Preservar a Memória Baiana: A Edição de Documentos Manuscritos dos Séculos XVIII AO XX

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Transcrição:

41 Preservar a Memória Baiana: A Edição de Documentos Manuscritos dos Séculos XVIII AO XX Rita de Cássia Ribeiro de QUEIROZ * RESUMO: Resgatar documentos que reflitam a história de parte do recôncavo e sertão baianos, através da edição semidiplomática destes, é uma tarefa de suma importância para os estudos filológicos e históricos. Foram selecionados documentos manuscritos relativos aos séculos XVIII ao XX, de arquivos públicos e eclesiásticos, com o intuito de oferecer o acesso e a disseminação de informações que até o momento estão no olvido. Através deste tipo de ação busca-se preservar não só toda a documentação, mas também a memória baiana, herança máxima que se pode deixar às gerações futuras. É inegável a contribuição desses manuscritos dos séculos XVIII ao XX para a compreensão da evolução lingüística da língua portuguesa, assim como de uma parcela significativa da história da Bahia. Neste trabalho, apresentar-se-ão a condição e a edição de alguns desses documentos. PALAVRAS-CHAVE: Memória, Filologia, Edição Semidiplomática, Documentação. ABSTRACT: To rescue documents that reflect the history of the part of recôncavo and hinterland of the Bahia, through the semidiplomatics edition of these, is a task of utmost importance for the philological and historical studies. Documents had been selected relative manuscripts to centuries XVIII to the XX, of public and ecclesiastical archives, with intention to offer to the access and the dissemination of information that until the moment are in the forgetfulness one. Through this type of action the documentation searchs to not only preserve all, but also the memory of Bahia, maximum inheritance that if can leave to the future generations. The contribution of these manuscripts of centuries XVIII to the XX for the understanding of the linguistic evolution of the Portuguese language is undeniable, as well as of a significant parcel of the history of the Bahia. In this work, they will present it condition and the edition of some of these documents. KEYWORDS: Memory, Philology, Semidiplomatic Edition, Documentation. 1 INTRODUÇÃO Resgatar documentos manuscritos que reflitam a história de parte do recôncavo e sertão baianos, através da edição semidiplomática destes, é uma tarefa de suma importância para os estudos filológicos e históricos. O corpus de base deste trabalho inclui documentos eclesiásticos, cíveis e comerciais, referentes aos séculos XVIII ao XX, pertencentes aos * Doutora em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo USP. Professora Adjunta da Universidade Estadual de Feira de Santana UEFS. Líder do Grupo de Edição de Textos (Diretório dos Grupos de Pesquisa CNPq). Coordenadora dos projetos de pesquisa: 1. Documentação de Feira de Santana: um trabalho lingüístico-filológico, 2. Estudo Histórico-filológico e artístico de documentos manuscritos baianos dos séculos XVIII ao XX, 3. Edição crítica de autores baianos.

R.C. R.QUEIROZ. Preservar a Memória Baiana: A Edição de Documentos Manuscritos dos Séculos XVIII ao XX 42 seguintes municípios: Água Fria, Cachoeira, Conceição da Feira, Feira de Santana, Riachão do Jacuípe, Santo Amaro, São Gonçalo dos Campos, Serrinha e Tanquinho. É inegável a contribuição desses manuscritos dos séculos XVIII ao XX para a compreensão da evolução da língua portuguesa, pois eles representam parte da realidade lingüística da época em que foram escritos, revelando elementos arcaicos e populares, vacilações ortográficas, ultracorreções etc.; assim como de uma parcela significativa da história da Bahia: Não se pretende com isto considerar a cultura brasileira, no caso específico, a escrita, independente de suas origens, mas dar ênfase ao estudo de seus manuscritos, imprescindíveis para a História nacional. (ACIOLI, 2003, p. 1). 2 A IMPORTÂNCIA DA DOCUMENTAÇÃO MANUSCRITA PARA A MEMÓRIA BAIANA As civilizações são construídas, sempre, por alguma forma de acúmulo. Este se faz pela aquisição de conhecimentos e pelas conquistas realizadas. Destarte, uma civilização não vai jogando fora os seus bens. Para seu desenvolvimento harmonioso, há a necessidade da formação de uma consciência de um largo segmento do passado histórico. Este passado é resgatado através dos documentos históricos, que se constituem em patrimônio cultural, em bem cultural de uma determinada civilização. Essa relação de tempo é curiosa porque é preciso entender o bem cultural num tempo multidimensional. A relação entre a anterioridade do passado, a vivência do momento e a projeção que se deve introduzir é uma coisa só. É necessário transitar o tempo todo nessas três faixas, porque o bem cultural não se mede pelo tempo cronológico. [...] O tempo cultural não é cronológico. Coisas do passado podem, de repente, tornarem-se altamente significativas para o presente e estimulantes do futuro. (MAGALHÃES, 1985, p. 66-67) O advento da escrita legou à humanidade a possibilidade de armazenar, de dar a conhecer à posteridade toda a sua história: repleta de emoções, intrigas, pensamentos, feitos heróicos, descobrimentos, conquistas... enfim, a escrita representa a própria memória do homem. Para Diderot: [...] sem escrita, privilégio do homem, cada indivíduo, reduzido à sua própria experiência, seria forçado a recomeçar a carreira que o seu

