns das nossas elites Prosseguimos em direção à Ilha Anchieta, poucas milhas ao norte Nunca havia parado lá, é a segunda maior ilha do litoral norte de São Paulo Por volta do século XVI era habitada pelos índios tupinambás, liderados pelo famoso cacique Cunhambebe Hans Staden, Manoel da Nóbrega e o próprio José de Anchieta, protagonistas de grandes momentos da nossa história, viveram por ali No decorrer de alguns séculos nela aportaram portugueses, ingleses, franceses, holandeses, escravos e até virou sede de uma vila em 1885, a Freguesia do Senhor Bom Jesus da Ilha dos Porcos Alguns anos depois passou a chamar-se Ilha Anchieta, em homenagem ao famoso jesuíta Em 1942, abrigou uma prisão que, dez anos depois, foi palco da mais sangrenta rebelião de nosso país até aquele momento Muitos morreram e nem mesmo os tubarões que cercavam a ilha foram capazes de deter a fuga dos presos Vejam vocês que a crise do nosso sistema carcerário não é de hoje Atualmente o local abriga a administração do Parque Estadual da Ilha Anchieta e a sede do projeto Tamar

Era sábado, o mar estava cheio de navegadores de final de semana Barcos de todos os tamanhos tomavam conta da paisagem O engraçado era que ninguém cumprimentava ninguém Havia um ar meio blasé entre os embarcados, assim do tipo não sei quem você é, portanto não me incomode que também sou importante Isto não é comum entre os velejadores, nos cumprimentamos sempre e, se possível, trocamos algumas palavras amistosas Somos uma tribo diferente, mais solidária Mas as lanchas são maioria, afinal qualquer bobalhão pode ter uma Vistas da Ilha Anchieta Abri o bar lá pelas onze da manhã É sempre uma hora muito aguardada pela tripulação Procuro esperar até o meio dia, mas a ocasião pedia um drinque e seria bom para a moral da tropa, sobretudo a minha própria Cerveja gelada combina com sábado no mar Para falar a verdade combina com qualquer dia a bordo Vi na carta náutica uma anotação feita por mim anos atrás sobre uma enseada muito pequena localizada a alguns minutos da nossa posição Decido conferir e nos dirigimos para lá Naquele momento ninguém sabia bem o que queria, nem eu mesmo Mas valeu a pena, o lugar era realmente lindo: uma pequena praia com uma casinha de pescador e algumas palmeiras, coisa de fotografia Só cabia um barco lá dentro e já estava ocupada por uma lancha Resolvi me aproximar Contudo, chegando mais perto vi que seria um risco pararmos muito próximo da outra embarcação A correnteza estava forte e poderia nos jogar de encontro às pedras Ficamos de fora, pouca coisa, uns 50 metros ao largo a não mais que quatro metros de profundidade Para surpresa de todos joguei âncora e decidi que o almoço ia ser por lá mesmo E o banho estava liberado Num barco existem muitos tipos de limitações As principais são as de consumo de energia e de água Os banhos em longas travessias devem ser super-regulados Nada dessa história de ficar debaixo do chuveiro quente para relaxar Lavar louça é outro exercício de economia Deve-se tirar o grosso com água salgada e usar a doce só para enxaguar O pior mesmo é o banho O ideal é lavar-se com água do mar e depois, usando uma garrafa de plástico, destas de 1,5 litros, tirar o sal com a água doce Cada tripulante tem direito a uma garrafada por dia Com freqüencia dormimos salgados mesmo As mulheres detestam essa parte A esposa de um amigo me contou que toma banho escondida, enquanto ele dorme Isto daria corte marcial sem direito a recurso, iria pra prancha mesmo O lugar onde paramos para almoçar era perfeito "Chegamos Alfredo" disse a ele Foi engraçado, todos rimos muito e a frase serviu de mote para o resto da viagem Qualquer coisa boa que acontecia dizíamos: chegamos Alfredo Em poucos minutos estávamos nadando A água estava fria, mas maravilhosa, super-transparente, de um verde só encontrado naquelas latitudes Era possível ver todo o costado submerso do barco

