Revista África e Africanidades Ano 2 - n. 5 - Maio. 2009 - ISSN 1983-2354 www.africaeafricanidades.com



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Tradição Oral A tradição oral em Niketche: Movimentos e ritmos vitais na dança do amor Por André Sampaio Mestrando em Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal Fluminense E-mail: andresampaio2000@yahoo.com.br O meu amor. Tem um jeito manso que é só seu. De me fazer rodeios De me beijar os seios. Me beijar o ventre. E me deixar em brasa. Desfruta do meu corpo. Como se o meu corpo fosse a sua casa. Chico Buarque Quando nos propomos a dar um grande mergulho nas literaturas africanas de língua portuguesa nos deparamos quase sempre com tesouros da escrita literária, ora com um autor, ora com outro. Uma escrita que tende a ser parecida com a brasileira por sua língua comum e até mesmo por ser forjada também nos alicerces de uma reconstrução cultural pautada sob o signo do pós-independência. Porém, mesmo com essas características comuns, a escrita africana de língua portuguesa acaba por mostrar realidades bem diferentes das que vivemos e conhecemos por aqui. Paulina Chiziane, com seu romance Niketche, uma história de poligamia representa um desses belos exemplos de escrita, pois através de elementos culturais específicos apresenta a riqueza encontrada em Moçambique e nos leva por caminhos ainda pouco explorados e percorridos. O romance que chega para desmistificar as relações sociais tão impregnadas nas sociedades colonizadas por Portugal, como Moçambique. País dividido entre

práticas tradicionais e práticas herdadas da colônia portuguesa. Rico em descrições, o romance nos traz sensações quase reais, onde os cheiros, as cores, os ambientes e os sentimentos das personagens são relatados de forma concreta e apresentados sem exageros, chegando a uma formula perfeita que leva o leitor a fundo no perfil complexo das personagens. Por isso a leitura oferece uma viagem através da voz de uma mulher ao seio do intimo feminino, numa sociedade onde o grande portador da voz é sempre o homem. Em Niketche o universo das mulheres ganha cores mais específicas, deixando de ser um mero elemento figurativo, dando lugar ao olhar diferenciado feminino. Niketche, uma história de poligamia tem como narradora e protagonista Rami, uma mulher que vive sob o signo da infidelidade de seu marido. Uma moçambicana que pensa e age sobre a condição de mulher negra, á margem da sociedade, da família e do casamento. Rami busca seu verdadeiro lugar, refletindo sobre o seu próprio eu, buscando o melhor caminho para lidar com a colisão dos opostos mulher/homem, esposa/amante, monogamia/poligamia, tradição/ruptura, numa dança da existência, na solidão do seu íntimo, cometendo erros e acertos na busca incessante da sua própria identidade. Rami é o reflexo da verdade, do amor, do antiamor, da vitória, da conquista, da vingança, da incerteza, do paradoxo, do medo, da submissão e da ruptura. Já Tony, marido de Rami representa a unidade nacional, o homem, o patriarca, a força, a violência e o controle. O suposto protetor da tradição colonial. Julieta, Luísa, Saly, Mauá, Eva, Gaby e Saluá, são mulheres sem rosto, com pouca definição, fragmentos de uma mesma mulher. Amantes de Tony e no decorrer do romance aliadas de Rami. Metade do norte, metade do sul de Moçambique. Mulheres em situação similar, mas com comportamentos culturais distintos. Vito é o amante dividido. Luísa o empresta a Rami para acabar com as suas carências de mulher. Vito é apaixonado por Luísa e vê em Rami a esposa perfeita, porém apagada pela falta de afeto e atenção. Vito representa uma das grandes rupturas vivida por Rami, o adultério. Levy, o irmão de Tony, herdeiro de uma noite com Rami, depois da suposta morte de Tony. De acordo com a tradição a esposa depois da morte do marido é oferecida ao irmão do esposo. Como prática tradicional de finalização do luto. Levy é a chave de vingança que Rami utiliza para mostrar a Tony o próprio gosto da obediência imposta pela tradição.

