FORA DO LUGAR. MEMÓRIAS Edward W. Said Editora Companhia das Letras (2004)



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NOTA DE LIVRO FORA DO LUGAR. MEMÓRIAS Edward W. Said Editora Companhia das Letras (2004) MARTA MARIA ASSUMPÇÃO RODRIGUES* Durante toda sua vida, Edward W. Said buscou no mundo da cultura, em geral, e da narrativa, em particular, a constituição de uma pátria (pessoal, oriental, ocidental). Queria se sentir em casa. Costumava dizer que as próprias nações são narrativas e, certa vez, escreveu que a pessoa lê Dante ou Shakespeare para acompanhar o melhor do pensamento e do saber, e também para ver a si mesma, a seu povo, sua sociedade, suas tradições sob as melhores luzes 1. Said nos ensinou que a narrativa (e a cultura) nos dá pistas para descobrirmos quem somos. O problema é quando ela se associa à nação ou ao Estado. Neste caso, uma fronteira se estabelece e a diferença entre nós e eles toma força. Fora do Lugar, como em outros estudos seus 2, propõe identificar e expor esses mecanismos de * Professora na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade da USP. 1 Cultura e Imperialismo, São Paulo: Companhia das Letras, 1995: 13. 2 The Question of Palestine; Covering Islam; The World, The Text, and the Critic; Nationalism, Colonialism, and Literature, para mencionar alguns.

274 REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLÍTICOS controle e repressão que nos separam deles, para que sejam superados por indivíduos e pelos diversos povos (inclusive os do Terceiro Mundo) em sua luta pela autodeterminação histórica e literária. É, precisamente, no questionamento dessa idéia, de que existe um nós e um eles, cada qual muito bem definido, claro, auto-evidente, que Said constrói, aqui, sua narrativa: na confluência da biografia pessoal esse penoso processo interno de crescimento com a história contemporânea marcada pelo impacto externo de eventos como a dissolução da Palestina, a instauração da ditadura Nasser no Egito, a Guerra dos Seis Dias e a Guerra Civil Libanesa. A trajetória de Edward Said (1935-2003), um dos maiores intelectuais árabes do nosso tempo, confunde-se com a história errante do povo palestino. Filho de árabes cristãos, Said nasceu em Jerusalém em 1935 e, com apenas treze anos, viu a Palestina ser substituída pelo Estado de Israel (1948). A partir de então, sua vida transformou-se em uma sucessão de deslocamentos e tentativas de adaptação a ambientes estrangeiros. Viveu no Egito, no Líbano e nos Estados Unidos, onde foi professor de crítica literária e inglês nas universidades de Harvard e Columbia. Lá, Said escreveu dezenas de artigos e livros sobre a questão palestina. De uma perspectiva muito peculiar, Fora do Lugar nos ajuda a refletir sobre o Outro e nós mesmos assim como outros estudos seus sobre Conrad, Yeats, G. Greene, Dickens, Gide, Kipling, Naipaul, Camus, H.Arendt. Escrito durante a luta que travou contra o câncer (1991-2003), Fora do Lugar é um livro de memórias, todo sobre a insônia (p. 320), que, ao fazer balanço de uma vida repleta de traumas e rupturas, convida-nos a entender as turbulências que sacudiram o Oriente Médio (e o mundo) nos últimos anos do século XX.