De repente acordo com uma balburdia dos diabos no convéns Ouço o barulho da retranca indo e vindo ao sabor dos ventos e a correria da tripulação sobre minha cabeça A cabine em que estava ficava logo embaixo do cockpit e funcionava com o uma caixa acústica Qualquer batida ecoava como a bateria do Led Zeppelin sem melodia Ainda de cuecas subi ao convés e vi um faina de baixa vela, enrola genôa, liga o motor, acelera Era uma bagunça! Escureceu e o céu estava com uma cor chumbo assustadora, parecia que o mundo iria se acabar em instantes Não adiantava perguntar nada pois eles nem deram pela minha presença Mas aparentemente sabiam o que estavam fazendo Então, decidi rápido, voltei pra cama com a determinação de reencontrar com meus doces sonhos Nada de especial aconteu! Foram apenas os preparativos para aguardar uma tormenta que acabou não vindo Umas das piores coisas que podem acontecer enquanto se veleja é ser surpreendido por uma tempestade Já vivi esta experiência uma vez e, confesso, não gostei Estava velejando com o Cordonazo, um Call 92, quando um vento sudoeste de uns 30 nós me atingiu, sem avisar, pela popa com todas as velas em cima Perdi uma genôa e quebrei um dedo Não consegui fazer o enrolador funcionar e a vela ficou batendo com a rajada Rasgou-se como um trapo qualquer Quis segurá-la na mão e lembro-me do meu anular esquerdo fazendo um ângulo de 45º em relação à sua posição normal Na hora do pânico nem senti a dor Sem vacilar coloquei-o no lugar, assim como quem desentorta um garfo Mas o medo, o tal medo que falei antes, é um sentimento maior que os outros, e a dor, simplesmente fica pequena frente à ele Ainda bem que o barco era muito mais resistente que eu, e pude controlar a situação sem outros prejuízos Improvisei uma tala para a mão e voltei para casa mais cedo Ficar engessado por duas semanas foi o pior de tudo Uma bela imagem feita pelo Tarcísio

Já era noite quando voltei para meu turno no cockpit A ponta da Juatinga demorava-nos à proa, parecia que o tempo não passava e o barco não progredia Liguei o motor sob protestos do Tarcísio Se dependesse dele só andaríamos a vela Mas eu só queria chegar A previsão era aportarmos em Parati, mas ficou tarde Entrar à noite em um porto desconhecido com uma tripulação cansada teria muitos riscos Os acidentes acontecem, na maior parte das vezes, na chegada nunca em mar aberto Alfredo costuma dizer que adentrar uma barra à noite é como pousar um Jumbo numa pista molhada Engano dele, é bem pior Pedras e baixios não demarcados, assim como embarcações sem luzes de navegação, são problemas reais e freqüentes Tem muito mané por esses mares, principalmente aos sábados Vinícius estava certo quando afirmou que tudo acontece por culpa dos sábados Veja que até de poesia deve se valer um capitão para estar em segurança Estávamos cansados então decidimos pernoitar na Ilha da Cotia na Enseada de Parati-mirim Conferi se estava tudo ok, se o hélice estava no lugar, se o leme estava fixo, etc Tarcísio mostrou mais um de seus talentos com uma bela macarronada ao molho de tudo que encontrou na cozinha, coisa de alquimista A cerveja corria solta e a alegria tomou conta da tripulação Foi um daqueles momentos que ficam para sempre Mas ainda faltavam 60 milhas pela proa, ou seja aproximadamente dez horas de navegação até a Baia de Angra dos Reis Era uma e meia da tarde, com muita preguiça decidimos partir "Chegamos Alfredo": O Zimbros navega em águas tranquilas Final da parte 02

