CONSULTA N.º 51/2008 Sigilo Profissional OBJECTO DA CONSULTA Em de de, (entrada com o número de registo ), a Senhora Advogada, Dra...., solicitou ao a emissão de parecer quanto à questão que passamos a enunciar. No âmbito da sua actividade profissional, a Senhora Advogada consulente exerce as funções de supervisão do contencioso judicial com clientes, num determinado grupo económico. Essas funções reconduzem-se, no essencial, à interpelação de clientes para o pagamento de facturas, à gestão dos requerimentos de injunção e ao patrocínio de acções judiciais. A Senhora Advogada consulente assume com outros advogados da sua cliente o patrocínio destas acções mediante procuração conjunta, apenas intervindo quando requerido pelos Colegas a quem se associa nesses patrocínios. Numa acção especial para o cumprimento de obrigações pecuniárias que correu os seus termos no Tribunal de..., a procuração forense foi emitida a favor de um Colega, que efectivamente exerceu o patrocínio, e da Senhora Advogada consulente, que, segundo alega, não teve qualquer intervenção nos autos. 229
A determinada altura, o Colega que efectivamente exerceu o patrocínio da cliente da Senhora Advogada consulente substabeleceu, com reserva, os seus poderes num advogado com domicílio profissional sito na comarca de... Findo o processo, o Colega substabelecido intentou contra a cliente da Senhora Advogada consulente uma acção de honorários, reclamando honorários que excedem o triplo daqueles que, alegadamente, terão sido ajustados. A Ré contestou a acção e entende que o depoimento da Senhora Advogada consulente é importante, atentas as funções por ela exercidas na empresa. Suscitam-se dúvidas à Senhora Advogada consulente quanto à existência de alguma incompatibilidade e/ou impedimento de ordem deontológica e/ou legal relativamente ao testemunho a prestar na acção de honorários, que corre por apenso à acção em que tinha procuração conjunta. PARECER Da factualidade descrita, destacamos, por ora, os seguintes factos: - Na acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias que correu os seus termos no Tribunal de..., a Senhora Advogada consulente representou, com procuração forense conjunta a sua cliente e Autora. - O Advogado substabelecido nesta acção instaurou uma acção de honorários contra a Autora e cliente da Senhora Advogada consulente. - A acção de honorários corre por apenso à acção especial de cumprimento de obrigações pecuniárias. Ora, partindo desta factualidade, parece-nos que a resposta a dar passará pela análise de duas questões prévias: 1. Primeiro, saber se a Senhora Advogada consulente poderia, em tese, depor na qualidade de testemunha, no âmbito da acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias que correu termos no Tribunal de... 230
Nesta, a Senhora Advogada consulente tinha procuração forense conjunta, mas alega que não teve nos autos qualquer intervenção. 2. Segundo, saber esta resposta terá alguma repercussão quanto à possibilidade da Senhora Advogada consulente poder depor na acção de honorário, que corre por àquela. Tem sido jurisprudência constante, pacífica e unânime dos diversos órgãos da Ordem dos Advogados e dos seus doutrinadores que, tendo o Advogado iniciado a condução judicial do processo, com procuração junta aos autos, não poderá depor nesse mesmo processo, mesmo após a cessação do mandato. Respigando o que se escreveu no Parecer do Conselho Geral n.º E 950/1993, de 22 de Setembro, em que foi relator o ilustre Advogado Augusto Ferreira do Amaral, Não é admissível que se acumule a qualidade de julgador com a de parte, a de autor ou queixoso, de réu ou de arguido, a de testemunha ou perito com a de parte. Inúmeros são os preceitos que procuram assegurar a concretização deste princípio. Princípio que é intuitivo, como o é a proibição do incesto nas sociedades humanas. Ora, o Advogado a quem incumbe o patrocínio de algum dos interessados no processo confunde-se, na sua função, com o representado. O mandato é justamente uma figura que se caracteriza pela produção de efeitos dos actos do mandatário na esfera jurídica do mandante. Em termos jurídicos, a actuação do mandatário é, em princípio, como se fosse exercida pelo mandante. É pois em nome dum princípio geral do processo que o depoimento como testemunha do Advogado de qualquer das partes processuais não deve ser admitido. Mas há ainda outra razão fundamental pela qual tal depoimento não pode ser considerado legal. É que não parece compatível a função da testemunha no processo com a do Advogado de alguma das partes. 231