43 antecessor teria percorrido, e a história dos conhecimentos do homem seria quase a da ciência da humanidade. (apud MARTINS, 1996, p. 70) Os documentos históricos, traduzidos em patrimônio cultural ou bem cultural, são objetos de interesse de pesquisadores de diversas áreas do conhecimento humano. Segundo Vera Acioli (2003, p. 1): O documento manuscrito é considerado a mola-mestra da História. No entanto, o documento escrito não é só de interesse da História como também da Filologia, da Paleografia, da Epigrafia, da Diplomática, da Lingüística, da Literatura, do Direito, da Teologia, dentre outras ciências. Sendo assim, é de suma importância a sua preservação e conservação. Os reis foram os primeiros a criarem instituições-memória: museus, arquivos, bibliotecas, com a finalidade de guardar e perpetuar seus feitos. Assim, desde que o homem começou a registrar, com o uso da escrita, toda a sua história, o volume e o ritmo da produção documental alcançaram números estratosféricos. Neste caso, o que fazer com toda esta documentação? O primeiro passo é a conservação, que pode sinalizar em três direções: o inferno que significa a eliminação física do suporte; o limbo que significa a eliminação física do suporte, mas não da informação; e o céu que implica na conservação permanente pelo valor intrínseco da informação. 3 A EDIÇÃO DA DOCUMENTAÇÃO MANUSCRITA Desde a Antiguidade que os gregos já se preocupavam em salvaguardar suas obras clássicas do esquecimento e da degradação. Segundo Auerbach (1972, p. 11): A necessidade de constituir textos autênticos se faz sentir quando um povo de alta civilização toma consciência dessa civilização e deseja preservar dos estragos do tempo as obras que lhe constituem o patrimônio espiritual [...]. Antigamente os homens escreviam utilizando diversos suportes, tais como: moedas, mármores, madeira, bronze, papiros e pergaminhos. Hoje, o suporte não é tão resistente e nem tão duradouro como os de antes. O que se utiliza em larga escala desde o Humanismo é o frágil papel. A umidade, a poeira, os fungos, o sol, os insetos em geral podem desfazer e destruir a imensa massa de papel em que está depositada toda a história da humanidade, ou seja, aquilo que lhe é mais caro e precioso. Analisando-se todo esse processo, verifica-se que a preservação de toda a documentação manuscrita é a chave para a construção de uma identidade sócio-histórico-