Parte 3 Tarcísio: o descanso do proeiro! Terminamos de almoçar na Ilha Anchieta mas ainda faltavam 60 milhas para Parati, ou seja, aproximadamente umas dez horas de navegação Recolhemos âncora e tomamos nosso rumo Aconteceu que a cerveja e a macarronada do Tarcísio fizeram um efeito devastador na minha concentração Um sono poderoso tomou conta de mim Confesso que, pela primeira vez na viagem, usei da minha prerrogativa de comandante supremo a bordo e abandonei o cockpit aos cuidados dos marinheiros Fui dormir sem culpa nenhuma Esses caras são os tipos de companheiros que me inspiram total segurança É como cochilar ao lado de um amigo que dirige seu carro numa estrada movimentada Sono profundo, sonhos doces, que agradável sensação enquanto o barco seguia veloz entre as ondas Ouvia apenas o barulho da água batendo no costado É melhor que muito balanço de rede por ai A noite estava um breu, sem estrelas nem lua, quando finalmente vencemos a ponta da Juatinga Ali as águas da Baia de Angra encontram-se com o mar aberto vindo do litoral paulista e a coisa ferve Parece um caldeirão, perfeito para fazer neófitos enjoarem e nunca mais quererem entrar num barco Mas o mar estava tranqüilo, exceto pela correnteza Aumentei a rotação do motor dando mais força ao Zimbros Ele reagiu bem e seguimos adiante Agora tínhamos que navegar com atenção e vencer uma última ponta a bombordo Parece que é sempre assim: quando temos pressa, as pontas sucedem-se infinitamente e nunca vemos as luzes do nosso porto Estávamos no convés, Alfredo e eu, conversando fiado Tarcísio não largava do seu novo brinquedo, o chart-plotter Após vários minutos enfurnado lá dentro surgiu ele na gaiúta de acesso, cigarro na boca, dizendo que íamos passar a alguns metros de uma laje submersa Ok, confio no seu taco, mas se você estiver errado, prepare-se para morrer respondi sem me mover do banco e sem manifestar qualquer emoção

Aquilo foi demais para o Alfredo Ele detesta navegação noturna, acostumado a fazer regatas no Guaíba acha que nas profundezas do mar há sempre uma laje esperando por uma proa Vou dormir, boa noite a todos disse com seu sotaque dos pampas e se mandou pra cama Estranho o Alfredo, um colorado como ele deveria estar mais acostumado a sofrer Na verdade tudo foi um teatro nosso Tarcísio sabia o que estava fazendo e eu sabia que ele sabia Por via das dúvidas dei uma conferida na telinha e vi que estávamos bem safos da pedra Tudo sob controle Tarcísio Mattos é uma figura rara de Floripa Trabalha com fotografia e é o principal responsável por uma editora na cidade Faz belos trabalhos e recentemente presenteou-me com um livro dele sobre a ponte Hercílio Luz Nos momentos de lazer veleja seu pequeno barco Calufa pelas águas daquela ilha Gosta de regatas e para ele vento de três nós é suficiente para velejar O que importa é o caminho, não o destino filosofa citando um mandamento budista Mas ele não tem nada de místico, tem os pés no chão, ou melhor, na proa de um barco adernado, seu lugar favorito Para quem vem do litoral paulista a enseada de Parati-mirim é acessada através de uma pequena passagem entre a Ilha Deserta e o continente Parece seguro, mas as cartas náuticas trazem poucos detalhes desse trecho, e a eletrônica diz que existem pedras por ali No momento da pressa não dava pra usar aquele atalho Deveríamos passar por fora da ilha Aumentaria nosso caminho muitas milhas Há pouco o Tarcísio havia comentado que ouviu alguém dizer não sabia de onde, que a velocidade de encalhe para um veleiro poder dar marcha a ré e safar-se é 3,5 nós Seria verdade? Decidi testar no ato Jack Kerouak, o escritor beat, uma vez afirmou que só vale o que for vivido Resolvi pagar pra ver e tocamos bem no meio da passagem a 3,5 nós de velocidade "Seja o que Deus quiser" pensei Ainda bem que Ele ajudou e deu certo! Só pra lembrar, Kerouak morreu cedo, vítima de suas próprias experiências com drogas e álcool No mar o seguro morre de velho mas gosto de dar trabalho ao meu anjo da guarda Eram aproximadamente dez da noite quando soltamos âncora frente à Ilha da Cotia Já conheica o lugar, um dos mais belos da terra Era noite de lua nova, e mal podíamos distinguir o que nos cercava Haviam alguns barcos e muitas luzes, aparentemente casas novas colocadas nas encostas da ilha e da baia Ocuparam meu paraíso pensei Não existe nada melhor que chegar a um lugar seguro, tomar um Black Label com soda e gelo e relaxar Bastam duas doses pra você alcançar o nirvana Alguns amigos dizem que sexo é melhor Talvez eles nunca tenham vivido a sensação desses momentos A enseada de Parati-mirim é uma pequena baia ainda protegida da invasão imobiliária que atingiu o litoral cortado pela Rio-Santos Suas águas são limpas e claras, não existe poluição por lá À noite é possível contemplar um mar de ardentias brilhando na superfície Ardentias são fosforescências marítimas que brilham à noite São estrelas submersas num firmamento aquático Aquele era um momento mágico, pra mim de felicidade atemporal Acho que sempre vou estar à procura de emoções como aquelas Cura todos os desconfortos de navegar e faz valer a pena não ter a alma pequena Não é sempre que se pode testemunhar isso e sexo, vocês sabem, tem pelo menos uma vez por mês