Com efeito, a testemunha tem como função e como dever a comunicação ao tribunal de todos os factos sobre que seja interrogada e de comunicá-los em termos totalmente isentos e objectivos. O Advogado tem deveres processuais algo diferentes. É certo que ele é um participante na realização da Justiça. Mas é-o duma forma especial. Há algo de deliberadamente artificial na actuação que a lei prevê para o Advogado. Ele não é um simples observador isento, imparcial e objectivo. Ele é um activo e militante defensor dos interesses do representado. O Advogado está sempre limitado, não apenas pela verdade, mas também pelo interesse da parte que representa. Muitas limitações tem a sua intervenção, quando um e outro princípio se chocam. O interesse do representado deve por ele ser salvaguardado em muitas circunstâncias contra uma regra absoluta da ilimitada revelação da verdade. Ora, quem está investido nessa posição processual sui generis, que lhe comete o direito e mesmo o dever de reservar factos de que tenha conhecimento, desde que possa estar em causa o interesse do cliente, não pode ser uma testemunha, no verdadeiro sentido da palavra. Não está no processo para revelar toda a verdade de que tenha conhecimento, mas sim para desempenhar duma forma especial, interessada e empenhada, a colaboração com a Justiça. Não são conciliáveis as duas posições. Não parece pois admissível que o Advogado duma das partes do processo deponha como testemunha, enquanto detiver tais funções. Também no Parecer do CDF n.º P-12/2007, de 17 de Maio de 2007, foi entendido que: A génese de toda esta questão localiza-se no omisso, ou seja, não se encontra explicitamente determinado pela legislação processual aplicável, maxime, Código de Processo Civil, que existe incompatibilidade, ou impedimento, na questão em causa. Ao verificarmos o disposto quanto à prova testemunhal, à inabilidade para depor, e, mais concretamente, à capacidade (ou incapacidade), e impedimentos, verifica-se não existir impedimento legal 232
declarado, quanto à questão em causa, nem, tão pouco, ser considerado incapaz para testemunhar o advogado que é, simultaneamente, Mandatário e Testemunha nos mesmos autos, partindo-se do princípio que este não preencha os requisitos do artigo 616.º/1 do C.P.C. Resultará da omissão uma porta aberta, ou seja, uma permissão? Bastará a análise dos dispositivos que regem a parte processual civil, para se aferir da existência, ou não, de incompatibilidade e impedimento? Somos do entender que não. No caso em análise, pretende-se a prestação de depoimento como testemunha, em processo que se encontra a decorrer e, em virtude do qual, se encontra estabelecida uma relação jurídico-processual do Advogado com alguma das partes do processo. É inaceitável autorizar um Advogado a depor em processo, no âmbito do qual se encontra constituído como mandatário. Apesar de tal proibição não constar de norma expressa, seria a completa subversão do sistema processual e altamente desprestigiante para a Advocacia admitir tal hipótese. Tem-se entendido que tal não é possível, pela simples razão que a assunção simultânea da qualidade de testemunha e mandatário no mesmo processo são, por natureza, tendo em conta os direitos e deveres que a lei a ambos atribui, incompatíveis. Na acção especial para o cumprimento de obrigações pecuniárias, a Senhora Advogada consulente alega que não teve qualquer intervenção nos autos. Esta circunstância põe em causa o entendimento de que o Advogado que tenha iniciado a condução judicial do processo, com procuração junta aos autos, não poderá depor nesse mesmo processo? É o que veremos de seguida. 233
Os advogados são prestadores de serviços que põem à disposição dos seus constituintes os seus conhecimentos de direito e a sua experiência profissional, com vista à obtenção de um determinado resultado. Quando os advogados, no exercício da sua profissão, aceitam procuração dos seus constituintes a instituí-los procuradores, com amplos poderes forenses, vinculam-se a praticar actos jurídicos por conta dos clientes e actos voluntários capazes de produzir efeitos de direito, e através dos quais realizarão a gestão jurídica dos interesses dos mandantes. Quando o cliente celebra com o advogado um contrato de mandato, outorgando-lhe procuração forense, o mandatário obriga-se a fazer a gestão jurídica dos interesses cuja defesa lhe é confiada, através da prática, em nome e por conta do cliente/mandante, de actos jurídicos próprios da sua profissão. Nos termos da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto Lei dos actos próprios dos advogados e dos solicitadores considera-se mandato forense o mandato judicial conferido para ser exercido em qualquer tribunal. Mas é evidente que o mandato forense assim definido, pressupõe, também, a prática de um conjunto de actos não judiciais, próprios da profissão, e não apenas a prática de actos judiciais, entendidos estes como a prática de actos jurídicos perante o Tribunal. Por outras palavras, diremos que a circunstância da Senhora Advogada consulente referir que não teve nos autos qualquer intervenção não altera, em nada, o entendimento que foi anteriormente exposto, estando, portanto, impedida de depor como testemunha na acção especial pelo facto de ser mandatária nesse processo. O que facilmente se alcança se atendermos à possibilidade de confusão entre as duas funções exercidas (mandato e testemunha), à necessidade de cumprir o princípio geral da não promiscuidade, à impossibilidade prática da prestação de um depoimento isento e objectivo (vital para uma testemunha) e ainda aos deveres, legais e estatutários, do advogado em manter sigilo profissional, sobre os factos que conheceu. 234