FORA DO LUGAR. MEMÓRIAS 275 Nessa confluência narrativa, Said demonstra que as complexas realidades políticas são causa dos problemas cotidianos de nossas vidas (p.426) e, nesse plano, a política grande (de Maquiavel) se confunde com a minha política dissidente particular (p.426). Aqui, o exterior está em nós, já que, em alguma medida, todos compartilhamos a condição de estrangeiros. Na Introdução de Orientalismo 3, Said analisou a dimensão pessoal de sua obra com as lentes de Antonio Gramsci (Cadernos do Cárcere) para quem, também, o ponto de partida da elaboração crítica é a consciência do que se é realmente. Para ambos, o importante é o conheça-te a ti mesmo como produto do processo histórico. Em Fora do Lugar, Edward Said, que estudou o orientalismo trazendo para o centro da atenção o Oriente islâmico, realiza um inventário de alguém que se percebia oriental no Ocidente, o forasteiro permanente (p.365), o desconhecido que estava de passagem (p.417). Por isso, dizia que a sua obra é a obra de um exilado : Quando digo exilado, não penso em tristezas ou privações. Pelo contrário, pertencer, por assim dizer, aos dois lados da divisa imperial permite que os entendamos com mais facilidade (1995:29). Ao descobrir-se assim, Said realiza o fato de [ que ] vir de uma parte do mundo que parecia estar num estado de transformação caótica tornou-se o símbolo do que havia de fora de lugar a meu respeito (p. 365). Já nos primeiros anos de escola (Gezira Preparatory School), no Cairo, entre 1941-46, Edward Said percebeu que sempre houve algo de exterior e de fora do lugar no que se referia a nós (a mim, em particular), mas eu ainda não sabia 3 Orientalismo. O Oriente como Invenção do Ocidente (São Paulo: Companhia das Letras, 1990).

276 REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLÍTICOS bem por quê (p. 74). Com a maturidade, descobriu que essa sensação resultou, também, de políticas e das guerras. E a guerra de 1967, talvez a mais marcante em sua vida, trouxe ainda mais deslocamentos, que, para Said, pareciam encarnar todas as outras perdas. Não fui mais a mesma pessoa depois de 1967; o choque daquela guerra me levou de volta para onde tudo começou: a luta pela Palestina (p.426), e fez com que ele não compreendesse (nem perdoasse) o apoio de pessoas como Martin Luther King pelo ardor de sua paixão pela vitória israelense na guerra de 1967 (p.212). Em Fora do Lugar, Said exercita seu olhar para ver o eu no outro e extrair o passado do seu presente. Na busca do entendimento sobre as distâncias (e proximidades) entre ser gente e ser cidadão, por exemplo, Said sente as aflições dos que não têm um país ou lugar para voltar, nem a proteção de nenhuma autoridade ou instituição nacional; dos que sentem o passado como um lamento amargo e sem esperança e o presente como pobreza e humilhação. Mas o hiato entre ser gente e ser cidadão só foi percebido, de fato, em 1951, quando ele deixa o Cairo para estudar nos Estados Unidos. De lá (de fora), Said descobre uma dissonância fundamental que todos experimentávamos como estrangeiros no Egito, sem refúgio em nosso verdadeiro ponto de origem. A freqüência das referências a passaportes, documentos de identidade ou de residência, cidadania e nacionalidade crescia na mesma medida de nossa vulnerabilidade à inconstante situação política no Egito e no mundo árabe. De alguma maneira, Said sentia que o próprio desaparecimento da Palestina estava na base daquilo, mas nem

FORA DO LUGAR. MEMÓRIAS 277 eu nem nenhum outro membro de minha família era capaz de dizer exatamente como ou por quê (p.193). Apesar de ter escrito extensamente sobre a questão da Palestina, Said confessa reiteradas vezes, neste livro, que nunca foi capaz de compreendê-la plenamente. Diz que, das reflexões que realizou sobre esta questão, permaneceu a irreconciliável dualidade que sinto em relação ao lugar, sua intrincada dilaceração ou esgarçamento e sua perda dolorosa refletidos em tantas vidas distorcidas, incluindo a minha, e seu status como país admirável para eles (mas obviamente não para nós), [ que ] sempre me causam dor e uma desalentadora sensação de ser solitário, desprotegido, exposto aos ataques de coisas triviais que parecem importantes e ameaçadoras, contra as quais não tenho armas (p.214). Assim, Said tornou-se testemunha inconsciente da escala do deslocamento que sua família e amigos haviam experimentado no ano do surgimento do Estado de Israel. Em 1948, todos parecíamos ter desistido da Palestina, que passou a ser um lugar que nunca voltaríamos, que raramente era mencionado e do qual sentíamos falta de modo silencioso e patético (p.175). Naquele ano, sua tia Nabiha organizara um trabalho de caridade em benefício dos palestinos refugiados no Egito que levou Said a experimentar, pela primeira vez, a Palestina como história e causa. Essa experiência se deu na raiva e na consternação que eu sentia diante do sofrimento dos refugiados, aqueles Outros que ela trouxe para dentro da minha vida (p.181). Sua reflexão sobre a vida e suas experiências vividas significou, também,

