EU LIGADO EM NATUREZA : BREVE ANÁLISE DA COSMOLOGIA DAIMISTA



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Transcrição:

EU LIGADO EM NATUREZA : BREVE ANÁLISE DA COSMOLOGIA DAIMISTA Isabela Oliveira Universidade de Brasília (UnB) isabelalara@gmail.com O Santo Daime é uma religião brasileira cristã, de cultura essencialmente oral, que se formou no estado do Acre a partir do início da década de 30 e hoje conta com mais de cinco mil seguidores espalhados em diversos estados brasileiros e países do mundo. O presente artigo analisa brevemente como são construídas as visões de natureza compartilhadas na cosmologia da religião e aponta como essas compreensões afetam as relações socioambientais de seus seguidores. Neste artigo, analisa-se a formação da cosmologia daimista, partindo da compreensão de religião como construção social e histórica inserida no contexto mais amplo da sociedade; fenômeno social dialético que oferece ordenamento significativo para seus seguidores, que fundamenta sua compreensão do cosmos como sendo composto por dimensões tangíveis e intangíveis (BERGER, 2004) 1 e que, por meio desse corpus semântico, orienta a conduta dos adeptos no seu dia a dia e estrutura sua compreensão sobre a realidade. Segundo os registros orais presentes na religião com os quais tive contato durante minha pesquisa de doutorado (OLIVEIRA, 2007) 2, o fundador do Santo Daime foi o Sr. Raimundo Irineu Serra, maranhense que se mudou para o Acre no início da década de 10, dentro do fluxo migratório fomentado pela extração em larga escala do látex na região amazônica. Mestre Irineu, como é conhecido pelos seus discípulos, teve contato com a Ayahuasca, como outros brasileiros, ao trabalhar como seringueiro e membro da Comissão de Limites 3. Ao beber a Ayahuasca, por volta de 1912/1914, o Sr. Irineu teve revelações psíquicas e espirituais que o levaram, nos anos seguintes, a constituir uma nova forma de trabalho com essa bebida milenar. Sob sua direção, deu-se, entre as décadas de 30 e 60, na cidade de Rio Branco (AC), o processo principal de formação da religião. A bebida foi rebatizada, nova técnica para o seu preparo foi desenvolvida, os principais rituais e símbolos da religião foram constituídos e estruturaram-se os fundamentos doutrinários do Santo Daime. A Ayahuasca é um chá com propriedades psicoativas que tem sido utilizado milenarmente 4 pelas populações nativas da região amazônica brasileira e andina para diferentes finalidades 5, tais como: diagnóstico e cura de doenças, adivinhação, caçadas,

preparação para guerra (MACRAE, 1992) 6 e em práticas xamânicas e de curandeirismo 7. Primeiramente, cumpre salientar que a ingestão de substâncias psicoativas foi e é, em muitas culturas, como a indígena, compreendida e associada a uma vivência do sagrado 8, entendido aqui, no sentido proposto por Berger (2004) 9, como tudo aquilo que vai além da vida humana ordinária (BERGER, 2004, p. 38) 10, assim como uma experiência que vivifica o contato com o divino. A ideia de que, por meio do Santo Daime, os adeptos podem entrar em contato com o sagrado está presente, por exemplo, no relato do Sr. Sebastião Mota, que se tornou o líder mais proeminente da religião após o falecimento do fundador 11. É preciso aproveitar essas ervas sagradas que nós temos e que nos levam às alturas espirituais. Por elas é que a vida espiritual baixa sobre nós, material, em qualquer lugar que nós formar e consagrar a nossa bebida, e as nossas plantas espirituais, nós vamos ao astral 12, que fica longe daqui e ao mesmo tempo fica bem perto daqui. Porque o corpo fica onde fica, que é uma massa pesada. Mas o espírito vai aonde quer, porque ele sempre volta. Ninguém sabe donde ele veio, nem pra onde vai. Só o corpo, quando está bem desenvolvido e entrosado com o eu interno, sabe o que ele diz. Nós estamos aqui, enterrado, tudo enterrado, tudo com medo. Medo de que, meus irmãos? É o tempo da verdade, é o tempo da pureza divina. Que ela já trouxe esse cipó, com essas maravilhosas folhas, para desenvolver o nosso eu interno para poder se comunicar com o interno lá do alto, do alto astral. O interno, falar com o de lá e o de lá com o de cá, que nós somos também essa outra pessoa. (ALVERGA, 1998, p. 92) 13 No relato do Sr. Sebastião, o consumo das substâncias psicoativas é percebido como recurso para se entrar em contato com a realidade espiritual e, nesse contato, obter um aprendizado. A ideia de que se pode estabelecer um relacionamento de aprendizado com as plantas psicoativas foi estudada pelo antropólogo Luis Eduardo Luna (1986) 14, que analisou diferentes práticas com espécies vegetais psicoativas no contexto do curandeirismo mestiço peruano. Segundo ele, os vegetalistas, 15 assim como vários grupos indígenas, acreditam que as plantas são habitadas por um espírito, por uma mãe, que transmite ensinamentos e com quem é possível estabelecer um aprendizado. Tal fato levou o antropólogo a propor o termo plantas-professoras plantas-maestras para designar o conjunto das plantas psicoativas usadas com a finalidade de aprendizado no contexto do curandeirismo mestiço peruano. Mais do que um termo restrito ao âmbito das práticas tradicionais de curandeirismo, o conceito proposto por Luna traça um horizonte, aponta para o aspecto dialógico e transformador da 2