E esta conclusão é extensiva à acção de honorários, pelo simples facto da mesma correr por apenso à acção já finda? Parece-nos que não. De facto, diz-nos o artigo 76º do Código de Processo Civil que: 1. Para a acção de honorários de mandatários judiciais ou técnicos e para a cobrança das quantias adiantadas ao cliente, é competente o tribunal da causa na qual foi prestado o serviço, devendo aquela correr por apenso a esta. 2. Se a causa tiver sido, porém, instaurada na Relação ou no Supremo, a acção de honorários correrá no tribunal da comarca do domicílio do devedor. Ora, a competência por conexão aqui prevista, pela sua inserção sistemática Secção IV (competência territorial), do Capítulo III, do Livro II é relativa à competência territorial, pressupondo a sua aplicação que esteja previamente resolvida a questão da competência em razão da matéria. Assim, o n.º 1 do artigo 76º do C.P.C., ao mandar propor a acção de honorários no tribunal da causa em que foi prestado o serviço, tem unicamente por fim resolver o problema da competência territorial e, pressupõe necessariamente, que o tribunal da causa tem competência em razão da matéria para conhecer da acção de honorários. Ou seja, no caso concreto, o facto das acções estarem apensas não significa que sejam materialmente conexas. Estão em causa acções com sujeitos, causas de pedir e pedidos distintos. E, na acção de honorários, a Senhora Advogada consulente não patrocina os interesses de quaisquer das partes. Pelo que o impedimento apontado, em sede da acção especial, ao depoimento da Senhora Advogada consulente, não se verifica na acção de honorários. 235
Sem prejuízo do exposto, não poderá a Senhora Advogada consulente esquecer que está sujeita a sigilo profissional quanto aos factos cujo conhecimento lhe adveio da relação profissional que a liga à sua cliente e Ré na acção de honorários. Ora, a separação entre aquilo que está sujeito a sigilo e aquilo que não está, caberá, num primeiro momento, à Senhora Advogada consulente que, na dúvida, deverá solicitar a pronúncia do Conselho Distrital quanto à sujeição ou não de determinado facto ou acervo de factos em concreto à obrigação de guardar segredo profissional. Esta pronúncia, da competência do Presidente do C.D.L. ou do Vogal com poderes delegados deve ser prévia à divulgação em juízo dos factos em concreto eventualmente abrangidos pela obrigação de sigilo profissional, sob pena da Senhora Advogada consulente poder incorrer em responsabilidade disciplinar. CONCLUSÕES 1. Tem sido jurisprudência constante, pacífica e unânime dos diversos órgãos da Ordem dos Advogados e dos seus doutrinadores que, tendo o Advogado iniciado a condução judicial do processo, com procuração junta aos autos, não poderá depor nesse mesmo processo, mesmo após a cessação do mandato. 2. Este entendimento é, a nosso ver, extensivo aos casos em que o Advogado tem procuração conjunta mas não tenha praticado quaisquer actos judiciais, entendidos estes como a prática de actos jurídicos perante o Tribunal. 3. A competência por conexão prevista no artigo 76º do Código de Processo Civil, pela sua inserção sistemática Secção IV (competência territorial), do Capítulo III, do Livro II é relativa à competência territorial, pressupondo a sua aplicação que esteja previamente resolvida a questão da competência em razão da matéria. 4. O n.º 1 do artigo 76º do C.P.C., ao mandar propor a acção de honorários no tribunal da causa em que foi prestado o serviço, tem unicamente por fim resolver o problema da competência territorial e pressupõe necessariamente, que o tribunal da causa tem competência em razão da matéria para conhecer da acção de honorários. 5. Daqui se conclui que, o facto da Senhora Advogada consulente estar, em tese, impedida de depor na acção especial de cumprimento de obrigações pecuniárias, 236
por nesta possuir procuração forense conjunta, não a impede de depor na qualidade de testemunha na acção de honorários pendente que corre por apenso àquela acção já finda. 6. A Senhora Advogada consulente está sujeita a sigilo profissional quanto aos factos cujo conhecimento lhe adveio da relação profissional que a liga à sua cliente e Ré na acção de honorários. 7. A separação entre aquilo que está sujeito a sigilo e aquilo que não está, caberá, num primeiro momento, à Senhora Advogada consulente que, na dúvida, deverá solicitar a pronúncia do Conselho Distrital quanto à sujeição ou não de determinado facto ou acervo de factos em concreto à obrigação de guardar segredo profissional. 8. Esta pronúncia, da competência do Presidente do C.D.L. ou do Vogal com poderes delegados deve ser prévia à divulgação em juízo dos factos, em concreto, eventualmente abrangidos pela obrigação de sigilo profissional Lisboa, 15 de Janeiro de 2009 A Assessora Jurídica do C.D.L. Sandra Barroso Concordo e homologo o despacho anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados, Lisboa, 16 de Janeiro de 2009 O Vice-Presidente do C.D.L. Por delegação de poderes de 4 de Fevereiro de 2008 Jaime Medeiros 237