R.C. R. QUEIROZ. Preservar a Memória Baiana: A Edição de Documentos Manuscritos dos Séculos XVIII ao XX 44 cultural. São numerosos, nestes últimos anos, os trabalhos que renovaram em profundidade nossa compreensão da sobrevivência da escrita à mão após Gutenberg. Eles obrigam os historiadores da cultura impressa a uma dupla revisão. (CHARTIER, 2002, p. 77). Esta preservação, do ponto de vista filológico, dá-se através da edição dos documentos, que neste caso trata-se de uma edição semidiplomática, pois neste tipo de edição o filólogo pode corrigir erros por conjectura, desdobrar as abreviaturas, elaborar notas explicativas, atualizar a ortografia, etc. No manuseio de códices e documentos antigos, defronta-se o pesquisador com múltiplas dificuldades: forma gráfica diversa da atual; descuidos de redação; falta de clareza na exposição do assunto; abreviaturas; sistemas de numeração, unidades de peso e medida e sistema monetário pouco conhecidos. A isto devem-se acrescentar os problemas de ordem externa, tais como as manchas, corrosão por traças e pela tinta, ação do calor, água, umidade e manuseio. (ACIOLI, 2003, p. 2) 3.1 O CORPUS O corpus da pesquisa compõe-se de documentos manuscritos cíveis e religiosos dos seguintes municípios: Água Fria, Cachoeira, Conceição da Feira, Feira de Santana, Riachão do Jacuípe, Santo Amaro, São Gonçalo dos Campos, São José, Serrinha e Tanquinho Bahia, pertencentes ao Arquivo do Arcebispado de Feira de Santana, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Arquivo Público Municipal de Feira de Santana e Arquivo Público Municipal de Santo Amaro, assim discriminados:

45 LOCAL DOCUMENTO TIPO 1 - Água Fria 1 - Livro de Casamentos 235 fólios (recto e verso) - Período: 1719 1765 2 - Cachoeira 1 - Inventário com testamento em anexo de Antônio Félix Pereira 72 fólios (recto e verso) Período: 1749 1754 2 - Inventário com testamento anexo de Inácia Pereira de Almeida 34 fólios (recto e verso) - Período: 1777 1789 3 Inventário com testamento em anexo de Ana Josefa de Almeida 34 fólios (recto e verso) - Período: 1777 1783 3 - Conceição da Feira 1 - Livro de Tombo 38 fólios (recto e verso) - Período: 1847 1907 4 - Feira de Santana 1 - Livro de Casamentos 138 fólios (recto e verso) - Período: 1843 1864 2 - Livro de Notas de Escrituras de Escravos 194 fólios (recto e verso) - Período: 1881-1888 5 - Riachão do Jacuípe 1 - Livro de Casamentos 93 fólios (recto e verso) - Período: 1848 1877 6 - Santo Amaro 1 Queixa de Defloramento de Maria Juliana 60 fólios (recto e verso) - Período: 1903 2 Queixa de Defloramento contra Pedro Inácio dos Louvores e outros 86 fólios (recto e verso) - Período: 1903 3 Queixa de Estupro de Maria Lúcia contra Manoel Sabino Ferreira 105 fólios (recto e verso) - Período: 1905 4 Termo de Juramento 48 fólios (recto e verso) - Período: 1892 1920 5 Inventário da Baroneza de Camurugy 118 fólios (recto e verso) - Período: 1893 1919 6 Inventário do Barão de Saubara com testamento anexo 162 fólios (recto e verso) - Período: 1867 7 - São Gonçalo dos 1 - Livro de Óbitos 214 fólios (recto e verso) - Período: 1781 1802 Campos 8 São José 1 - Livro de Batismos 102 fólios (recto e verso) Período: 1752 1762 2 - Livro de Óbitos 200 fólios (recto e verso) - Período: 1821-1837 9 - Serrinha 1 - Livro de Batismos 147 fólios (recto e verso) - Período: 1838 1860 1 - Livro de Óbitos 13 fólios (recto e verso) - Período: 1868 10 - Tanquinho 1 - Livro de Batismos 219 fólios (recto e verso) - Período: 1878 1887 Cível Cível Cível