relação entre as pessoas e as plantas psicoativas presentes ao longo da história da humanidade. Para os daimistas, o significado do aprendizado que se tem com o Santo Daime é cristão e é comumente comparado àquele presente nos escritos bíblicos. Um aprendizado moral e espiritual. Isso é o que revelam, por exemplo, as palavras do Sr. Sebastião Mota de Melo. Para ele, O Daime é a Escritura de quem não sabe ler. Quem tem ela na mão, escrita, leia com perfeição. Porque o Daime é a escritura do pobre que não sabe ler. Aí ele encontra um Deus muito mais chegado, muito mais perto. (ALVERGA, 1998. p. 92) 16. A fala do Sr. Sebastião exprime com simplicidade a proximidade do contato com Deus e o sagrado que se revela por meio do consumo da bebida no Santo Daime; ressalta a importância da oralidade no repasse da religião para as novas gerações, revelando aspectos do significado do aprendizado que acontece por meio da ingestão ritual da bebida que permite o contato com a realidade espiritual. De modo geral, os daimistas consideram que realidade tem duas dimensões: a material e a espiritual, dois mundos se interpenetram. De acordo com o antropólogo Alberto Groisman (1999, p. 46) 17, o Daime é o veículo que mostra ao indivíduo e ao grupo que há uma dimensão da existência humana que foge dos padrões de decodificação utilizados no mundo da vida ordinária. É o Daime quem permite e realiza a ligação entre o mundo material e o mundo espiritual. Essa ideia também está presente no contexto indígena amazônico que consome a Ayahuasca, como aponta o pesquisador Mauro Almeida (2004, p. 16) 18, fato que revela continuidade entre as práticas nativas com a bebida e a religião do Santo Daime. Segundo Almeida, ao longo da região que vai das nascentes do rio Ucayali até as cabeceiras do rio Negro, Xamãs e não-xamãs utilizam-se da Ayahuasca (nixi pae, yagé, kamarampi, caapi 19 ) como operadores que, agindo sobre o corpo, permitem o trânsito entre o mundo ordinário e realidade verdadeira onde vivem os espíritos, como no sonho e na morte: mas ao contrário do que ocorre na morte, de maneira reversível e ao contrário do que ocorre no sonho, de maneira controlada. (ALMEIDA, 2004, p. 16) 20 Outros autores, como o sociólogo e antropólogo Pedro Luz (2004, p. 37-68) 21, que analisou a utilização da Ayahuasca entre diferentes populações indígenas de língua Pano, Aruák e Tukano, encontrou concepções semelhantes nas práticas dessas populações acerca da Ayahuasca. 3