Uma das muitas pequenas praias próximas à Ilha da Cotia Finalmente amanheceu Era domingo e acordamos lá pelas dez O sol estava quente e a temperatura marcava 25º C Perfeito! E a melhor surpresa estava bem na nossa frente As luzes que eu imaginara ser de construções recentes eram na verdade a iluminação dos mastros de dezenas de veleiros fundeados na enseada Contamos 28 barcos de todos os tamanhos, cores e nacionalidades Poucas vezes eu havia visto tantos veleiros fora de um porto Estar ali no meio daquele mar de aventureiros me fez parecer um pouco como eles Sou de Aquário, um signo do ar Uma sala fechada para mim é uma prisão e sinto que a rotina é como uma doença que mata homeopaticamente Nunca consigo ficar parado e sempre quero estar em lugares diferentes daqueles do meu dia a dia Mas, apesar de tudo, meu cotidiano é comum, minhas idéias são banais e sou uma pessoa que já há muito tempo desistiu de mudar o mundo Quando estou no mar, entretanto, me sinto diferente Enfrentar desafios e vencer meus próprios medos, em certos momentos, fazem me sentir quase como um herói Depois do café da manhã, lá pelo meio dia, a brisa e o calor aumentaram, e a maioria dos barcos seguiu seu rumo Nós também Na saída um problema: o guincho da âncora não funcionava Tive que puxá-la na mão mesmo Droga resmungo alto sem muito razão É mais que normal ter algo estragado a bordo Tomamos as providências e, mais tarde, libertos, estávamos prontos para partir Fizemos algumas fotos e nos despedimos da Cotia O rumo era Parati Um belo barco ancorado na Enseada de Parati-mirim Final da parte 03

Parte 4 Ilha da Cotia Ao deixar a Enseada de Parati Mirim, mostrei à tripulação o Saco de Mamanguá Um braço de mar com cerca de mil metros de largura e que avança para dentro do continente no sentido nordeste-sudoeste por aproximadamente dez quilômetros Cercado por elevações muito altas com mais de quinhentos metros de altura, é muito parecido com um fiorde norueguês, só que com mata atlântica e clima tropical Belo e perigoso lugar Quando sopra o oeste, a ventania encana no vale e desce o morro com força triplicada Vira um Deus nos acuda Diante de margens muito próximas fica muito fácil dar em terra Já encalhei por ali anos atrás Toc-toc! - bati na madeira e viramos o barco para fora do canal O vento, porém estava fraco e Tarcísio queria velejar de qualquer jeito Infelizmente não dava Tínhamos ainda algumas horas até Parati e eu queria chegar cedo à marina, pois não conhecia o ancoradouro de lá Ligamos o motor! Na partida da baia observamos um barco pesqueiro fazendo arrastão Estava acompanhado por dezenas de pássaros que se alimentam com a sobra dos peixes que escapam da rede Uma cena para guardar na memória Nesse momento entrou em cena a incrível erudição do nosso proeiro de bordo, o ornitólogo e grumete Tarcísio Mattos Dentre as aves que lutam por seu almoço, uma se destaca pelo tamanho e pela estratégia, a fragata, explicou-nos ele Negra, tem quase dois metros de envergadura e seu rabo parece uma longa tesoura Durante o acasalamento os machos exibem uma bolsa de pele vermelha embaixo do papo Segundo Tarcísio, este belo animal, devido à sua envergadura, jamais pousa na água, pois seria impossível para ele alçar vôo de novo O que faz o sacana para se alimentar? Fácil: rouba o peixe das aves menores ao seu redor Mas a luta é braba e ninguém entrega sem briga seu pão Contemplamos um belo espetáculo, como um Discovery Chanell ao vivo e a cores Tarcísio: proeiro, taifeiro, ornitólogo, fotógrafo e também navegador