R.C. R. QUEIROZ. Preservar a Memória Baiana: A Edição de Documentos Manuscritos dos Séculos XVIII ao XX 46 3.2 ESTADO DE CONSERVAÇÃO DOS DOCUMENTOS Os documentos referentes à nossa história estão entregues, em muitas situações, às traças, aos cupins, aos insetos em geral, bem como à ação do tempo ou seja, a depender do local onde estão acondicionados, à chuva, ao sol, ao vento, ou à ação do próprio homem, que os danifica achando que não são importantes. Segundo Acioli (2003, p. 2): Todos que lidam com documentos manuscritos no Brasil, sabem que o quadro é desolador na maioria dos Estados. É necessário que sejam conscientizados os poderes públicos responsáveis, como o Judiciário, o Ministério da Fazenda, a Igreja, etc., para desenvolverem, a curto prazo, uma política de conservação e restauração dos documentos que ainda restam. Contudo, mesmo em meio à poeira, à umidade, à sujeira, um velho maço de inventários, de processos criminais ou de processos cíveis, testemunhando sua antiguidade e seu abandono, constitui-se em uma caixa de surpresas, pois representa um poço de informações, contribuindo tanto como fonte de valor quantitativo como para a reconstrução social. O testemunho colhido a posteriori, por sua própria natureza, é uma das características da história do tempo presente. Ele leva à criação de uma fonte singular na medida em que destinada desde o início seja a formar um arquivo, no sentido de conservar eis aqui a memória de tal indivíduo ou de tal grupo, seja a alimentar uma pesquisa específica. (ROUSSO, 1996, p. 87) Para a UNESCO, uma das missões essenciais dos serviços de arquivos e bibliotecas é a de tornar acessíveis os documentos dos quais têm a guarda, a fim de que o patrimônio fique vivo e possa ser objeto de pesquisa. Outra missão é a de conservar os documentos a fim de que o patrimônio possa ser transmitido intacto às gerações futuras, para que a sociedade vindoura conheça o seu passado. No Brasil, há muitas dificuldades, uma delas resulta: [...] da falta de interesse dos detentores dos documentos e da carência de uma política voltada à preservação dos arquivos, quer públicos, quer provados, é a ausência de condições para a conservação e organização da maioria deles. Arquivo morto, no Brasil, é sinônimo de porão, onde os documentos são jogados sem qualquer tratamento técnico. Na maior parte dos casos é preciso um grande esforço de triagem do documento por parte do pesquisador, a fim de recuperar qualquer informação. (ACIOLI, 2003, p. 15)

47 3.2.1 Documentos do Arquivo Municipal de Santo Amaro BA Fig. 1: Queixa de Defloramento de Maria Juliana fólio 1r / 1903

R.C. R. QUEIROZ. Preservar a Memória Baiana: A Edição de Documentos Manuscritos dos Séculos XVIII ao XX 48 Fig. 2: Inventário do Barão de Saubara fólio 2r / 1867

49 Fig. 3: Inventário da Baroneza de Camurugy fólio 1r / 1893-1919

R.C. R. QUEIROZ. Preservar a Memória Baiana: A Edição de Documentos Manuscritos dos Séculos XVIII ao XX 50 3.2.2 Documentos do Arquivo Municipal de Cachoeira BA Fig. 4: Inventário de Antônio Félix Pereira fólio 7r / 1749-1754

51 Fig. 5: Inventário de Ana Josefa de Almeida fólio 1r / 1777 1783

R.C. R. QUEIROZ. Preservar a Memória Baiana: A Edição de Documentos Manuscritos dos Séculos XVIII ao XX 52 Fig. 6: Inventário de Inácia Pereira de Almeida fólio 15r / 1777 1789

53 3.3 CRITÉRIOS PARA A EDIÇÃO SEMIDIPLOMÁTICA Seguir-se-ão os seguintes critérios: Na descrição do documento, verificar-se-á: a) Número de colunas b) Número de linhas da mancha escrita c) Existência de ornamentos d) Maiúsculas mais interessantes e) Existências de sinais especiais f) Número de abreviaturas g) Tipo de escrita h) Tipo de papel i) Data do manuscrito Para a transcrição do documento, deve-se: a) Respeitar fielmente o texto: grafia (letras e algarismos), linha, fólio, etc; b) Indicar o número de fólio, à margem direita, fazendo a chamada com asterisco; c) Numerar o texto linha por linha, indicando a numeração de cinco em cinco, desde a primeira linha do fólio; d) Separar as palavras unidas e unir as separadas; e) Desdobrar as abreviaturas apresentando-as em itálico; f) Utilizar colchetes para as interpolações; g) Utilizar chaves para as letras e palavras expurgadas; h) Indicar as rasuras ilegíveis com o auxílio de colchetes e reticências; i) Expontuar as letras de leitura duvidosa.