Nos contextos estudados por Luz (2004) 22, é comum a compreensão de que o ato de beber Ayahuasca torna possível o contato com os espíritos da natureza e com os antepassados. Em quase todos os casos estudados pelo autor, a Ayahuasca figura nos mitos e nas lendas das tribos e, por meio também das práticas a ela associadas, participa ativamente da construção do seu imaginário, da constituição de sua realidade simbólica e da construção dialógica da cosmologia dessas populações. No Santo Daime, o processo de constituição de significados presentes na cosmologia do grupo é muito evidente e marcante, especialmente no tocante aos hinos da religião 23. Ao ingerir o Santo Daime, as pessoas cantam esses hinos. Ao cantá-los sob o efeito psicoativo da bebida, as pessoas fazem uma releitura do seu significado, partindo de sua vivência presente e de sua condição psicológica individual. Estabelecendo diálogo com esse conteúdo, constrói-se uma leitura particular da vivência psicoativa com a Ayahuasca no contexto da religião, ao mesmo tempo em que se constrói uma leitura do conteúdo expresso nos hinos, condicionada pelo presente. Esse diálogo interior que se estabelece entre as pessoas e os hinos também subsidia o surgimento de novas compreensões sobre os princípios doutrinários que são, então, objetivados em novos hinos. Quando esses hinos são cantados, consolida-se seu processo de objetivação. Seu conteúdo ganha facticidade, condição de realidade objetiva que, dentro do processo dialético de construção social de sentidos, contribuirá para a formação da religião e de sua cosmologia. Os hinos são canções que os adeptos consideram ser recebidas mediunicamente do Eu Superior 24 da pessoa, por aqueles seguidores que dispõem dessa sensibilidade entendida como certo nível de desenvolvimento mediúnico, ou intuídas de seres divinos espirituais. As palavras do Sr. Sebastião Mota de Melo falam da compreensão compartilhada no grupo sobre o processo de recepção de um hino. Todos aqueles que estiverem escutando estas palavras que são ditas pelos hinos, saibam que essa palavra não é nossa. Porque ela vem como Ele diz: sai da minha boca e transmite em ti. O hino é uma coisa que deslapa e entra na consciência da pessoa pela intuição, ou por voz, em conformidade com o tipo de aparelho receptor, não é? O hino vem. Mas ele não é ele, aquela matéria que tá trazendo aquilo. É o Eu lá do alto que tá mandando uma mensagem pro Eu interno. Se o Eu interno está bem desenvolvido, ele logo recebe. Se não, se ele tá ainda muito emperrado, tá ainda dormindo, não saiu de cima da sepultura, os anjos não vêm revelar nada pra ele. É que esse Eu interno não está ouvindo nada. Ainda está morto. Daí é que eu sempre digo: Quem não acordar agora, danou-se!. (ALVERGA, 1998, p. 73-74) 25 Os hinos são também considerados a expressão da palavra do Mestre, como os 4

seguidores se referem ao fundador da religião, o Sr. Raimundo Irineu Serra. Essa ideia está presente, por exemplo, no relato oferecido pelo Sr. Alfredo Gregório de Melo, o líder da Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz Universal Patrono Sebastião Mota de Melo (ICEFLU), organização daimista que congrega o maior número de igrejas e de adeptos da religião ao redor do mundo. Os hinos representam o Mestre expressando em palavras, miração 26, compreensão. Os hinos são o registro de cada miração, que pode ser através de sonho ou revelação; aí começa o trabalho/desenvolvimento de cada um. É a força do nosso Eu Superior em contato com a matéria, e deixa essa gravação. (CUNHA, 1986, p. 89) 27 Ao ser considerados as palavras do próprio Mestre, os hinos são investidos de autoridade simbólica para os seguidores. Essa ideia se reforça à medida que ainda existe a compreensão na religião de que os hinos tenham existência própria no astral 28 anterior a sua recepção pela pessoa. Assim, os hinos são narrativas orais investidas de poder, legitimadas pela compreensão compartilhada entre os adeptos de que representam uma palavra divina, sagrada. O conteúdo dos hinos é, portanto, um dos elementos mais importantes, mais fundamentais que contribuem para a construção do significado da religião Santo Daime, de sua bebida sacramental e de sua cosmologia. Tendo em vista que nas práticas daimistas as palestras e as leituras são apenas eventuais, a mensagem contida nos hinos ainda representa a palavraensinadora durante os rituais da religião e são uma das expressões mais fortes da mensagem doutrinária do grupo. Portanto, são o corpus semântico que conduz à experiência psicoativa com a bebida durante os rituais e, também, um locus privilegiado onde se encontra expresso o nomos da religião, que é o ordenamento significativo que dá existência simbólica para a bebida e a religião entre os seguidores, os conduz a um tipo específico de relação socioambiental e contribui para a construção de sua compreensão sobre a realidade material e a espiritual. Para Berger (2004) 29, o sagrado é tudo o que salta para fora das rotinas normais do dia a dia, algo de extraordinário e potencialmente perigoso, cujos perigos e mistérios podem ser aproveitados para as necessidades cotidianas das pessoas por meio do ordenamento simbólico oferecido pela religião (idem, p. 39). A religião que oferece uma visão do cosmos que, ao mesmo tempo que comporta dimensões que transcendem o homem, também o inclui e, assim, permite sua interação com o desconhecido, ou mesmo torna-o conhecido, nominado. 5

