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DENTRO DA NOITE VELOZ

ferreira gullar

DENTRO DA NOITE VELOZ PREFÁCIO ARMANDO FREITAS FILHO

Copyright 2018 by Ferreira Gullar Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Capa e projeto gráfico Elaine Ramos Preparação Márcia Copola Revisão Huendel Viana Clara Diament Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil Gullar, Ferreira, 1930 2016 Dentro da noite veloz / Ferreira Gullar ; prefácio Armando Freitas Filho. 1a- ed. São Paulo : Companhia das Letras, 2018. isbn 978-85-359-3164-8 1. Poesia brasileira i. Freitas Filho, Armando. ii. Título. 18-19586 cdd-869.1 Índice para catálogo sistemático: 1. Poesia : Literatura brasileira 869.1 Maria Alice Ferreira Bibliotecária crb-8/7964 [2018] Todos os direitos desta edição reservados à editora schwarcz s.a. Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 São Paulo sp Telefone: (11) 3707-3500 www.companhiadasletras.com.br www.blogdacompanhia.com.br facebook.com/companhiadasletras instagram.com/companhiadasletras twitter.com/ciadasletras

9 Prefácio Armando Freitas Filho 19 DENTRO DA NOITE VELOZ (1975) 21 Meu povo, meu poema 22 A bomba suja 25 Poema brasileiro 26 Voltas para casa 28 Não há vagas 30 No mundo há muitas armadilhas 32 O açúcar 34 Homem comum 37 Maio 1964 39 Agosto 1964 40 Dois e dois: quatro

41 Perde e ganha 42 Cantada 43 Coisas da terra 45 Verão 47 Pela rua 49 Uma voz 50 A vida bate 53 Praia do Caju 56 Por você por mim 62 Memória 63 Boato 65 Vestibular 68 Vendo a noite 69 O prisioneiro 70 Dentro da noite veloz 81 Notícia da morte de Alberto da Silva

87 Anticonsumo 88 Ei, pessoal! 90 Uma fotografia aérea 95 Pôster 97 No corpo 98 Poema 99 Madrugada 100 A casa 103 Exílio 104 Cantiga para não morrer 105 A poesia 109 Dois poemas chilenos 111 Passeio em Lima 112 Ao nível do fogo 115 Sobre o autor

DENTRO DA NOITE VELOZ (1975)

Meu povo, meu poema Meu povo e meu poema crescem juntos como cresce no fruto a árvore nova No povo meu poema vai nascendo como no canavial nasce verde o açúcar No povo meu poema está maduro como o sol na garganta do futuro Meu povo em meu poema se reflete como a espiga se funde em terra fértil Ao povo seu poema aqui devolvo menos como quem canta do que planta 21

A bomba suja Introduzo na poesia a palavra diarreia. Não pela palavra fria mas pelo que ela semeia Quem fala em flor não diz tudo. Quem me fala em dor diz demais. O poeta se torna mudo sem as palavras reais. No dicionário a palavra é mera ideia abstrata. Mais que palavra, diarreia é arma que fere e mata. Que mata mais do que faca, mais que bala de fuzil, homem, mulher e criança no interior do Brasil. Por exemplo, a diarreia, no Rio Grande do Norte, de cem crianças que nascem, setenta e seis leva à morte. 22

É como uma bomba D que explode dentro do homem quando se dispara, lenta, a espoleta da fome. É uma bomba-relógio (e relógio é o coração) que enquanto o homem trabalha vai preparando a explosão. Bomba colocada nele muito antes dele nascer; que quando a vida desperta nele, começa a bater. Bomba colocada nele pelos séculos de fome e que explode em diarreia no corpo de quem não come. Não é uma bomba limpa: é uma bomba suja e mansa que elimina sem barulho vários milhões de crianças. Sobretudo no Nordeste mas não apenas ali, que a fome do Piauí se espalha de leste a oeste. 23

Cabe agora perguntar quem é que faz essa fome, quem foi que ligou a bomba ao coração desse homem. Quem é que rouba a esse homem o cereal que ele planta, quem come o arroz que ele colhe se ele o colhe e não janta. Quem faz café virar dólar e faz arroz virar fome é o mesmo que põe a bomba suja no corpo do homem. Mas precisamos agora desarmar com nossas mãos a espoleta da fome que mata nossos irmãos. Mas precisamos agora deter o sabotador que instala a bomba da fome dentro do trabalhador. E sobretudo é preciso trabalhar com segurança pra dentro de cada homem trocar a arma da fome pela arma da esperança. 24

Poema brasileiro No Piauí de cada 100 crianças que nascem 78 morrem antes de completar 8 anos de idade No Piauí de cada 100 crianças que nascem 78 morrem antes de completar 8 anos de idade No Piauí de cada 100 crianças que nascem 78 morrem antes de completar 8 anos de idade antes de completar 8 anos de idade antes de completar 8 anos de idade antes de completar 8 anos de idade antes de completar 8 anos de idade 25

Voltas para casa Depois de um dia inteiro de trabalho voltas para casa, cansado. Já é noite em teu bairro e as mocinhas de calças compridas desceram para a porta após o jantar. Os namorados vão ao cinema. As empregadas surgem das entradas de serviço. Caminhas na calçada escura. Consumiste o dia numa sala fechada, lidando com papéis e números. Telefonaste, escreveste, irritações e simpatias surgiram e desapareceram no fluir dessas horas. E caminhas, agora, vazio, como se nada acontecera. De fato, nada te acontece, exceto talvez o estranho que te pisa o pé no elevador e se desculpa. Desde quando tua vida parou? Falas dos desastres, dos crimes, dos adultérios, mas são leitura de jornal. Fremes ao pensar em certo filme que viste: a vida, a vida é bela! 26

A vida é bela mas não a tua. Não a de Pedro, de Antônio, de Jorge, de Júlio, de Lúcia, de Míriam, de Luísa Às vezes pensas com nostalgia nos anos de guerra, o horizonte de pólvora, o cabrito. Mas a guerra agora é outra. Caminhas. Tua casa está ali. A janela acesa no terceiro andar. As crianças ainda não dormiram. Terá o mundo de ser para elas este logro? Não será teu dever mudá-lo? Apertas o botão da cigarra. Amanhã ainda não será outro dia. 27