Seguimos adiante, pois ainda tínhamos muito mar pela nossa proa Deixamos esse belo cenário para trás e colocamos força avante no motor, com 2500 rpm e sete nós de velocidade O Zimbros deslizou como nunca por mares tranqüilos Finalmente chegamos às águas frente à Parati A vista da cidade para quem vem do mar é fascinante A primeira impressão que vê o marinheiro é a Igreja Santa Rita cujo desenho barroco se destaca por entre o conjunto colonial da cidade, que foi fundada no século XVI Por essas águas que navegamos passaram muito do ouro das Minas Gerais que ajudaram a abastecer a riqueza da Europa Há quem afirme que a fortuna extraída daqueles sertões de cobiça ajudou a fazer a revolução industrial do velho continente Parati: encalhamos com esta vista A cerveja corria solta há horas, e a nossa alegria transbordava Descobri com os amigos do bar do Iate Clube Porto Belo, o Mar Criado, uma bebida alemã, maravilhosa e diferente, o jägermeister um destilado feito com ervas naturais Não sei bem quais ingredientes fazem parte da sua receita, mas existem coisas que é melhor ignorar mesmo Sirva bem gelado acompanhado de cerveja e aguarde o resultado Como a curiosidade do nosso taifeiro Tarcísio não tem limites, ele resolveu incrementar o drinque e juntou os dois, jägermeister e cerveja, em um mesmo copo Ficou uma delícia, com uma cor de cerveja preta e um gosto bastante exótico, meio amargo, meio doce Infelizmente não posso descrever mais nada sobre o aperitivo porque, a partir de um determinado instante, não consegui me lembrar de mais nada Seguíamos alegretes, observando e fazendo algumas imagens do belo casario da cidade, cada vez mais próximo Mas estávamos ligados ao ecobatímetro, o aparelho que mede a nossa profundidade Estava raso e podíamos encalhar se descuidássemos Nosso calado, a distância entre a linha d água e o final da quilha submersa, é de 1,70 metros, e estávamos no limite Logo Alfredo gritou: Comandante, estamos a um metro e oitenta um metro e setenta um metro e O Zimbros deu uma parada brusca e, porra!, encalhou na lama! Que merda, não podemos pagar um mico destes na frente de todos os saveiros de turistas que estão nos vendo - falei nervoso Eles tinham um calado bem menor que o nosso e estavam em um canal a bombordo de nós No convés pude ver um bando de turistas dançando pagode Outros tiravam fotos nossas Força à ré Virar o rumo para trás, cacete! gritei rápido Forçamos a máquina acima do seu giro normal para tentar sair da enrascada Deu certo e, em pouco, estávamos safos Eu não havia dito que os erros acontecem na chegada?

Giramos 180º a proa e saímos daquele atoleiro Alfredo nos mostrou os mastros do Paratii II e do Paratii, os dois veleiros de Amyr Klink, parados lado a lado, próximos à marina onde deveríamos ir Não tinha como não ver o novo barco do nosso maior navegador Tem quase cem pés, é o maior veleiro construído no Brasil Seu mastro se destaca frente aos outros que estão na marina É de fato um belo barco, parece um tanque de guerra com um design futurista O que mais impressiona são o tamanho do casco e a altura de seus dois mastros Aerorig O Paratii parecia uma miniatura ao lado de seu irmão mais novo Ambos estavam na marina que pertence ao próprio Amyr Navegávamos ao lado do píer quando alguém me chamou do convés de um outro veleiro ancorado na marina Não consegui distinguir quem era, mas parecia um caraíba amigo Aproximamos mais e finalmente reconheci o Betinho do veleiro Odyssea, um brother de Curitiba que soltou suas amarras de Paranaguá e esta morando em Parati já há algum tempo O Paratii II parece um tanque de guerra Nada como chegar a uma cidade estrangeira e encontrar um conhecido Betinho que dominava bem o costume dos nativos, nos deu preciosas instruções para ancorarmos em segurança Resolvemos parar no Recreio Das Caravelas, uma marina a bem ao lado e que pertence ao Aldo, um paulista também exilado naqueles mares A chegada à marina não foi sem problemas Ao tentar pegar o cabo da bóia de amarração de proa com o croque, um gancho que pesca o cabo de dentro d água, Alfredo não conseguiu segurá-lo O veleiro estava muito veloz Resultado: o croque partiu-se ao meio e ficou boiando bem na nossa frente Fiquei furioso com a nossa barbeiragem E o pior, feita bem na frente de todo mundo que estava no trapiche nos observando, inclusive o Betinho Mas, no final, não foi nada grave, e alguns palavrões depois já estávamos devidamente presos em segurança no cais Paramos ao lado do Vagabundo o belo veleiro do saudoso velejador Hélio Setti Pra variar, em minutos começamos uma nova festa! Betinho veio a bordo com a Tothi, sua namorada e nós abrimos todas as garrafas que ainda estavam intactas Foi um grande momento Nada como estar seguro em um cais e poder relaxar Um dos maiores prazeres de quem chega do mar é poder tomar um banho de verdade, sem limitações de consumo Sentir a água quente correr sem economia, usar xampu e sabonete e ficar sobre um chão que não balança Renova a alma e o espírito! Após o banho vestimo-nos com roupas urbanas e fomos para a cidade, distante quinze reais de táxi A noite estava apenas começando