Berger (2004) propõe que o temor e a fascinação que constroem a compreensão do sagrado são também motivos condutores para o encontro com esse outro divino oculto na natureza. No entanto, esse outro mundo, na compreensão de Berger, não está disponível para análise científica. Mais precisamente, está disponível apenas como ordens de significado, construções humanas sobre a natureza e a existência. Nesse sentido, Berger compreende que o sagrado deva ser analisado como produto da atividade e da significação humana, que projeta seus significados no universo. Por sua vez, essas projeções ganham uma objetividade que legitima a experiência religiosa e uma determinada ordem social por ela engendrada. Dessa maneira, o nomos, o ordenamento significativo construído pelas pessoas nas religiões, torna-se um cosmos divino, ou seja, adquire uma realidade semântica cujos significados parecem emanar de fora da esfera humana. Assim, na concepção de Berger (2004), a realidade subjetiva e os significados compartilhados pelos seguidores de uma religião dependem de constante diálogo entre as pessoas e a realidade objetiva. Nesse sentido, Berger (idem, p. 19) também percebe esse ordenamento simbólico construído dialogicamente pelas pessoas como sendo a própria cultura, entendida por ele num sentido mais amplo, abarcando a totalidade dos produtos humanos e não apenas a esfera simbólica presente nesse conjunto. Já a compreensão de Geertz (1989, p. 24) 30 sobre cultura contribui para esclarecer como se estruturam esses significados discursivos. Para ele a cultura pode ser compreendida como um sistema entrelaçado de signos interpretáveis; teias e padrões de significados construídos pelos homens e por eles compartilhados, que são determinados e transmitidos historicamente, expressam-se de maneira simbólica e permitem que os homens se comuniquem, perpetuem e desenvolvam seu conhecimento e suas atividades (idem, p. 103). Por meio das contribuições de Berger (2004) 31 e Geertz (1989) 32, compreende-se que as narrativas dos hinos, lidas em seu conjunto, como uma teia de significados que, ao ser interpretada, permite uma leitura cultural da formação social dos sentidos compartilhados na religião e de suas práticas. Entre os temas mais frequentes presentes nos hinos encontra-se o louvor à natureza e aos seres divinos. O primeiro hino recebido pelo Mestre Irineu já traz essa ideia. Diz o hino Lua Branca: 6

Deus te Salve oh! Lua Branca Da luz tão prateada Tu sois minha protetora De Deus tu sois estimada Oh Mãe Divina do coração Lá nas alturas onde estás Minha Mãe, lá no céu Dai-me o perdão Das flores do meu país Tu sois a mais delicada De todo meu coração Tu sois de Deus estimada Oh! Mãe Divina do coração... Tu sois a flor mais bela Aonde Deus pôs a mão Tu sois minha advogada Oh! Virgem da Conceição Oh! Mãe Divina do coração... Estrela do Universo Que me parece um jardim Assim como sois brilhante Quero que brilhes a mim Oh! Mãe Divina do coração... 33 Pela mensagem do hino, é possível entender que se trata de um louvor à Mãe Divina do Coração, que é, ao mesmo tempo, nas palavras do hino, mãe, protetora, advogada, lua branca, flor e jardim. Nesse sentido, percebe-se que a há íntima relação entre os seres divinos e os elementos da natureza, no caso entre a Virgem Maria e a Lua. Essa também é uma ideia comum ao cenário nativo amazônico do consumo da Ayahuasca. Maria Gabriela Jahnel de Araújo (2004, p. 41-59) 34 estudou a utilização do cipó 35 entre os seringueiros da região do Alto Juruá. De acordo com ela, na cultura cabocla, além dos humanos e dos animais, ainda se fazem presentes no imaginário religioso santos, almas e encantes (ou encantados). A devoção aos santos e a crença na existência das almas remete à presença do catolicismo na região. Já a crença nos encantados fala de uma experiência bastante singular e típica da região amazônica e remete à influência da cultura e do pensamento indígena sobre a floresta no consumo da bebida. Segundo a autora (idem, p. 45): 7