Com o passar dos tempos a literatura se modificou, se modernizou obedecendo aos conceitos e transformações arraigadas pelos processos ocorridos nos estilos, gêneros e maneiras de se ver a literatura como um todo. A literatura moderna possui elementos específicos dela, como já vimos através de grandes autores, como Benjamin, por exemplo. Uma dessas transformações foi o papel do narrador dentro das narrativas; com o passar do tempo esse narrador foi se calando, dando lugar a outros elementos inerentes a obra. Porém hoje há um ressurgimento desse narrador participante. Aquele que pega a mão do leitor e o leva para os caminhos da estória, indicando o melhor trajeto a ser seguido. Paulina Chiziane através de Rami, a narradora da obra, estabelece um reencontro ao contar de estórias. A voz de Rami é o pano de fundo de toda a trama e assim no final do romance, o leitor tem a deliciosa sensação de voltar no tempo, onde a experiência possuía grande importância, onde o ouvir era mais valioso do que o falar. Paulina Chiziane revisita essa atmosfera tradicional do contar de estórias, mesmo que através de denúncias sociais, seu leitor não deixa de experimentar essa prática deixada de lado com o tempo. Por ser africana e fazer parte de uma sociedade onde ainda a experiência tem seu valor Paulina Chiziane coloca em foco essa tradição, passar conhecimento através do tempo, onde o mais velho tem sempre uma boa estória para contar: Eu sou aquela que tem o um espelho como companhia no quarto frio. Que sonha o que não há. Que tenta segurar o tempo e o vento. Só tenho o passado para sorrir e o presente para chorar. Não sirvo pra nada. as pessoas olham pra mim como uma mulher falhada. Que futuro espero eu? O marido torna-se turista dentro da própria casa. As mudanças correm rápidas neste lar. As mulheres aumentam. Os filhos nascem (...) (CHIZIANE, 2004. p. 65) Em Niketche o espaço é definido por Moçambique, norte e sul do país delimitam acontecimentos, realidades, costumes e até mesmo elementos físicos das personagens. O norte e sul estabelecem a fronteira entre a tradição e ruptura de costumes locais tradicionais. De um o catolicismo colonial, do outro, elementos islâmicos entrelaçados com cultos ancestrais. E assim até o vestuário, a alimentação, o comportamento, a posição dentro do social diante do local, se modificam. Como percebemos, o gênero é uma questão fortemente discutida no romance, pois Rami, a protagonista não aceita sua vida, refletindo, indagando sempre sobre sua condição mulher. Questões como o casamento, a divisão do trabalho, o espaço da mulher dentro da sociedade, o poder masculino sob a fragilidade feminina são

intensamente debatidos pela voz de Rami e pelas vozes das outras esposas de Tony. Nesse sentido, podemos até dizer que a própria Paulina Chiziane traz essa discussão no seu romance com o intuito de estabelecer uma reflexão da sua própria trajetória dentro e fora do circulo literário, antes disso do seu próprio lugar dentro da sociedade moçambicana, que em grande parte é de poderio patriarcal. Moçambique, como o Brasil, é um país que abarca várias religiões num sistema constante de transformações. Diante disso encontramos lá o catolicismo, o islamismo, o protestantismo e os cultos ancestrais tradicionais, variando a intensidade de acordo com a região. Esse tipo de relação com o religioso se dá pelo fato da grande mistura cultural encontrada em Moçambique, mudanças ocorridas através da história, de processos sociais e de diálogos entre manifestações de diversas crenças. Moçambique foi colônia de Portugal até 1975, sua estrutura está intrinsecamente ligada aos costumes portugueses. Após a independência a nação moçambicana começou um processo de reintegração e de busca de uma identidade nacional, mesmo sendo um processo que pode ou não gerar um resultado satisfatório. A busca existe, porém as heranças coloniais estão em toda parte, começando pela própria língua falada em território nacional: o português. Todo país que passa por um processo de independência tem na sua base a resistência. Num confronto entre a tradição e a modernidade, numa luta por liberdade, pela busca de uma identidade. Moçambique, como outros países africanos que foram colônia de Portugal, resistiu e tentou proteger a todo custo uma identidade não modificada por inteira pela própria colônia. Porém mudanças nesse tipo de domínio são inevitáveis. Contudo pela força do desejo de liberdade, sociedades como a moçambicana conseguiram manter vivas práticas e elementos originais que nem o tempo nem o domínio do outro conseguiram apagar. Num ato de pura resistência e preocupação com o futuro Moçambique é um território onde a resistência começa nos limites onde a voz pode chegar. O romance é uma contação de estória, com movimentos retilíneos, numa composição bem tradicional com início, meio e fim. Como as antigas estórias já canonizadas pela tradição, Niketche oferece aos seus leitores o doce navegar que a literatura pode oferecer. Movimentos vêm e vão com o passar do tempo, transformações são inevitáveis com a chegada da modernidade. Contudo, o mergulho que se dá ao mundo de Rami através do romance de Paulina Chiziane, garante o estar novamente nas belas margens do oral poetizado.