Parati hoje revive parte de seu passado glorioso, quando era um dos portos mais importante do país Quase dois séculos de fartura ajudaram a construir um conjunto colonial que conseguiu sobreviver ao tempo e ao mau gosto As construções históricas estão muito bem preservadas, mas hoje a fonte de renda é outra Um turismo sofisticado é a grande vocação do município Existem centenas de bons restaurantes, hotéis, bares, butiques e ateliês à disposição dos turistas Mas não é para qualquer um, tem que ter grana, pois tudo é muito caro Mas o melhor da cidade é sua localização Entre Rio e São Paulo, atrai o melhor das duas Os cariocas chatos ficam em Angra e os paulistas babacas em Ubatuba Abastecendo a adega do Zimbros Rua de Parati A festa foi boa e fomos dormir tarde Acordamos cedo, era o último dia do feriadão e a tripulação precisava começar seu longo caminho de volta Tarcísio e Alfredo conseguiram uma carona até São Paulo com um velejador que estava atracado na mesma marina que nós Eu ainda fiquei mais dois dias na cidade acompanhando Betinho em seu cotidiano Impressionei-me com a quantidade de velejadores vivendo a bordo Muitos são ex-profissionais liberais que deixaram tudo de lado e escolheram outro modo de vida menos estressante A maioria leva uma vida bem simples, longe de obsessões consumistas próprias das cidades maiores É uma opção que eu talvez nunca tenha coragem de fazer Sou um urbanóide feliz, gosto de cinema, de movimento e de futilidades Mas tenho latente um lado marinheiro diletante Outra surpresa que tive foi com o número de novas marinas que surgiram na região nos últimos anos Há uma boa estrutura náutica a disposição daqueles que querem fazer qualquer tipo de reparo a bordo De Parati saí só em direção ao Porto Marina Bracuhy, 25 milhas no rumo de Angra dos Reis Precisava fazer alguns consertos no Zimbros e lá a oferta de serviços é um pouco melhor Além disso, seria mais fácil chegar ao Rio de Janeiro, de onde eu regressaria para casa Parti ao amanhecer e não havia vento algum Mas a sensação de estar sozinho no mar não tem preço Foram três horas e meia de navegação a motor Ao chegar à marina, deixei o Zimbros aos cuidados do amigo Ramon, outro exilado paranaense que vive lá Certa vez um amigo velejador, não recordo quem, disse que existem dois grandes momentos quando se navega: a hora da partida e da chegada Parti e cheguei Cansado, mas com a alma em paz, retornei para casa Final da parte 04

Parte 5 Voltei à Angra dos Reis um mês depois de ter deixado o Zimbros no Porto Brachy e retomei meu projeto náutico Fiquei quase todo o tempo na marina arrumando o que precisava ser consertado a bordo, e mal consegui terminar tudo que precisava Troquei o guincho da âncora, arrumei o piloto automático, costurei velas e mais uma dezena de pequenas coisas que necessitavam de reparo Labuta dura! É parte da terapia de todo navegador Depois de tudo rapidamente revisado me preparei para partir Muito em breve viria a me arrepender amargamente desta minha pressa Situado na Baia da Ribeira, Enseada Bracuí, o Porto Marina Bracuhy é um condomínio antigo, construído nos anos 70 creio É o maior cais na área de Angra O acesso por mar é fácil e sinalizado e seu pessoal é muito atencioso Os veleiros predominam e protagonizam um belo espetáculo para quem chega ao caís Reencontrei o Ramon, um amigo de Curitiba que hoje mora na marina com a esposa Ana, uma gentil espanhola de Palma de Mallorca Engenheiro mecânico, chutou o balde e há oito anos mora no Maloi, um confortável veleiro de 40 pés Antes de Angra, trabalhou muito tempo no Iate do Capri Ramon e Ana têm grandes planos, e talvez ano que vem eles soltem as amarras da nossa costa em direção ao Mediterrâneo O mundo ficou pequeno para eles Porto Marina Bracuhy