[...] os encantes seriam seres deixados por Deus como responsáveis pela floresta, pelas águas, pelas caças etc. Trata-se de entidades com poderes de encantamento, metamorfose e hipnose, que podem ser generosos ou vingativos. Encontramos entre eles o pai ou caboclo da mata, protetor da floresta; a mãe da seringueira, entidade que cuida das seringueiras; a caipora, responsável pelas caças, ou os caboclos d água, habitantes dos rios e igarapés que podem levar humanos para o fundo das águas. Além dos encantes, há, também, animais que podem proteger, devorar, enganar, hipnotizar ou realizar pactos. Entre eles estão a jiboia, o sapo campu, o veado e o jabuti. Esses são alguns seres com os quais os moradores do Alto Juruá se deparam e se relacionam cotidianamente. Eles habitam ou se originam na natureza e guardam algumas características humanas e outras próprias de sua qualidade de encante ou ser supra-natural. Para proteger-se, garantir o sucesso das atividades cotidianas, como caçar, pescar, cortar seringa, etc., os caboclos estabelecem um diálogo com esses seres, com a realidade espiritual, por meio de preces, pedidos de licença, enfim, por meio de pequenas práticas cotidianas que estruturam e permitem o contato com os mistérios e a imensidão da floresta. No conjunto de hinos deixados pelo Sr. Irineu Serra, consta, por exemplo, uma referência à mãe d água, chamada pelo Sr. Irineu de Tarumin, que se entende como referência a esses seres encantados presentes na floresta, assim como confirma a ideia da presença do imaginário caboclo na religião a partir de sua vivência no interior da floresta. Diz o hino 4 Formosa, do hinário O Cruzeiro, do Sr. Raimundo Irineu Serra. Formosa, Formosa Formosa é bem Formosa Formosa é bem Formosa Tarumim tu sois Formosa Formosa é bem Formosa Formosa, Formosa Formosa é bem Formosa Tarumim estou com sede Tarumim tu me dá água Tarumim tu sois Mãe D água Tarumim tu sois Formosa 36 O hino Formosa fala do louvor a um ser divino da água, apresentando um diálogo com o reino encantado da floresta, onde o Sr. Irineu tanto reconhece os primores desses encantes, como se demonstra desejoso de beber dessa fonte formosa, de aprender e nutrir-se dessa força presente na natureza. Outro hino muito importante do hinário do Mestre Irineu fala do Sol, da Lua e das estrelas que se tornaram elementos simbólicos cruciais na religião; constam, inclusive, na 8

bandeira da ICEFLU, que é a vertente mais difundida da religião no sul do Brasil e no exterior. Diz o hino do Mestre Irineu: Sol, Lua, Estrela A Terra o Vento e o Mar É a Luz do Firmamento É só quem eu devo amar É só quem eu devo amar Trago sempre na lembrança É Deus que está no Céu Aonde está minha esperança A Virgem Mãe mandou Para mim esta lição Me lembrar de Jesus Cristo E esquecer a ilusão Trilhar este caminho Toda hora e todo dia O Divino está no Céu Jesus filho de Maria 37 Pela mensagem do hino do Mestre Irineu percebe-se que, para os daimistas, a luz do firmamento, o Sol, a Lua e as estrelas são o ponto de referência onde se deve firmar o pensamento. Representam o divino, a esperança, são associados às figuras de Jesus e Maria e se contrapõem à ilusão. Para os daimistas existe um mundo real e um mundo de ilusão. O mundo real é aquele do espírito representado materialmente pela natureza e sua harmonia. Já o mundo da ilusão são todas as expressões humanas que não estejam em sintonia com as leis espirituais e a natureza. O hino Naturalmente, recebido pelo Sr. Alfredo Gregório de Melo, atual líder da ICEFLU, fala do significado do aprendizado que se obtém por meio de uma vida em sintonia com a natureza. Eu estou aqui Naturalmente vim Naturalmente sigo Para ser feliz Quem está aqui Naturalmente veio Naturalmente segue Sem ter arrodeio 9

Salve aqui na mata Quem aqui chegou Salve quem ordena E salve quem chamou Este é o tempo Da sabedoria Estou aprendendo O que eu não sabia O que eu não sabia A natureza tem Deus está vivendo Vamos viver também 38 Por meio das palavras do hino do Sr. Alfredo é possível perceber que, para os daimistas, a natureza traz um conhecimento vivo e natural de Deus. Ela ensina a amar e querer bem como fala o hino 126, Eu ligado em natureza, mesmo senhor. Eu ligado em natureza A natureza me convém O que ela me transmite É o que de melhor existe Amar e querer bem [ ] Já o hino a seguir, intitulado Nova era, também recebido pelo Sr. Alfredo Gregório, fala da importância de se esquecer da ilusão e se firmar na floresta, a qual, para os daimistas, é a expressão material e simbólica dessa harmonia divina que os seguidores buscam na natureza, também entendida como fonte primordial de reconexão com o divino. Que beleza no Universo Meu Pai está me guiando E quanto mais eu me entrego Mais Ele vai me limpando Eu vou seguindo ensinando O que Meu Pai deixou na terra Na colheita de irmãos Que vem compor a Nova Era Eu convido os meus irmãos Se alegrar na nossa festa Esquecer a ilusão E se firmar bem na floresta Na floresta temos tudo 10