Uma característica comum na literatura africana de língua portuguesa é trazer o entre lugar, o falar por uma nova perspectiva. Paulina Chiziane é um belo exemplo dessa escrita que possui o olhar de quem está na terceira margem. O definir o que é permanecer o tempo todo numa fronteira, onde o discurso nunca é estático, imutável. E o rio representa em Niketche esse entre lugar, pois as águas nunca param de rolar. A minha vida é um rio morto. No meu rio as águas pararam no tempo e aguardam que o destino traga a força do vento. No meu rio, os antepassados não dançam batuques nas noites de lua. Sou um rio sem alma, não sei se a perdi e nem sei se alguma vez tive uma. Sou um ser perdido encerrado na solidão mortal. (CHIZIANE, 2004. p. 18) Sou um rio. Os rios contornam todos os obstáculos. Quero libertar a raiva de todos os anos de silêncio. Quero explodir com o vento e trazer de volta o fogo para o meu leito, hoje quero existir. (CHIZIANE, 2004. p. 19) A dança no romance vem para mostrar a sensualidade, o erotismo ocultado por tanto tempo num discurso feminino. A dança acaba sendo uma forma de metáfora da existência de Rami, que busca incansavelmente o prazer de estar viva. Niketche, a dança do amor é o mecanismo responsável pela ligação entre passado, presente e futuro. Onde o ritmo e os movimentos misturam o tempo, numa grande representação do inteiro, do todo, do reencontro com o passado, da análise do presente e da projeção do futuro. Niketche, a dança do amor representa o re-estar em lugares onde somente a memória pode nos levar. Niketche, a dança do sol e da lua, dança do vento e da chuva, dança da criação. Uma dança que mexe, que aquece. Que imobiliza o corpo e faz a alma voar. As raparigas aparecem de tangas e missangas. Movem o corpo com arte saudando o despertar de todas as primaveras. Ao primeiro toque do tambor, cada um sorri, celebrando o mistério da vida ao sabor do niketche. Os velhos recordam o amor que passou, a paixão que se viveu e se perdeu. As mulheres desamadas reencontram no espaço o príncipe encantado com quem cavalgam de mãos dadas no dorso da lua. Nos jovens, desperta a urgência de amar, porque o niketche é sensualidade perfeita, rainha de toda a sensualidade. Quando a dança termina, podem ouvir-se entre os assistentes suspiros de quem desperta de um sonho bom. (CHIZIANE, 2004. p. 160) Quando se analisa um romance como Niketche, uma história de poligamia,

onde encontramos personagens tão vivos, cenários tão bem elaborados e uma estória que prende por sua legitimidade, a análise se torna um tanto panorâmica. O pretendido na composição desse texto sobre a obra, foi justamente indicar alguns caminhos que se pode seguir ao mergulhar nesse grande mundo que as literaturas africanas de língua portuguesa podem oferecer. De fato é um território simbólico da vida, pois a cada página lida se tem a sensação de estar constantemente num movimento vital, como o fluir de uma boa respiração. Niketche convida o seu leitor para degustar esse território simbólico, onde as sensações não temem em chegar. Rami conta a sua estória de vida e pelas margens da poligamia abre o caminho para discussões acerca daquilo que ficou impregnado com o passar dos tempos: estruturas, crenças costumes, alicerces sociais. Mas que ao lado de muita resistência e coragem podem alcançar novas e repensadas condições. E para finalizar uma breve fala de Rami, que decifra o grande prazer em adentrar nesse universo de Niketche, uma história de poligamia: Esta imagem é a minha certeza, o meu subconsciente, resgatando ditados e saberes mais escondidos na memória. (CHIZIANE, 2004. p. 172)

Referências: BRANDÃO, Luis Alberto. Espaços Literários e suas expansões. Aletria: revista de estudos de literatura. V. 15 jan. jun- 2007. p. 207-219. CHIZIANE, Paulina. Niketche, uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Ser escritora é uma ousadia Entrevista ao Maderazindo. Revista Literária Moçambicana. ( http://www.maderazindo.tropical.co.mz) FANON, F. Peau noire, masques blancs. Paris: Èditions du Seuil, 1975. FRY, Peter. Moçambique, ensaios. Rio de Janeiro. Editora UFRJ, 2001. HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. PADILHA, Laura Cavalcante. Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX. Niterói: EdUFF/Pallas, 2007. SALGUEIRO, Maria Aparecida Andrade. Escritoras Negras Contemporâneas: estudo de narrativas: Estados Unidos e Brasil. Rio de Janeiro: Caetés, 2004. VALENTIM, Jorge. Paulina Chiziane: Uma contadora de Histórias no ritmo da (Contra-) Dança. Revista do Núcleo de Estudos de Literaturas Portuguesa e Africanas da UFF, Vol. 1, n 1, Agosto de 2008. ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz. A literatura Medieval. São Paulo: Cia. Das Letras, 1993.. Introdução à Poesia Oral. São Paulo: Hucitec, 1997.. Tradição e Esquecimento. São Paulo: Hucitec Sites: http://vagalume.uol.com.br/chico-buarque Acessado em 25 de outubro de 2008.