Além do Porto Bracuhy, há muitas outras marinas em Angra, algumas novas em folha No Estaleiro Verolme e na Usina Nuclear existem duas muito bem equipadas Não estive lá, mas soube que são modernas e caras Paguei um preço honesto no Bracuhy onde as mensalidades são bem razoáveis Bem ao contrário do que acontece nas marinas do sul Infelizmente o nosso litoral oferece poucos serviços à sua altura da sua imensa beleza O Paraná e Santa Catarina ainda devem muito aos navegadores Angra dos Reis foi descoberta pelo português André Gonçalves no dia 6 de janeiro de 1502, Dia de Reis, daí o seu nome Caminho obrigatório dos navegadores que iam para a Capitania de São Vicente, vivia infestada por todo tipo de gente ruim Eram corsários e aventureiros de todas as nacionalidades Mas a natureza exuberante soube recebê-los com compaixão São centenas de ilhas, cerca de quatrocentas, uma para cada dia do ano, segundo os moradores Nessa região a Serra do Mar aproxima-se da costa e seu incrível relevo serve de moldura para as águas transparentes da baia Estive ali a primeira vez ainda garoto Aluno do Colégio Militar, fiquei hospedado na Escola Naval, próximo à cidade Lembro-me do fascínio que aquelas águas me causaram Acostumado ao cinza de Guaratuba, foi em Angra que comecei a gostar do mar Voltando ao meu desafio, meu próximo passo seria até Vitória no Espírito Santo, com uma parada estratégica em Cabo Frio Para essa perna da viagem eu teria a companhia do Betinho, o amigo paranaense que reencontrei ancorado em Parati Navegador experiente, ele me inspirava bastante confiança para vencer o trecho de aproximadamente 350 milhas náuticas que nos esperava A viagem parecia ser sem surpresas, já que nós dois já conhecíamos essa parte da costa brasileira O único desafio seria a passagem pelo Cabo de São Tomé Esperávamos ventos favoráveis O serviço de meteorologia previa ventos fracos vindos do quadrante norte Vai ser um passeio pensei Triste engano! O Zimbros Saindo do Bracuhy

Betinho se apresentou no cais de embarque no final da tarde de quarta-feira, dia 23 de julho Abastecemos e nos dirigimos ao centro da cidade de Angra, rumo ao Pirata s Mall, um shopping-center relativamente novo, localizado às margens da baia O local tem uma estrutura interessante, com hotel, marina, heliporto e um cais de desembarque Na alta temporada há um congestionamento de iates, helicópteros e ricos de todas as classes A entrada do atracadouro é pequena e não comporta todo o movimento dos turistas que querem matar o vício das compras Dizem até que saem no braço por uma vaga no píer No deck do trapiche, mulheres de todos os preços, umas difíceis outras fáceis, saltos altos presos às frestas da madeira e a fragrância de caros perfumes misturados ao cheiro de merda que emana da baía Um caos! Porém a noite parecia calma para nós A marinha estava deserta, não havia nenhum outro barco à vista Ao desembarcar fomos recepcionados pelo segurança invocado que logo marcou seu território: Aqui é só para desembarque e para compras rápidas E tem mais, cuidado, se for deixar o barco aqui que os cara soltam os cabo Com todo tato explicamos que íamos ao supermercado e, em menos de uma hora daríamos o fora Mas ele não pareceu convencido e não parava de falar nos nossos calcanhares Cheguei a desligar os ouvidos para não me abalar com sua ladainha Tudo bem, o cara era pago para desconfiar, mas ele podia ser um pouco menos insistente Por um segundo tive saudades do Mailer, o nosso gerente linha dura lá do Iate Porto Belo Os navegadores de Floripa, que costumam reclamar dele, deveriam fazer uma escala aqui em Angra para ver o que é tratamento Abastecer um barco para uma travessia de vários dias é uma arte que requer experiência Como disse, uma das limitações em um veleiro é a de energia elétrica A geladeira deve funcionar apenas com o motor ligado, ou no máximo algumas horas quando parados Isto quer dizer que nem sempre é possível contar com alimentos que necessitam de refrigeração Outra dificuldade é o espaço de armazenamento que é muito limitado Na hora da compra é preciso ser prático para evitar excessos ou faltas Verduras, legumes, massas, lentilhas e sopas em pacote e em latas são uma dieta legal Tem-se que saber que, dependendo do tamanho do mar, não é possível cozinhar absolutamente nada Cereais em barra e frutas são uma boa opção Sucos também Outro ponto importante é que os alimentos devem cozinhar rápido, porque o gás também não pode ser desperdiçado Por garantia fomos a um Bob s e nos empanturramos com um X-Tudo e muita batata frita antes de encarar a viagem Quando voltamos ao barco, às dez da noite, o segurança tinha sumido Arrumamos tudo no lugar e nos preparamos para sair dali O plano era jogar âncora num lugar mais calmo, dormir um pouco e partir ao amanhecer Mas estávamos seguros no píer, assim resolvemos que íamos dormir lá mesmo O pior que nos poderia acontecer era sermos acordados no meio do sono e obrigados a cair fora antes Não deu outra, lá pelas tantas da madrugada, outro segurança nos chamou e, um pouco mais educadamente nos disse que não poderíamos amanhecer ali Negociamos uma trégua e juramos que antes do dia clarear, estaríamos longe Ganhamos algumas horas a mais de sono e lá pela cinco e meia da matina, soltamos nossas amarras do trapiche Voltaríamos a pisar em terra somente em Cabo Frio