Ela, Mamãe e Papai Toda fonte de riqueza Natureza e muito mais 39 Para os daimistas, a floresta representa o Jardim da Virgem Maria, reino harmonizado e dotado de fina interconexão entre todos os seres. Essa ideia é belamente expressa no hino Meditação, do Sr. Alfredo Gregório de Melo. Quando eu olho para a natureza Meu coração se conforma Em ver tanta criatura E cada um vivendo de sua forma Sempre olho para o firmamento E vejo um grande poder E eu tão pequeno aqui na terra Peço força para compreender Sempre olho para a humanidade A multidão me desperta Em ver tanta criatura E todos ter que seguir na rota certa Eu vejo todos animais Cada um compõe seu lugar Que aqui neste jardim De tudo tem que habitar Eu olho para a floresta Vejo tanta imensidão Que para se ver é preciso Se ter Deus no coração Eu vejo todos os insetos Cada um com seu destino Com isto a vida nos prova Que existe um Criador Divino Tudo existe na terra e no mar E nesta luz que nos cobre O mistério deste segredo Meditando é que se descobre Tudo, tudo dá para se ver Até aonde a vista alcança Aqui neste jardim de amor Da Rainha da Esperança E dai-me firmeza e amor Concentrado em harmonia 11

Considero este reinado O Jardim da Virgem Maria 40 Assim, para os daimistas, viver na floresta é uma oportunidade de entrar em contato com a Virgem Maria, também conhecida como Rainha da Floresta, com os seres divinos que na mata habitam e experimentar uma vida em sintonia com a realidade espiritual. De modo geral, essa aspiração de retorno à natureza e sua harmonia primordial está presente no cotidiano dos daimistas. A compreensão da importância de uma vida em sintonia com a natureza levou, por exemplo, o Sr. Sebastião Mota de Melo a conduzir seus adeptos a experimentar uma vida simples no interior da floresta amazônica, onde se constituiu, na década de 80, pequena comunidade daimista que se transformou, na atualidade, numa vila com cerca de mil habitantes, a Vila Céu do Mapiá. Além de ser, atualmente, local de peregrinação espiritual para os seguidores da religião, a vila se tornou modelo de experiência comunitária espiritualista que inspirou o surgimento de outras comunidades semelhantes no sul do Brasil, tanto rurais como urbanas, que têm como característica comum a busca de espaços de moradia e convivência permeados por generosas áreas verdes. Também é comum entre os daimistas ações de preservação ambiental tanto nas comunidades amazônicas como ao longo dos outros centros daimistas espalhados pelo Brasil e pelo mundo, fato que revela e confirma a importância da natureza e da cosmologia da religião na construção de sua atividade religiosa daimista e de sua práxis cotidiana. Segundo Berger (2004, p. 53-54) 41, a ideação religiosa se funda na atividade religiosa, relacionando-se a ela de maneira dialética no sentido de que a prática dos rituais tanto transforma e vivifica os fundamentos filosóficos da religião como por eles é afetada. Tendo em vista que esse processo é cultural e historicamente determinado, a prática e a ideação religiosas participam da dinâmica social e, portanto, a religião se enraíza nas práticas cotidianas. Dessa maneira, tanto os atos religiosos como suas legitimações são compreendidos por Berger como elementos que servem para relembrar os significados encarnados na cultura. Nesse sentido, diante de uma realidade em contínua elaboração e reelaboração, historicamente determinada, eivada de continuidades e descontinuidades, os hinos são relatos que oferecem para os seguidores da religião uma solução discursiva que ordena e dirige o relacionamento dos seguidores entre si, com a natureza e a realidade material e não material. São parte fundamental da cultura da religião e contribuem ativamente para sua construção 12