R.C. R. QUEIROZ. Preservar a Memória Baiana: A Edição de Documentos Manuscritos dos Séculos XVIII ao XX 54 3.4 EDIÇÃO DE UM FÓLIO DO AUTO DE DEFLORAMENTO DE MARIA JULIANA 3.4.1 Descrição do Documento Auto de Defloramento datado de maio de 1903. Escrito em tinta preta, recto e verso, em sessenta fólios. Papel almaço, medindo 324 mm X 222 mm. Rasgado ao meio e nas bordas. 3.4.1.1 Transcrição do Fólio 1r 1903 Cidade de Santo Amaro Juiso de Direito Denuncia 5 A justiça por parte de Maria Juliana Cecílio Bento da Rocha Dorea Escrivam nos Feitos Cives e Criminaes Alcebiades Ludgero dos Santos 10 ANNO de mil nove centos e trez nos vin te dois dias do mez de Junho nes ta Leal Cidade de Santo Amaro e em meo Cartorio escrevi a peti 15 ção do Adjunto da Promotoria Publica Salvador Ayres de Almei da Freitas Sobrinho com despacho ao pe e com dois [...[ que se seguem e fazer para constar este 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Nos arquivos brasileiros, encontram-se documentos de todo o tipo: testamentos, petições, declarações, certidões entre outros, que permitem conhecer melhor o cotidiano da

55 sociedade da época em que foram lavrados. Muitos desses textos estão no ostracismo e em estado de conservação ruim, outros dispersos, todavia constituem fontes de valor inestimável para os estudos filológicos e históricos. Vale salientar que esses documentos, datados e localizados, indicam aspectos da variação regional e temporal: variações lingüísticas, históricas e culturais. Desse modo, eles são importantes porque representam um produto ideológico e merecem a devida atenção: eles são a Memória Nacional. REFERÊNCIAS ACIOLI, Vera Lúcia Costa. A Escrita no Brasil Colônia: um guia para leitura de documentos manuscritos. 2. ed. Recife: UFPE / Fundação Joaquim Nabuco / Editora Massangana, 2003. AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. Tradução José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1972. CASTRO, Ivo ; RAMOS, Maria Ana. Estratégia e táctica da transcrição. COLLOQUE CRITIQUE TEXTUELLE PORTUGAISE, Paris, 20-24 octobre 1981. Actes... Paris: Fondation Calouste Gulbenkian, 1986. p. 99-122. CHARTIER, Roger. O manuscrito na era do texto impresso. In:. Os desafios da escrita. Tradução Fulvia M. L. Moretto. São Paulo: Editora UNESP, 2002. p. 77-100. GEORGES, Jean. La Escritura: memoria de la humanidad. Traducción Enrique Sánchez Hormigo. Barcelona: Ediciones B. S. A., 1998. MAGALHÃES, Aloísio. E Triunfo?: a questão dos bens culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Brasília: Fundação Nacional Pró-Memória, 1985. MARTINS, Wilson. A palavra escrita: história do livro, da imprensa e da biblioteca. 2. ed. São Paulo: Ática, 1996. QUEIROZ, Rita. Manuscritos, livros e computador: o progresso cultural da humanidade. Tribuna Feirense, Feira de Santana, 21 nov. 2004. Tribuna Cultural, p. 3.. Documentação manuscrita: legado cultural. Tribuna Feirense, Feira de Santana, 01 ago. 2004. Tribuna Cultural, p. 2. QUEIROZ, Rita C. R. de. Edição diplomática de documentos históricos feirenses. In: Estudios de lingüística española, v. 13, 2001. Disponível em: <http://elies.rediris.es/elies13/queiroz.htm>. Acesso em: 10 jan. 2006. ROUSSO, Henry. O Arquivo ou o indício de uma falta. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 9, n. 17, p. 85-91. 1996.