A partida é um momento litúrgico! Ficamos livres, dependentes apenas de nós mesmos e das forças da natureza É uma hora grandiosa e apreensiva ao mesmo tempo Escuro ainda, eu ia ao leme sonolento, circulando por entre bóias, barcos e lajes submersas Mal podia distinguir as luzes de sinalização das outras da cidade e das embarcações ao redor O cheiro do esgoto que cai na baia ardia nas narinas Fazia frio e a noite estava estrelada Sorte que nos agasalhamos Tenho um gorro que é muito confortável nestas horas, pois protege as orelhas, as primeiras a ficarem geladas Lentamente as luzes do alvorecer despontaram e o perfil das montanhas começou a aparecer no horizonte O barulho distante das aves marinhas anunciaram que um novo dia ia raiar Imaginar que o mundo começava a ferver ao nosso redor e que nós estávamos naquela paz incrível era impagável Uma xícara de café quente na mão, Tom Jobim na caixa, acelerei o motor e o barco seguiu deliciosamente por entre o amanhecer O Capitão Gancho Final da parte 05

Parte 6 Partimos de Angra dos Reis no frio amanhecer de um dia de inverno O rumo era Vitória no Espírito Santo com uma escala para abastecimento em Cabo Frio Tudo estava perfeito, mar calmo, temperatura boa e até um vento de noroeste soprava a favor, com rajadas de 15 a 20 nós Lá pelas oito da manhã içamos vela, desligamos o motor e ficamos largados no cockpit tomando um solzinho de inverno Nessas horas os assuntos vão aparecendo assim do nada e ficamos horas de papo furado, cada qual contando suas histórias de navegador Luis Alberto Macedo é paranaense e veleja há mais de vinte anos Engenheiro civil, foi outro que não quis agüentar as instabilidades da nossa economia, fechou sua empresa e deu um chega pra lá nas chatices do dia a dia Içou panos e deu um rumo novo para sua vida Além da vela tem outras paixões como o vôo livre Já foi tetra-campeão paranaense, campeão catarinense, sul americano entre outros títulos Sempre com um sorriso no rosto, seus casos são inacreditáveis Divirto-me muito com suas experiências e me sinto um amador frente à suas histórias Betinho na chegada ao Cabo Frio Prosseguíamos tranqüilos com um vento fraco de través O barco andava lentamente, não tínhamos nenhuma pressa A previsão de chegada em Cabo Frio seria lá pelas duas da madrugada, portanto, não fazia mal algum atrasarmos um pouco Além de aventureiro, Betinho é também um excelente cozinheiro, e lá pelo meio dia, preparou um excelente macarrão à bolonhesa com refogado de legumes e vinho branco, perfeito! Pouco depois já conseguíamos visualizar o contorno do Rio de Janeiro O Pão de Açúcar, o Corcovado e o Morro Dois Irmãos fazem um belo perfil, e sempre imagino o fascínio que causaram nos primeiros portugueses que ali chegaram