discursiva. Por tudo que foi exposto, compreende-se que as diferentes visões de natureza presentes no Santo Daime, expressas, em grande parte, por meio da teia de significados instituída pelos hinos da religião, compõem rica cosmologia onde se percebe, especialmente, a influência da cultura indígena e dos princípios cristãos na constituição de seus significados, contribuem para a construção de relação harmoniosa dos seguidores com a natureza e estimulam o estabelecimento de formas de vida e organização social autossustentáveis e ecológicas. Notas 1 BERGER, Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Editora Paulus, 2004. 2 OLIVEIRA, Isabela. Santo Daime: um sacramento vivo, uma religião em formação. 2007. Tese (Doutorado em História) Universidade de Brasília, UnB, Brasilia, 2007. 3 A Comissão de Limites foi uma organização formada pelo Governo Brasileiro para delimitar as fronteiras entre o Acre, a Bolívia e o Peru. O Acre foi o primeiro território federal da história do Brasil. Foi incorporado à nação brasileira em 1903 (ARRUDA, 2004, p. 16) 42. 4 Embora existam evidências arqueológicas do uso de plantas psicoativas na Amazônia Equatoriana entre 1500-2000 a.c., o uso pré-histórico da Ayahuasca ainda não pode ser comprovado (MCKENNA, 1992) 43. 5 Dobkin de Rios (1972, p. 45) 44 reuniu os diferentes usos da Ayahuasca no contexto nativo amazônico em três grandes grupos: para contato com o sobrenatural onde figuram usos mágicos, no contexto de rituais religiosos, na adivinhação e na feitiçaria, para o tratamento de doenças e para o lazer e a interação social. 6 MACRAE, Edward. Guiado pela lua. Xamanismo e uso ritual da Ayahuasca no culto do Santo Daime. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992. 7 A utilização da Ayahuasca pelos índios e curadores mestiços foi amplamente documentada por diversos pesquisadores, tais como Reichel-Dolmatof (1976) 45, Luis Eduardo Luna (1986) 46 e Marlene Dobkin de Rios (1972) 47, entre outros. 8 A compreensão das plantas psicoativas como veículos de contato com o sagrado levou Wasson, um estudioso da questão, a propor, em 1969, o termo enteógeno para designar o conjunto de plantas que levam alguém a ter o divino dentro de si (MACRAE, 1992, p.16) 48. O termo enteógeno foi proposto por Wasson como opção a outras palavras, tais como droga, alucinógeno, entre outras, que estão associadas a muitos preconceitos na nossa cultura. A referida palavra deriva do radical grego entheos, que se traduz por inspirado ou possuído por um Deus, Deus dentro, e o sufixo geno, que designa geração, produção de algo (LIDELL; SCOTT, 1997 apud GOULART; LABATE, 2005, p. 31) 49. 9 BERGER, Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Editora Paulus, 2004. 10. Ibid. 11 Essa narrativa foi coletada pelo Sr. Alex Polari Alverga (1998) 50, um dos seguidores do Sr. Sebastião, que reuniu e transcreveu suas palavras no livro O Evangelho segundo Sebastião Mota de Melo. 12 Astral é o nome genérico pelo qual os daimistas se referem à realidade espiritual. 13 ALVERGA, Alex (Org.). O guia da floresta. 2 ed. Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1992. 14 LUNA, Luis Eduardo. Vegetalismo: Shamanism among the Mestizo Population of the Peruvian Amazon. Estocolmo, Suécia: Almquist and Wiksell International, 1986. 15 É uma pessoa que adquiriu seus conhecimentos por meio de uma planta e que normalmente usa essa planta no diagnóstico e cura de seus pacientes (LUNA, 1986, p. 32) 51. Vegetalista é um termo genérico. Outros termos específicos podem ser utilizados para designar essas pessoas, de acordo com o tipo de planta com a qual aprenderam e utilizam em suas práticas curativas. Entre esses, destacam-se: o Tabaqueiro, que trabalha primordialmene com o Tabaco, e o Ayahuasqueiro, que se utiliza da Ayahuasca. 16 ALVERGA, Alex (Org.). Ibid. 13