278 REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLÍTICOS refletir sobre o espaço e o tempo, o lugar onde ela se deu; sobre a sensação de que eu deveria estar em outro lugar, porque aqui não era estar onde eu/ nós gostaríamos de estar, aqui sendo por definição um lugar de exílio, de remoção, de deslocamento a contragosto. Talvez por isso, como uma espécie de cerimônia de despedida, estas memórias são, em certo plano, a reencenação da experiência da partida e da separação no momento em que sinto a pressão do tempo que se esvai (p.328). Da sensação de vazio (p. 332, 335), da desorientação causada pela saudade de casa (p.328, 339), do abrasivo salvese-quem-puder de minha vida cotidiana (p.343), do provisório (p.328), da solidão paralisada, que constituíam um bloco paralisante no centro de sua consciência, Said aprendeu, diante da morte, a estabelecer seus limites: Logo me tornei consciente de ser capaz de tirar esse bloco do centro e em seguida de me concentrar, às vezes apenas de modo muito breve, em outras coisas muito mais concretas, incluindo o prazer por um trabalho realizado, uma música ou um encontro com um amigo. Não aprendi o agudo senso de vulnerabilidade à doença e à morte que experimentei ao descobrir minha condição [ de saúde ], mas se tornou possível como com meu exílio da juventude ver todas as horas e atividades do dia (incluindo minha obsessão pela doença) como totalmente provisória. Dentro dessa perspectiva, posso avaliar que atividades reter, empreender e desfrutar (p.359). Uma das lições que este livro nos ensina é que, apesar de todas as dissonâncias de sua vida, Edward Said aprendeu a

FORA DO LUGAR. MEMÓRIAS 279 preferir estar fora do lugar e não absolutamente certo. Sua leitura suscita a idéia de que todos compartilhamos dessa condição peculiarmente fraturada de cacos palestino-árabe-cristãoamericano, que Said se refere (p.391). Afinal, quem, nos mundos de hoje, não vem de alguma parte que não esteja em permanente transformação caótica? A palavra resistência (tão mencionada por ele em outros momentos), não aparece nem uma única vez neste livro. Mas não há dúvida de que se trata de um livro de resistência. Resistência pela vida. Resistência por relatar um doloroso processo de construção de sua identidade num mundo em convulsão e que se realiza na emergência de um segundo eu soterrado por muito tempo (p.320). Resistência doída e paradoxalmente buscada na aceitação do eu como ele é, que deixa para trás o medo de se perder (p. 321) para aceitar uma vida construída a partir de muitos deslocamentos entre cidades, domicílios, línguas e ambientes que se mantiveram em movimento até o momento de sua morte. A insônia de Said, esse estado precioso, a ser desejado a todo o custo (p. 428) é sinal de sua resistência à morte. E sua narrativa resistente sobre o estar fora de lugar é parte da herança que ele nos deixou. Refletir sobre ela nos faz perceber que estar no lugar certo (como perfeitamente em casa) não parece importante nem desejável. Melhor do que um sólido eu, diz ele, é vagar sem lugar fixo (p.427)... como um feixe de correntes que fluem (p.429),... que escapam e podem estar fora do lugar, mas pelo menos estão sempre em movimento, no tempo, no espaço, em toda espécie de estranhas combinações que se movem, não necessariamente para a frente, às vezes umas em choque com as outras, fazendo contrapontos, ainda que sem um tema central (p.429). Queremos todos crer este estado é uma forma de liberdade.

280 REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLÍTICOS Edward Said morreu em Nova York, em 2003, mas resiste em nós : homem-mulher-latino-americano-afro-brasileiroárabe-judeu-pobre-rico-humilhado-sem-terra.