17 GROISMAN, Alberto. Eu venho da Floresta. Um estudo sobre o contexto simbólico do uso do Santo Daime. Florianópolis: Editora da UFSC, 1999. 18 ALMEIDA, Mauro. A Ayahuasca e seus usos. In: O uso ritual da Ayahuasca. São Paulo: Mercado das Letras, 2004. 19 Outros nomes pelos quais a bebida é conhecida na região citada. 20 ALMEIDA, Mauro. Ibid. 21 LUZ, Pedro. O uso ameríndio do Caapi. In: LABATE; ARAÚJO (Orgs.). O uso ritual da Ayahuasca. 2 ed., Campinas: Mercado das Letras. 2004. 22. Ibid. 23 Segundo Luz (2004) 52 e outros autores, os cânticos entoados pelos indígenas durante o consumo da bebida contribuem para estruturar as visões proporcionadas pelo chá, assim como conduzem à comunicação com os espíritos. Esses cânticos são conhecidos como Ícaros e sua função ritual, conforme a compreensão das populações estudadas, é conduzir a força psicoativa da Ayahuasca e construir e repassar o universo simbólico das práticas com a bebida. 24 Na visão dos daimistas, os seres humanos são formados por duas instâncias: um Eu Inferior, ou Eu Interno, que se encontra atrelado à satisfação de desejos e necessidades materiais, por vezes também identificado com o Ego, e um Eu Superior, o qual, por sua vez, é o Eu Divino, o Eu Espiritual que está em constante contato com a realidade do astral, com Deus (GROISMAN, 1999, p. 54) 53. Para os seguidores da religião, o Eu Superior pode se comunicar com o Eu Inferior, oferecendo instruções, guiando o Eu Inferior em suas ações cotidianas, sendo esse um dos processos por meio do qual se considera que os hinos da religião sejam recebidos pelos participantes. Tal se explica para os daimistas a partir da compreensão de que as pessoas se constituem em APARELHOS mediúnicos, ou seja, são capazes de se sintonizar com a realidade suprassensível, a realidade espiritual, manifestando diversos tipos de dons ou capacidades tanto nos trabalhos espirituais da religião como em sua vida cotidiana. 25 ALVERGA, Alex (Org.). O guia da floresta. 2 ed. Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1992. 26 Miração é a palavra com a qual os adeptos definem as percepções ampliadas que são produzidas pelo efeito do Santo Daime na pessoa. Ela se manifesta através de um conjunto de percepções que proporcionam uma sensação de transcendência, miração revela as experiências mais profundas da espiritualidade[...] (GROISMAN, 1999, p. 55) 54. Como registros de mirações, os hinos são, portanto, também fruto da experiência de transcendência mediada pelo Santo Daime. 27 CUNHA, Geovânia Corrêa Barros. O Império do Beija-Flor. Dissertação (Mestrado) Sociologia, Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, 1986. 28 Astral é o nome genérico pelo qual os daimistas se referem à realidade espiritual. 29 BERGER, Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Editora Paulus, 2004. 30 GEERTZ, Clifford James. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1989. 31 BERGER, Peter. Ibid. 32 GEERTZ, Clifford James. Ibid. 33 O Cruzeiro Hinário recebido pelo Sr. Raimundo Irineu Serra. Edição da Igreja do CEFLURIS, Céu do Mapiá AM, s.d.. 34 ARAÚJO, Maria Gabriela Jahnel. Cipó e imaginário entre seringueiros do Alto Juruá. In: Revista de Estudos da Religião. Rio de Janeiro, n. 1, 2004, p. 41-59. 35 Cipó é o nome como a Ayahuasca é conhecida entre os seringueiros e caboclos na região. 36 O Cruzeiro Hinário recebido pelo Sr. Raimundo Irineu Serra. Edição da Igreja do CEFLURIS, Céu do Mapiá AM, s.d.. 37 O Cruzeiro Hinário recebido pelo Sr. Raimundo Irineu Serra. Edição da Igreja do CEFLURIS, Céu do Mapiá AM, s.d.. 38 O Cruzeirinho Recebido pelo Sr. Alfredo Gregório de Melo. Edição da Igreja do CEFLURIS, Céu do Mapiá AM, s.d.. 39 Nova Era Recebido pelo Sr. Alfredo Gregório de Melo. Edição da Igreja do CEFLURIS, Céu do Mapiá AM, s.d.. 40 O Cruzeirinho Recebido pelo Sr. Alfredo Gregório de Melo. Edição da Igreja do CEFLURIS, Céu do Mapiá AM, s.d.. 41 BERGER, Peter. Ibid. 42 ARRUDA, Carolina; LAPIETRA, Fernanda; SANTANA, Ricardo Jesus. Centro Livre. Ecletismo cultural no Santo Daime. São Paulo: All Print, 2006. 43 MCKENNA, Terence. Food of the Gods: The Search for the Original Tree of Knowledg. A Radical History 14

of Plants, Drugs, and Human Evolution. New York: Batam Books, 1992. 44 DOBKIN, Marlene de Rios. Visionary Vine: Hallucinogenic hallucinogenic healing. in the Peruvian Amazon. San Francisco: Chandler Publishing, 1972. 45 REICHEL-DOLMATOFF, G. O contexto cultural de um alucinógeno aborígene Banisteriopsis Caapi. In: COELHO, Vera Penteado. Os alucinógenos e o mundo simbólico. São Paulo: EDUSP, 1976. 46 LUNA, Luis Eduardo. Vegetalismo: Shamanism among the Mestizo Population of the Peruvian Amazon. Estocolmo, Suécia: Almquist and Wiksell International, 1986. 47 DOBKIN, Marlene de Rios. Ibid. 48 MACRAE, Edward. Guiado pela lua. Xamanismo e uso ritual da Ayahuasca no culto do Santo Daime. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992. 49 LABATE, Beatriz Caiuby; GOULART, Sandra Lúcia (Orgs.). O uso ritual das plantas de poder. Campinas: Ed. Mercado das Letras, 2005. 50 ALVERGA (Org.). O Evangelho segundo Sebastião Mota. Boca do Acre: CEFLURIS, 1998. 51 LUNA, Luis Eduardo. Vegetalismo: Shamanism among the Mestizo Population of the Peruvian Amazon. Estocolmo, Suécia: Almquist and Wiksell International, 1986. 52 LUZ, Pedro. O uso ameríndio do Caapi. In: LABATE; ARAÚJO (Orgs.). O uso ritual da Ayahuasca. 2 ed., Campinas: Mercado das Letras. 2004. 53 GROISMAN, Alberto. Eu venho da Floresta: Ecletismo e práxis xamânica daimista no "Céu do Mapiá". Dissertação (Mestrado) - Antropologia Social. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1991. 54. Ibid. 15